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Anexo IV – Paradigmas de comportamento vocal – Valores totais de intensidade relativa dos parciais

Em 3.1, são referidas as diferentes abordagens da psicologia moderna relativamente à emoção, começando pela relação entre os processos cognitivos e emocionais segundo os modelos

1. Arte e Emoção – Introdução

1.3. O cantor – perspectiva histórica

As primeiras referências escritas na cultura ocidental ao cantor remontam aos Poemas Homéricos, onde figura como personagem de grande relevo em numerosas passagens. Embora não corresponda inteiramente à figura que conhecemos, formada na tradição do bel canto, dela se aproxima em muitos pontos que interessa aprofundar, pois são precisamente esses pontos comuns que poderão ajudar a compreender o essencial do processo de indução de emoção no público através da palavra cantada. Os pontos que os distinguem são de menor relevância do que os que os aproximam, e prendem-se sobretudo com o facto de o cantor no período da épica oral recitar e cantar uma obra sua, ou de cuja génese depende em grande parte, enquanto o cantor moderno executa uma obra a cuja composição é inteiramente alheio. No período do belcanto, como sabemos, a própria possibilidade de intervenção do cantor sobre o texto musical era muito ampla. Deixando de parte essa importante diferença de competências, passemos à análise dos processos comuns, que colocaram o cantor desde épocas recuadas até aos dias de hoje num lugar de grande relevo, e a quem o público atribui capacidades vedadas ao homem comum.

A realidade retratada na Ilíada e na Odisseia tem como origem um período de grande desenvolvimento económico, social e artístico, centrado nas cidades de Knossos, Micenas e Pylos, cujos reis se encontravam ligados por laços de tipo feudal, provavelmente sob a autoridade do grande rei de Micenas, designado pelo termo “ἄναξ”, grande chefe militar e religioso, e ainda não pelo posterior “βασιλεύς”. Neste período heróico, as intensas relações comerciais com civilizações orientais, como o Egipto, a Babilónia, ou Tróia, e, particularmente, com a civilização minóica de Creta, permitiram um grande contacto com a poesia e a arte em geral. É esta realidade social, de grandes reis locais sujeitos ao poder central do grande rei de Micenas, Agamémnon, que a épica homérica nos retrata, na expansão do seu domínio militar e económico. O longo período que se seguiu, dos séculos XIII e XII até cerca de 800, devido a diversas razões ainda hoje não integralmente compreendidas, foi de grande pobreza e isolamento, pelo que é tradicionalmente designado por “Idade das Trevas”. Invasões de povos bárbaros, cataclismos naturais, são causas aparentes para o súbito desaparecimento de todos os sinais históricos e arqueológicos de uma civilização florescente, em que a poesia e o canto estavam intimamente ligados, e em que estes tinham uma função social de primordial importância. As antigas histórias foram perpetuadas pelos poetas orais, ao longo de todo este período, o que explica a existência de elementos de épocas distintas sobre uma base micénica. A prosperidade que reinou com o aparecimento das cidades-estado, a partir do séc. VIII, veio criar as condições para a realização de grandes festivais, como o de Mykale, o de Apolo, em Delos, e, mais tarde, as Panateneias, em Atenas. A figura de Homero domina, como autor mítico da grande poesia épica, que é declamada por recitadores

profissionais, os rapsodos (ῥάψῳδος), que se faziam acompanhar por um ramo de loureiro, símbolo de Apolo.

Ao contrário do rapsodo, o aedo (ἀοιδὸς) era simultaneamente autor e intérprete dos seus poemas, que recitava e cantava acompanhando-se à lira (φόρμιγξ), o que é confirmado tanto pelos textos como pela arqueologia, estando amplamente representado em magníficos exemplares de cerâmica. A lira é o instrumento de Apolo, como Homero nos apresenta o deus, no Canto I da Ilíada, estando reservado às Musas o papel de cantoras:

“ὣς τότε μὲν πρόπαν ἦμαρ ἐς ἠέλιον καταδύντα δαίνυντ', οὐδέ τι θυμὸς ἐδεύετο δαιτὸς ἐί̈σης, οὐ μὲν φόρμιγγος περικαλλέος ἣν ἔχ' Ἀπόλλων,

