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Anexo IV – Paradigmas de comportamento vocal – Valores totais de intensidade relativa dos parciais

Em 3.1, são referidas as diferentes abordagens da psicologia moderna relativamente à emoção, começando pela relação entre os processos cognitivos e emocionais segundo os modelos

1. Arte e Emoção – Introdução

1.1. Aspectos conceptuais e emocionais na obra de Arte

Para se manifestar, a arte recorre a meios de comunicação, de natureza sensorial – visual, sonora – ou conceptual – linguagem. No entanto, o que a caracteriza não é a sua capacidade informativa. Na origem, as expressões de arte são-no também de religiosidade. Esta génese comum reflecte-se no próprio significado etimológico de ‘religião’, estabelecimento de conexões entre fenómenos visíveis e invisíveis, através da celebração de ritos simbólicos a que se atribuem significados transcendentes1. Ambas são dotadas de capacidades catárticas, como sucedeu na Grécia até épocas relativamente tardias, com a celebração das festas dionisíacas (v. capítulo 2.1, notas 17, 19 e 20). Tal processo de purificação passa pela indução de estados emocionais intensos, que estão na génese da tragédia, forma de expiação colectiva das violações da ὕβρις. Não é, no entanto, a capacidade de provocar emoções que, por si só, caracteriza uma obra de arte. O mesmo sucede com muitos eventos ou situações, presenciados ou transmitidos. Mesmo a mais realista ou naturalista das manifestações artísticas é o resultado de um processo de criação individual onde o recurso a referências conceptuais é indispensável para evocar situações que remetem para a memória emocional de cada um.

O caso da música é especial, pois ela, mais do que qualquer outra arte, é sequencial, ou seja, desenvolve-se no tempo. No caso da música vocal, estamos em presença do cruzamento entre a poesia ou o teatro e a música pura, onde a abstracção da melodia, harmonia e ritmo se associam às características conceptuais e emocionais da linguagem, que são processados em zonas distintas do cérebro (v. capítulo 4.1, notas 62, 63, 65 e 66). Além disso, necessita de um intermediário para a realizar, a que chamamos ‘intérprete’2, atribuindo-lhe assim a capacidade de mediador entre duas partes, o autor e o público, com o poder de traduzir uma mensagem, a obra. No caso da música vocal, este é o papel do cantor.

A obra de Arte, qualquer que seja a sua natureza – poética, visual, auditiva, – recorre à memória emocional do espectador, fazendo-o reviver situações previamente experimentadas. Partindo da figura central de todo este processo, o cantor, vamos abordar o fenómeno da emoção, desde a sua origem biológica e comportamental à sua função de equilíbrio individual e social. De seguida, analisaremos alguns dos meios que o cantor tem à sua disposição para induzir no público os diversos estados emocionais implícitos na obra que executa. Deixando de lado questões relativas

1 - Na Antiguidade, várias foram as etimologias propostas. Cícero (N. D. 2, 28, 72) atribui-lhe como origem ‘relĕgere’, baseado no verso de Aulo Gélio 4, 9, 1, “religentem esse oportet, religiosum nefas.” Sérvio (ad Verg. A. 8, 349), Lactâncio (4, 28), Santo Agostinho (Retract. 1, 13), por seu lado, aproximam-na de ‘religare’, opinião partilhada pelos etimologistas modernos, assumindo como raíz ‘ligar’, relacionar’. (LEWIS AND SHORT, 1879)

2 - interprĕs, ĕtis, I. Agente entre duas partes, negociador, II. Explicador, tradutor, intérprete (sinónimo de internuntius: mediador, mensageiro). (LEWIS AND SHORT, 1879)

à objectividade conceptual do texto, que poderemos designar provisoriamente como ‘denotativas’, iremos em busca do que está para além do sentido da narração, para penetrarmos no mundo mais difuso da emotividade. Como é que um determinado cantor, por exemplo, nos pode levar ao êxtase com a mesma obra que, cantada por outro, nos deixa completamente indiferentes? Certamente que questões relativas às capacidades vocais e musicais não serão alheias a este fenómeno, mas ele não pode ser reduzido a estes parâmetros. O que vamos abordar remete para uma dimensão que ultrapassa tanto a transmissão objectiva do texto poético e musical como a capacidade de enriquecimento expressivo demonstrados na forma de executar uma ária, uma cena de ópera, ou uma canção, uma frase específica, ou mesmo uma só palavra – aquilo que, de uma forma simplificada, poderemos designar como prosódia3. Procuraremos identificar e analisar os elementos de natureza acústica que remetem para uma capacidade específica que permite que, através da estrutura do próprio sinal acústico emitido, o cantor seja capaz de induzir diferentes estados afectivos no ouvinte.

