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Especificidade do processamento neurológico dos parâmetros da expressão musical

Anexo IV – Paradigmas de comportamento vocal – Valores totais de intensidade relativa dos parciais

Em 4.2, estes processos serão objecto de uma análise mais aprofundada, quando nos detivermos nos aspectos químicos da transmissão de informações através do sistema nervoso.

4.3. O papel do cérebro na génese da emoção

4.3.4. Especificidade do processamento neurológico dos parâmetros da expressão musical

A Música compartilha com a linguagem alguns aspectos do tratamento da informação, e tem a capacidade de provocar estados emocionais de modo semelhante ao da comunicação verbal. Esses aspectos, sobretudo os que se relacionam com sensações de recompensa, parecem ser mediados pela elevação dos níveis de dopamina no nucleus accumbens e pelas conexões do cerebelo ao lobo frontal e sistema límbico. As emoções despertadas pela audição de certas passagens musicais não possuem, no entanto, as mesmas características referenciais e conceptuais das provocadas pela comunicação verbal. Embora apelando a algumas regiões neurais comuns à linguagem verbal, dela se distingue por envolver estruturas cerebrais mais primitivas, relacionadas com a motivação, recompensa e emoção.

Retomando a distinção estabelecida desde o início entre os dois aspectos da comunicação, que designei como denotativos e conotativos, mas que podemos agora definir com maior precisão como conceptual – de natureza essencialmente verbal, e emocional – de natureza essencialmente não verbal, podemos estabelecer uma correspondência entre dois níveis de processamento neural da informação. Por um lado, sabemos que a informação verbal é descodificada em determinadas áreas cerebrais, essencialmente as áreas de Wernicke e de Broca (4.1). Sabemos também que determinadas áreas corticais estão relacionadas com vários aspectos do processamento de sons organizados numa estrutura musical. O nosso objectivo, no entanto, ultrapassa o tratamento da informação musical em si, ou seja, a eventual existência de uma semântica da organização sonora, baseada em diferentes graus de expectativa associados a diferentes desenvolvimentos melódicos e estruturas harmónicas. O que nos interessa é saber se existe uma especificidade neural do processamento da emoção durante a audição de uma obra musical, da sua execução, e se há alguma relação entre ambos.

A audição de música provoca um conjunto de activações em regiões do cérebro, que tem início com o processamento das componentes do som no córtex auditivo, seguido das regiões frontais como BA44 e BA47, já identificadas como envolvidas no processamento da estrutura musical e das expectativas em termos de sequência sonora – harmónica ou melódica – processo que está na base da compreensão da gramática musical.

Estudos com recurso a tomografia por emissão de positrões (PET) para a compreensão do processamento emocional durante a audição de música demonstraram que a emoção musical intensa, descrita pelos sujeitos envolvidos como envolvendo estados de ‘arrebatamento’, ‘exaltação’, ou mesmo ‘arrepios’, era acompanhada por aumento do ritmo cardíaco, respiratório e do fluxo sanguíneo em zonas do cérebro como o striatum ventral, o mesencéfalo, a amígdala, o córtex orbito-frontal e o córtex pré-frontal medial ventral (BLOOD & ZATORRE, 2001). O facto de o

striatum ventral – que inclui o nucleus accumbens – ter um papel crucial neste processo é

particularmente interessante, pois este é o centro de recompensa do cérebro, estando envolvido na transmissão de opióides a nível cortical, devido à sua capacidade para libertar o neurotransmissor dopamina. Este processo é o mesmo que provoca o prazer e a dependência. Foi demonstrado que a administração de naloxona, que interfere com a dopamina no nucleus accumbens, pode bloquear o prazer de ouvir música (GOLDSTEIN, 1980).

Durante todo o processo, o cerebelo e os gânglios basais mantêm-se em actividade, o que resulta do processamento de elementos relacionados com o ritmo.

Relativamente ao processamento de emoções desagradáveis associadas a graus variáveis de dissonância musical, foi observado aumento de fluxo sanguíneo cerebral em regiões paralímbicas implicadas na observação de imagens com valência negativa, como o gyrus para-hipocampal. Estas regiões diferem das que se sabe estarem envolvidas nos aspectos perceptuais e cognitivos da música, os córtices superior temporal e pré-frontal direitos (BLOOD & ZATORRE, 2001).