Μουσάων θ' αἳ ἄειδον ἀμειβόμεναι ὀπὶ καλῇ.” (Il. I.603)4

O facto de o aedo usar o mesmo instrumento que o deus é revelador da origem simbólica do seu dom. Tanto na Ilíada como na Odisseia, obras que integram secções originárias de diferentes épocas, mas que, na sua essência, retratam uma realidade próxima do séc. VIII a.C., o aedo é apresentado como um homem especial, a quem os deuses concederam capacidades invulgares, vedadas aos outros humanos. O seu estatuto social reflecte a sua importantíssima função. No Canto I da Odisseia, Telémaco, dirigindo-se aos pretendentes a sua mãe Penélope, refere o aedo Fémio como possuidor de uma voz semelhante aos deuses (θεοῖς ἐναλίγκιος αὐδήν):

“μητρὸς ἐμῆς μνηστῆρες ὑπέρβιον ὕβριν ἔχοντες, νῦν μὲν δαινύμενοι τερπώμεθα, μηδὲ βοητὺς

ἔστω, ἐπεὶ τόδε καλὸν ἀκουέμεν ἐστὶν ἀοιδοῦ

τοιοῦδ' οἷος ὅδ' ἐστί, θεοῖς ἐναλίγκιος αὐδήν.” (Od. I.368-371)5

4 - “Desse modo, festejaram durante todo o dia até que o Sol se pôs, e nenhum coração sentiu a falta da sua parte igual,

nem da bela lira de Apolo, nem das Musas, que cantaram à vez com as suas belas vozes.”

5 - “Pretendentes à minha mãe, de insolência desmedida, Por agora desfrutemos, e que não haja qualquer clamor, Pois que é belo ouvir um aedo como este,

Homero qualifica Demódoco, outro aedo que é retratado na Odisseia, como “honrado pelo povo” (λαοῖσι τετιμένον):

“κῆρυξ δ' ἐγγύθεν ἦλθεν ἄγων ἐρίηρον ἀοιδόν,

Δημόδοκον λαοῖσι τετιμένον:” (Od. VIII.471-472)6

No canto XVII, com Ulisses já regressado a Ítaca, o aedo é classificado entre os demiurgos (δημιοεργοὶ), alguém que trabalha para o bem do povo, no mesmo plano que os adivinhos, os médicos e os carpinteiros, sendo especificamente caracterizado como aquele cujas palavras são inspiradas pela divindade:

“τίς γὰρ δὴ ξεῖνον καλεῖ ἄλλοθεν αὐτὸς ἐπελθὼν ἄλλον γ', εἰ μὴ τῶν οἳ δημιοεργοὶ ἔασι,

μάντιν ἢ ἰητῆρα κακῶν ἢ τέκτονα δούρων,

ἢ καὶ θέσπιν ἀοιδόν, ὅ κεν τέρπῃσιν ἀείδων;

οὗτοι γὰρ κλητοί γε βροτῶν ἐπ' ἀπείρονα γαῖαν:” (Od. XVII.382-386)7

Encontramos no Canto VIII da Odisseia uma descrição pormenorizada do grandioso festim com que o rei Alcínoo recebe Ulisses. O poderoso rei manda chamar Demódoco, o aedo, que classifica de divino (θεῖον), pela sua capacidade de deleitar todos aqueles que o ouvem, atribuindo ao deus a origem do seu dom, quando canta algo que lhe inspira o coração (θυμὸς):

“καλέσασθε δὲ θεῖον ἀοιδὸν

Δημόδοκον: τῷ γάρ ῥα θεὸς πέρι δῶκεν ἀοιδὴν

τέρπειν, ὅππῃ θυμὸς ἐποτρύνῃσιν ἀείδειν.” (Od. VIII.43-45)8

6 - Então, o arauto aproximou-se, trazendo o fiel aedo, Demódoco, honrado pelo povo.

7 - “Pois quem irá convidar um estranho a outro lugar,

que não seja um sábio artesão que trabalhe para o bem do povo, um adivinho, ou um médico para os males, ou um construtor,

ou então um aedo inspirado pelos deuses, que nos delicie com o seu canto, pois esses são bem-vindos pelos homens por toda a Terra infinita.”

Pouco depois, chega o arauto, trazendo Demódoco pela mão, devido à sua cegueira. Para Homero, ele é amado pelas Musas, que lhe concederam um doce canto:

“κῆρυξ δ᾽ ἐγγύθεν ἦλθεν ἄγων ἐρίηρον ἀοιδόν,

τὸν πέρι μοῦσ᾽ ἐφίλησε, δίδου δ᾽ ἀγαθόν τε κακόν τε·

ὀφθαλμῶν μὲν ἄμερσε, δίδου δ᾽ ἡδεῖαν ἀοιδήν.” (Od. VIII.62-64)9

Ulisses, depois de ouvir Demódoco cantar os amores de Ares e Afrodite, corta ele próprio a carcaça de javali, que manda servir ao aedo, como prova do seu apreço, porque, entre todos os homens que povoam a terra, eles são dignos de honra e respeito (τιμῆς ἔμμοροί εἰσι καὶ αἰδοῦς), pois a Musa ensinou-lhes os cantos (σφέας οἴμας μοῦσ' ἐδίδαξε), porque estima a classe dos aedos (φίλησε δὲ φῦλον ἀοιδῶν):