Tomando como base uma leitura rigorosa do texto poético e musical, o cantor pode alterar uma série de parâmetros acústicos, como o timbre (a capacidade de jogar com distintas colorações vocais), a intensidade, a articulação do texto, ou o modo de respirar, por exemplo. Para além destes, o cantor utiliza o movimento, o gesto, a expressão corporal e facial, com uma dimensão maior na ópera e muito mais limitada no recital, mas que estão fora do âmbito deste trabalho. O recurso à expressão facial será considerado essencialmente nas suas implicações directas no processo vocal.

Estamos na presença de uma relação entre três elementos: a obra, que poderíamos fazer remontar ao seu ou seus autores, mas que vamos tomar como entidade primária, sem atendermos às circunstâncias da sua génese, o executante – o cantor – e o público. Neste momento, por vezes sentido como mágico, a comunicação transcende os próprios constrangimentos da língua. De facto, um público, ou parte significativa dele, é perfeitamente capaz de captar os sinais emocionais, mesmo quando não domina a língua do texto cantado. A obra, criação do autor, é resultado de uma necessidade de comunicar uma mensagem estética, utilizando uma obra poética, literária ou dramática já escrita – ou, no caso de Richard Wagner e alguns outros, criando-a previamente para esse efeito. Esta natureza dúplice da obra vocal será igualmente motivo de breve reflexão. Aplicaremos o conceito de ‘estética’ no seu sentido mais abrangente, próximo do original, de algo que se refere aos sentidos, ou é captado por eles – no caso específico do canto, fundamentalmente através do ouvido e, em parte, da vista, através da expressão facial e corporal. Aqui vamos encontrar uma ponte que nos liga a conceitos que aí desenvolveremos: de facto, ‘sensação’ e

3 - προσῳδία, ἡ, Variação de altura da voz falada, especificamente a pronúncia de uma sílaba numa determinada altura; diferenças de pronúncia normalmente não escritas, como a quantidade ou a respiração. (LIDDELL AND SCOTT,1940).

‘emoção’ encontram-se intimamente relacionados, estando o mundo da sensação na origem do universo emocional.

No processo de transmissão de um texto musical, há uma coexistência de processos semânticos, ainda mais complexos quando esse texto apresenta uma dupla natureza, musical e literária. Mesmo excluindo do âmbito deste trabalho as componentes que podemos considerar como denotativas, ou seja, de natureza conceptual, tanto relativas à parte puramente musical como à literária, o campo que nos sobra, e que constitui, afinal, o âmago da obra musical, é extremamente vasto e complexo. Numa apreciação global, podemos dizer que as primeiras remetem para a parte estrutural da obra e à transmissão fidedigna da sua leitura pelo intérprete, ou executante, ao público, enquanto as segundas nos remetem para aquilo que é verdadeiramente essencial na obra (no sentido de distintivo da sua natureza), e a projectam para o campo da realidade artística, um mundo paralelo ao da realidade da mera relação entre os sons. Podemos relacionar estas componentes com dois tipos de estruturas fundamentais da mente humana, as que determinam os processos cognitivos e as que estão subjacentes aos processos emocionais. No entanto, não podemos ignorar a contínua interactividade dos aspectos emocionais e cognitivos no processamento das informações e estímulos exteriores pelo cérebro.

Para a definição das relações entre a criação ou recriação artística e a sua capacidade para provocar a indução de estados emocionais no público, é necessário compreender como se desenvolve o processo de fruição de uma obra de arte, neste caso, especificamente uma obra cantada. Este processo está documentado em obras fundamentais da cultura, como os poemas homéricos, que servem de ponto de partida para a nossa reflexão, em 1.3.