Um vasto conjunto de estudos com pacientes com deficit em zonas cerebrais específicas devido a lesão demonstrou a predominância do hemisfério cerebral direito no processamento musical. Indivíduos com lesão extensa no hemisfério esquerdo, apresentando formas severas de afasia, mostraram-se no entanto capazes de cantar, praguejar ou rezar. Mesmo em casos em que o hemisfério esquerdo foi completamente removido, foi mantida a capacidade de cantar canções conhecidas ou mesmo aprender canções novas, embora o paciente não fosse capaz de dizer as palavras da canção sem a música. Foram reportados casos de músicos e compositores que sofreram afasia ou significativa diminuição do hemisfério esquerdo que, apesar disso, foram capazes de continuar o seu trabalho. Mesmo em casos onde se perdeu a capacidade de ler linguagem escrita (alexia), manteve-se a capacidade de ler música e até de continuar a compor. No caso de lesão no hemisfério direito, pelo contrário, perde-se até a capacidade de reconhecer melodias familiares (JOSEPH, 1988, 2000). Vários estudos comprovaram a importância do hemisfério direito nas capacidades de processamento do sentido do tempo, ritmo, e o reconhecimento de parâmetros sonoros como a altura, intensidade e timbre, ou o sentido melódico. Indivíduos com lesões extensas na região temporal direita apresentaram total incapacidade de recordar melodias ou de criar imagens musicais, de cantar ou reproduzir uma melodia. A fala perde a sua riqueza expressiva, tornando-se monótona pela inexistência de variações de altura do som. Perde-se igualmente a capacidade de obter prazer ao ouvir música. (CHASE, 1967; GATES & BRADSHAW, 1977; MILNER, 1962; SAMSOM & ZATTORE, 1988, 2002; YAMADORI ET AL., 1977; ZATORRE & HALPEN, 1993;

apud JOSEPH, 2000).

Encontra-se igualmente bem documentada a predominância do hemisfério direito na percepção e expressão dos parâmetros através dos quais se consegue ter a percepção musical como

o timbre, a harmonia, a tonalidade, a altura, a intensidade, a melodia, o compasso ou o tempo (BREITLING ET AL., 1987; GATES & BRADSHAW, 1977; KIMURA, 1964; apud JOSEPH, 2000).

Um estudo realizado com pianistas profissionais demonstrou que, quando tocavam (no caso, o terceiro andamento do Concerto Italiano de Bach), havia acréscimo de actividade no lobo direito, mas não no esquerdo, ao contrário do que sucedia quando apenas executavam escalas (PARSONS & FOX, 1997; apud JOSEPH, 2000).

A capacidade de induzir estados emocionais no público, que alguns intérpretes possuem de forma diferenciada, sejam instrumentistas ou cantores, não tem a ver com as suas capacidades de sentir as emoções no momento da execução, mas sim com as suas capacidades de “soar como se as estivessem a sentir” (LEVITIN, 2006). O caso citado por Damásio envolvendo a pianista Maria João Pires é disso um exemplo perfeito. Para comprovar a sua afirmação de que conseguia controlar voluntariamente a sua emotividade quando estava a tocar, a grande pianista acedeu a testar no laboratório as suas reacções psicofisiológicas durante a audição de exemplos musicais. Quando lhe era “permitido” sentir emoção, os registos de condutância medidos na pele e outras variáveis, como o ritmo cardíaco, mostravam um perfil característico de quem está a experimentar situações emocionais diversas. Quando lhe era pedido para ouvir as mesmas peças, mas inibindo a sua experiência emocional, os registos aplanavam-se. Esta experiência, executada frente aos cientistas António e Hanna Damásio, foi repetida com os mesmos resultados na presença de Antoine Bechara, colaborador de Damásio, que não acreditava que tal fosse possível (DAMÁSIO, 1999).

Neste caso, estamos em presença de uma artista particularmente notável, e podemos argumentar que este caso poderá não ser comum a todos os intérpretes. Por outro lado, a experiência foi feita estando o sujeito na situação de ouvinte e não de executante, pelo que a sua transposição para o momento da execução poderá, eventualmente, ser diferente. O problema é que os exames que permitem medir as variáveis psicofisiológicas durante experiências emocionais exigem uma imobilidade total ao sujeito, o que limita logo à partida a sua aplicação.

Reflexão crítica

À semelhança do capítulo anterior, não foi possível uma apresentação mais sintética dos dados, apesar de se entrar decisivamente numa matéria especializada, alheia à nossa área de conhecimentos. Considerámos a apresentação sistematizada deste conjunto de dados informação indispensável para a compreensão dos processos biológicos que constituem a génese e o desenvolvimento de uma emoção. Não seria possível abordar as matérias que constituem o tema dos capítulos seguintes sem esta fundamentação.

Como projecto para futuros trabalhos de investigação, seria muito interessante estabelecer um confronto entre as regiões cerebrais activadas quando se verfica indução emocional através de indicadores vocais não verbais (1) com as que entram em actividade quando há uma reacção emocional provocada pela audição de música sem componente vocal (2), complementado com a audição dos mesmos segmentos utilizados em (1), mas substituindo os indicadores emocionais por neutros. Para este projecto será necessário o recurso a uma equipa multidisciplinar.

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