“δὴ τότε κήρυκα προσέφη πολύμητις Ὀδυσσεύς, νώτου ἀποπροταμών, ἐπὶ δὲ πλεῖον ἐλέλειπτο, ἀργιόδοντος ὑός, θαλερὴ δ' ἦν ἀμφὶς ἀλοιφή: “κῆρυξ, τῆ δή, τοῦτο πόρε κρέας, ὄφρα φάγῃσιν, Δημοδόκῳ: καί μιν προσπτύξομαι ἀχνύμενός περ: πᾶσι γὰρ ἀνθρώποισιν ἐπιχθονίοισιν ἀοιδοὶ τιμῆς ἔμμοροί εἰσι καὶ αἰδοῦς, οὕνεκ' ἄρα σφέας οἴμας μοῦσ' ἐδίδαξε, φίλησε δὲ φῦλον ἀοιδῶν.” (Od. VIII.474-481)10 8 - “Fazei vir aqui o divino aedo, Demódoco;

pois o deus lhe concedeu o dom de nos deleitar, quando canta o que o coração lhe inspira.”

9 - “Então, o arauto aproximou-se, trazendo consigo o leal aedo,

aquele que a Musa mais amou entre todos, e lhe deu tanto de bom como de mau: dos olhos o privou, mas um doce canto lhe concedeu.”

10 - “Então, o muito astucioso Ulisses dirigiu-se ao arauto, cortando um pedaço das costelas de um javali de presas brancas,

mas deixando ficar ainda bastante, cheias de rica gordura de ambos os lados: “Arauto, leva esta carne a Demódoco, para que ele a coma.

Irei abraçá-lo, apesar da minha amargura.

Entre todos os homens que povoam a terra, eles são dignos de honra e respeito, pois a Musa ensinou-lhes os cantos, porque estima a classe dos aedos.»”

Nos exemplos apontados, encontramos três pistas para a compreensão do modo como, já num período primitivo da Antiguidade Clássica, se entendia a função do cantor: por um lado, é alguém que consegue influenciar o estado emocional do seu auditório; por outro, essa capacidade depende do seu próprio estado emocional, através de um processo classificado como ‘inspiração’. Por último, deve essa capacidade a factores externos, independentes da sua vontade, ou seja, à benevolência de um deus. Este aspecto é realçado por E. R. Dodds (DODDS, 1951), ao recordar que, no período em questão, quando o autor da épica homérica se refere ao dom concedido pelas Musas ao aedo, não o está a fazer como uma fórmula de sentido vazio, mas sim a um sentimento inspirado pela profunda religiosidade grega. Esse dom divino, concedido a alguns mortais escolhidos, como os adivinhos e os aedos, é uma faculdade misteriosa, que foge ao controlo do seu possuidor, e depende inteiramente da graça divina. Este é o poder de falar a verdade, no sentido do conhecimento dos factos passados e dos futuros.

Consideremos ainda duas passagens particularmente interessantes, onde Homero descreve o efeito que o canto dos aedos provoca em dois dos seus mais ilustres ouvintes, Penélope e Ulisses. Na primeira, passada no palácio de Ulisses, na ilha de Ítaca, a sua fiel esposa Penélope e o seu filho Telémaco esperam o seu regresso para se poderem libertar dos pretendentes. Homero retrata a profunda emoção que se apodera de Penélope, ao ouvir a narrativa de Fémio sobre o penoso regresso dos Aqueus após a guerra de Tróia:

“δακρύσασα δ' ἔπειτα προσηύδα θεῖον ἀοιδόν: “Φήμιε, πολλὰ γὰρ ἄλλα βροτῶν θελκτήρια οἶδας, ἔργ' ἀνδρῶν τε θεῶν τε, τά τε κλείουσιν ἀοιδοί: τῶν ἕν γέ σφιν ἄειδε παρήμενος, οἱ δὲ σιωπῇ οἶνον πινόντων: ταύτης δ' ἀποπαύε' ἀοιδῆς λυγρῆς, ἥ τέ μοι αἰεὶ ἐνὶ στήθεσσι φίλον κῆρ τείρει, ἐπεί με μάλιστα καθίκετο πένθος ἄλαστον. τοίην γὰρ κεφαλὴν ποθέω μεμνημένη αἰεί, ἀνδρός, τοῦ κλέος εὐρὺ καθ' Ἑλλάδα καὶ μέσον Ἄργος.”” (Od. I.336-344)11