Há um vasto conjunto de elementos de natureza diversa que determinam as diferentes fases do processo que ocorrem no momento da execução ou recriação de uma obra musical cantada. É necessário um longo processo de aprendizagem de formas de comunicação dos aspectos conceptuais e não conceptuais, que permitam ao cantor evocar estados emocionais, mas também, o que é mais importante, conseguir induzi-los no público. As capacidades para o fazer dependem da aprendizagem de mecanismos técnicos, que se processam a nível consciente. O seu grau de refinamento depende do grau de conhecimentos culturais e artísticos do cantor, da sua capacidade de os relacionar e de os integrar no processo artístico. A possibilidade de provocar no público diferentes estados emocionais depende de factores inconscientes, sobretudo a capacidade de reproduzir os mecanismos de expressão sonora das emoções, de modo a induzir reacções no público por meio de um processo que se vai desenvolvendo desde o nascimento, através de um sistema de um grupo específico de neurónios que funcionam como espelho dos sons, gestos ou expressões captadas.

Em primeiro lugar, a qualidade vocal e a preparação técnica do cantor, que determinam um perfil acústico característico que provoca, por si só, uma sensação de agrado no público. A capacidade de transmitir o texto musical e poético com rigor e clareza é indispensável para que o público possa receber uma versão integral do que o compositor pretendeu. Esta fase do processo pode provocar, por si só, uma eventual indução no ouvinte de estados emocionais por via conceptual. Se o cantor não possuir a capacidade de integrar os processos de expressão da emoção na sua execução musical, o perfil acústico do som emitido reflectirá apenas a qualidade intrínseca da sua voz e o seu nível de domínio técnico, não havendo qualquer outro grau de indução emocional no público. Caso ele tenha essa capacidade, irá reflectir no perfil acústico um conjunto de alterações fisiológicas que acompanham a libertação de neurotransmissores e neuromoduladores, como modificações na expressão facial, na forma e grau de tensão do tracto vocal, ou no perfil respiratório. Este conjunto de sinais não verbais poderá induzir no público estados emocionais de grande intensidade, já que este processo utiliza o mecanismo de relacionamento entre sinais sonoros e estados emocionais processado através de um grupo específico de neurónios, os neurónios de espelho. Em último lugar, se o cantor tiver um domínio técnico e musical suficiente para fazer reflectir no seu discurso elementos de natureza estética ou filosófica que possam integrar a obra executada no seu contexto histórico, a fruição do público será acrescida e valorizada, a um nível predominantemente cognitivo.

Para que haja uma transmissão de todos os elementos constitutivos da obra musical ao público, é necessária uma linguagem musical comum, ou, pelo menos, bastante próxima. Para alguém que nunca tenha ouvido um recital de canto ou uma ópera, o próprio processo de emissão da voz, para além da compreensão daquilo que, para facilitar, apelidaremos de “linguagem” musical, é impeditivo da fruição. No entanto, mesmo para quem não partilha por completo as condições necessárias para este processo – conhecimento da língua e das suas subtilezas de sentido, familiaridade com o estilo musical e os seus processos de composição, integração da obra no contexto da cultura e arte do seu tempo – há sempre um conjunto de elementos independentes da estrutura musical e verbal que o executante consegue transmitir ao público.

No esquema abaixo, estão representados todos estes elementos e as suas relações.

Processo de recriação de uma obra musical cantada

Estes aspectos da transmissão de emoção através da música foram objecto de vasta investigação e teorização (Meyer, 1956; Cooke, 1959;Kivy, 1980, 1989, 2002; Budd, 1985; Davies, 1994, entre muitos outros). De uma forma geral, os investigadores apontam em duas direcções, explicando a expressividade da música pela sua capacidade intrínseca de provocar uma resposta emocional no ouvinte devido à congruência do contorno musical com a estrutura das características expressivas e comportamentais, ou, pelo contrário, pela associação arbitrária de certas características musicais com expressivas, sem que haja qualquer analogia estrutural entre ambas. Estas duas abordagens teóricas podem ser complementares, integrando um sistema a dois níveis que participa no processo de convergência de informação na comunicação humana (Salgado, 2003).

1.2. Especificidade da obra musical: efemeridade e subjectividade. Coexistência de

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