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Especificidade da obra musical: efemeridade e subjectividade Coexistência de duas categorias textuais na música vocal: poética e musical.

Anexo IV – Paradigmas de comportamento vocal – Valores totais de intensidade relativa dos parciais

Em 3.1, são referidas as diferentes abordagens da psicologia moderna relativamente à emoção, começando pela relação entre os processos cognitivos e emocionais segundo os modelos

1. Arte e Emoção – Introdução

1.2. Especificidade da obra musical: efemeridade e subjectividade Coexistência de duas categorias textuais na música vocal: poética e musical.

Uma obra musical só se encontra plenamente realizada no momento da sua execução, já que é aí que tem lugar a sua recriação. Este torna-se, assim, um momento único, irrepetível. A execução faz parte integrante da sua natureza intrínseca. A sua representação gráfica não é mais do que uma espécie de conjunto de instruções segundo uma linguagem codificada, para permitir a sua realização efectiva. Uma segunda execução, pelos mesmos intérpretes, para o mesmo público, constituirá sempre um momento distinto, diferente do primeiro. O mesmo se poderá dizer de um poema, ou de uma qualquer obra literária, se bem que a sua leitura dependa apenas da mediação do leitor. Claro que podemos ler uma obra musical, olhar a partitura e associar mentalmente os sons que lhe correspondem, mas isso não é senão uma imagem mental da sua efectivação. Ao contrário das artes do espaço, que podemos olhar demoradamente, observando cada detalhe pela ordem que desejamos, demorando-nos na sua fruição durante todo o tempo que desejarmos, a obra musical vai sendo recriada, do início até ao fim, desvanecendo-se no silêncio final. Podemos dizer que a poesia e o teatro, na sua plena realização, comungam das mesmas características. Porém, um poema ou uma tragédia podem ser lidos por cada pessoa do público a que se destinam, independentemente da sua efectivação em palco, dispensando o leitor a função deixada ao executante ou intérprete. Evidentemente que a obra musical já está na partitura escrita pelo compositor, mas mesmo um músico que a consegue apreender pela simples leitura da partitura está apenas a evocar atmosferas sonoras imaginárias. A fruição integral da obra revela-se apenas no momento da sua execução.

Aliada à subjectividade característica a toda a fruição artística, a obra musical vê-se ainda acrescida da subjectividade intrínseca à sua natureza: de cada vez que for executada, será sempre diferente, independentemente de quão fidedigna procure ser a sua leitura. Por isso se fala de recriação, para além de interpretação.

Há uma característica distintiva da obra musical, relativamente às outras artes, mesmo as que como ela se desenvolvem no tempo: a sua natureza mais essencial não se encontra na palavra, mesmo quando a utiliza, como no caso da música vocal. A sua linguagem, se assim nos podemos exprimir (pois que, de facto, não se trata de uma linguagem no verdadeiro sentido do termo), distingue-se das outras por uma série de aspectos que são muito mais subjectivos, por um lado, e, de certo modo, mais voláteis.

Embora a música compartilhe com as artes da palavra da utilização de sons diferenciados, a articulação de segmentos fonéticos não é, em si, geradora de sentido, ou, pelo menos, de um sentido de tipo conceptual. Uma passagem de uma obra musical poderá evocar, num determinado ouvinte, uma sensação, mais provavelmente uma emoção, ou até uma imagem, ao contrário do que