11 - “Então, lavada em lágrimas, dirigiu-se ao divino aedo:

«Fémio, conheces bem muitas outras coisas que maravilham os mortais, tanto obras dos homens como dos deuses, que os aedos celebram; canta uma de entre essas, sentado junto a mim, enquanto

em silêncio bebem o seu vinho; cessa esse canto lamentoso que sempre me lacera no peito o pobre coração,

Na segunda, a detalhada descrição dos efeitos causados pela emoção que se apodera de Ulisses, ao ouvir Demódoco relatar o episódio em que os Aqueus, sob o seu comando, entraram na cidade de Tróia no interior de um cavalo de madeira, levados pelos troianos, e levaram a destruição à cidade: “ταῦτ' ἄρ' ἀοιδὸς ἄειδε περικλυτός: αὐτὰρ Ὀδυσσεὺς τήκετο, δάκρυ δ' ἔδευεν ὑπὸ βλεφάροισι παρειάς. ὡς δὲ γυνὴ κλαίῃσι φίλον πόσιν ἀμφιπεσοῦσα, ὅς τε ἑῆς πρόσθεν πόλιος λαῶν τε πέσῃσιν, ἄστεϊ καὶ τεκέεσσιν ἀμύνων νηλεὲς ἦμαρ: ἡ μὲν τὸν θνήσκοντα καὶ ἀσπαίροντα ἰδοῦσα ἀμφ' αὐτῷ χυμένη λίγα κωκύει: οἱ δέ τ' ὄπισθε κόπτοντες δούρεσσι μετάφρενον ἠδὲ καὶ ὤμους εἴρερον εἰσανάγουσι, πόνον τ' ἐχέμεν καὶ ὀιζύν: τῆς δ' ἐλεεινοτάτῳ ἄχεϊ φθινύθουσι παρειαί: ὣς Ὀδυσεὺς ἐλεεινὸν ὑπ' ὀφρύσι δάκρυον εἶβεν. ἔνθ' ἄλλους μὲν πάντας ἐλάνθανε δάκρυα λείβων, Ἀλκίνοος δέ μιν οἶος ἐπεφράσατ' ἠδ' ἐνόησεν, ἥμενος ἄγχ' αὐτοῦ, βαρὺ δὲ στενάχοντος ἄκουσεν. αἶψα δὲ Φαιήκεσσι φιληρέτμοισι μετηύδα: “κέκλυτε, Φαιήκων ἡγήτορες ἠδὲ μέδοντες, Δημόδοκος δ' ἤδη σχεθέτω φόρμιγγα λίγειαν: οὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόμενος τάδ' ἀείδει. ἐξ οὗ δορπέομέν τε καὶ ὤρορε θεῖος ἀοιδός, ἐκ τοῦ δ' οὔ πω παύσατ' ὀιζυροῖο γόοιο ὁ ξεῖνος: μάλα πού μιν ἄχος φρένας ἀμφιβέβηκεν.”(Od. VIII.521-541)12 Cheia de saudade, recordo sem cessar a tão querida figura do meu marido,

de quem a fama chega a toda a Hélade e ao centro de Argos.»”

12 - “Esta canção cantou o celebrado aedo: mas Ulisses estava desfeito, lavado em lágrimas que lhe corriam dos olhos pelas faces abaixo. Como a mulher que chora abraçando o caro esposo,

Em ambas, o canto induz um nível de emoção de tal modo elevado que provoca não só alterações no estado de espírito como somatizações claramente perceptíveis. Mais contido no caso de Penélope, que, em pranto (δακρύσασα), pede ao aedo para parar o seu canto, pois que este sempre lhe lacera no peito o pobre coração (ἥ τέ μοι αἰεὶ ἐνὶ στήθεσσι φίλον κῆρ τείρει), provocando-lhe uma angústia infindável (πένθος ἄλαστον), mas atingindo um nível heróico, no caso do guerreiro aqueu. A descrição pungente da sua reacção ao canto de Demódoco é um momento impressionante de realismo e humanidade: “Ulisses estava desfeito, lavado em lágrimas que lhe corriam dos olhos pelas faces abaixo”, e, numa comparação inexcedível de realismo, descreve a respiração arquejante, os gritos, as convulsões, da mulher que tenta defender o cadáver do marido acabado de cair às mãos dos inimigos. Os soluços profundos e os gemidos de dor de Ulisses provocados pelo canto de Demódoco obrigaram o seu anfitrião a interromper o aedo. Em ambos os casos temos uma referência explícita a um factor essencial para a indução do estado emotivo: a memória, cuja função aprofundaremos quando nos debruçarmos sobre a abordagem da emoção sob o ponto de vista da psicologia.

Ao longo da História, o cantor esteve sempre ligado às manifestações que projectam o Homem para lá da sua dimensão, muitas vezes intimamente ligado a funções religiosas – precisamente no sentido etimológico de ‘religião’, capacidade de estabelecer uma relação, uma ‘ponte’ entre a realidade sensível e um outro nível, impossível de atingir por via racional. Mesmo quando se afasta desta sua função para se afirmar no mundo do profano, mantém no essencial a natureza da sua arte: não se afirma através das palavras que canta, mas pelo modo como as consegue manifestar no plano da realidade sonora. Por isso, sempre lhe coube um papel de especial relevo, tanto maior quanto as suas capacidades o distinguem dos restantes. A própria designação de

que caiu frente à sua cidade e ao seu povo, ao procurar

afastar esse impiedoso dia da sua cidade e dos seus filhos; Ao vê-lo morrer, respirando arquejante,

a ele agarrada, grita em voz alta; os inimigos, por trás, batem-lhe com as espadas no meio das costas e nos ombros, para a levar para a escravidão, onde a esperam sacrifícios e miséria. As suas faces consomem-se de dor:

do mesmo modo rolavam lágrimas piedosas dos olhos de Ulisses. De todos os outros escondeu as lágrimas que chorava,

apenas Alcínoo se apercebeu, pois, sentado a seu lado, ouvia os seus gemidos profundos.

Imediatamente se dirigiu aos Feaces, que amam os remos: Ouvi, ó chefes e conselheiros dos Feaces,

que Demódoco ponha de lado por agora a lira de som brilhante: pois não canta de modo a agradar a todos.

Desde que começámos a cear e o divino aedo iniciou o seu canto, o estrangeiro não cessou os seus gemidos dolorosos.

‘Divo’ ou ‘Diva’ que se atribui a determinados cantores é uma reminiscência da sua função primordial, que o aproxima da divindade, devido a ‘dons’ ou capacidades que o público não sabia e não sabe ainda muito bem a quem atribuir. Em Itália, pátria da ópera, é comum designar esta superior capacidade de alguns eleitos por fuoco sacro, fogo sagrado. De facto, e só para citar um exemplo, Renata Tebaldi, uma das mais carismáticas ‘divas’ que jamais pisou um palco, reflectindo sobre as suas capacidades, disse: “Sei que a minha voz entrou nos corações de muita gente e provocou reacções muito belas. Alguns, ao ouvirem-me cantar, tornaram-se mais religiosos; outros, que estavam doentes, sentiram alegria; amigos meus, quando estavam no hospital, tocavam as minhas gravações sempre que se sentiam doentes; todos diziam que a minha voz lhes dava a força necessária para suportarem a dor. Portanto, como não me hei-de sentir grata por este grande dom?”

Reflexão crítica

Considerámos apenas o papel do cantor no contexto da sociedade grega num período arcaico, tal como é descrito nos poemas homéricos. Embora esta função essencial se mantivesse durante séculos, em contextos históricos e sociais diferentes, o seu papel mudou. Mesmo na própria Grécia, a música cantada teve muitas outras funções, distintas das de uma sociedade onde os valores da arete (v. 2.1) eram equiparados aos da bravura em combate.

Uma abordagem complementar sob o ponto de vista da psicologia social seria bastante esclarecedora relativamente a processos utilizados para a indução de emoções num grupo, contribuindo para a compreensão de alguns aspectos motivacionais e comportamentais. De facto, quando há grande empatia entre o cantor e o público, o que acontece muitas vezes no caso de figuras icónicas, muitas das suas reacções estão condicionadas, como no caso de um líder político ou religioso. Em ambas as situações, estamos perante grupos que compartilham determinados valores, estéticos, políticos ou religiosos, de que o orador ou o cantor funcionam como símbolo aglutinador. No entanto, embora o processo tenha vários pontos comuns, não cabe no objectivo deste trabalho, já que, no caso da música vocal, ao contrário dos fenómenos de massas de natureza política ou religiosa, o conteúdo informativo não é relevante. Por essa razão, embora este campo constitua por si só matéria válida para um estudo independente, a análise dos indicadores emocionais passaria a ser uma questão acessória.

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