acontece com a linguagem falada, em que há uma relação directa entre um fonema específico, ou um grupo de fonemas, e um conceito. A sua função é, neste caso, essencialmente, informativa. Já numa obra poética, ou mesmo teatral, a palavra é utilizada como portadora de uma carga semântica suplementar, em que a própria informação só é relevante quando potenciadora de sentidos que estimulam memórias emocionais. O que aproxima as duas linguagens é precisamente o conjunto de sentidos que estão para lá da carga informativa da palavra, enquanto portadora de sentido conceptual. O texto literário utilizado numa obra musical está muito mais próximo da sua função poética do que meramente informativa, excepção feita nos casos em que este é utilizado como linguagem falada – no caso de obras dramáticas, em que a sua função é precisamente a mesma que assume numa obra teatral, ou quando o sentido informativo é a sua função primordial, no caso de obras que utilizam texto declamado, como, por exemplo, “Ein Überlebender aus Warschau”, de Schönberg. Mesmo nestes casos, o compositor espera uma declamação em que a capacidade expressiva do narrador seja particularmente relevante. Articular o texto de uma obra deste tipo como um noticiário aniquilaria inteiramente a sua dimensão artística. Afinal, o que nos induz estados emocionais durante a execução de uma obra vocal é uma correspondência entre os dois níveis semânticos, onde a informação não verbal potencie a informação conceptual. Podemos ter uma noção precisa do peso das componentes não verbais ao ouvirmos um cantor de grandes capacidades expressivas a cantar numa língua que ignoramos. Um caso que me vem imediatamente à mente, por provir de uma cultura distinta da ocidental será, para um público não falante de árabe, a da grande diva egípcia Umm Kulthum, ou de Amália, para o público japonês, que a venera. Mesmo privados da compreensão do texto cantado, ou das subtilezas da complexa estrutura musical, poucos ficarão alheios à intensidade de cambiantes expressivos que a grande cantora conseguia transmitir.

Poder-se-ia reduzir esta dicotomia entre aspectos verbais e não verbais da linguagem a aspectos conscientes, relativos ao processo cognitivo – traduzíveis em linguagem verbal – e aspectos inconscientes, relativos aos processos emocionais – não traduzíveis em linguagem verbal, pelo menos de imediato, ou na sua totalidade. Essa abordagem seria, mesmo assim, demasiado simplista, pois que muitos aspectos não verbalizáveis da experiência emocional podê-lo-iam ser num segundo nível do processo de tomada de consciência, e muitos aspectos directamente relacionados com o processo cognitivo estão incompletos sem a carga não verbal, de natureza emocional, que os acompanha. Afinal, a linguagem verbal é, segundo Damásio, uma conversão de imagens não linguísticas que representam entidades, eventos, relações e inferências. O seu argumento para a existência de um nível de consciência de si independente da linguagem verbal e anterior a ela, que denomina “consciência nuclear”, baseia-se no facto de que a linguagem não nasce a partir do nada. Ela dá-nos a capacidade de atribuir nomes para as coisas e consciencializar

as relações entre conceitos. Partindo do princípio de que a linguagem se relaciona com o conceito de si mesmo e a consciência do mesmo modo que para a representação do mundo exterior, “simbolizando em palavras e frases aquilo que começa por existir sob uma forma não verbal”, então é forçoso que exista “um si não verbal e um conhecimento não verbal para os quais a palavra ‘eu’ e ‘mim’ ou a frase ‘eu conheço’ constituem as traduções apropriadas em qualquer linguagem. A partir daí, é necessário admitir a existência “de uma imagem não verbal de conhecimento centrada num si que precede e motiva essa frase verbal” (DAMÁSIO, 1999).

Reforçando esta evidência, estudos realizados com doentes que apresentavam graves alterações da linguagem demonstraram que, independentemente do grau de deficit das suas capacidades de expressão, os seus processos de pensamento se mantinham essencialmente intactos, assim como o seu grau de consciência, donde Damásio conclui que a contribuição da linguagem para a mente é admirável, permitindo atingir níveis de consciência alargada muito mais complexos, mas que é nula para a consciência nuclear. Esta encontra-se alterada apenas em certos casos, como os mutismos acinéticos, as crises de ausência e automatismos epilépticos, no estado vegetativo persistente, no coma, no sono profundo (a fase do sono em que não se produzem sonhos) e na anestesia profunda (DAMÁSIO, 1999).

Podemos, até certo ponto, relacionar as componentes não verbais do texto com os aspectos da compreensão de mensagens, estímulos e informações do meio exterior relativos à consciência nuclear, deixando aos vários níveis da consciência alargada os aspectos mais elaborados, veiculados pelas componentes verbais – e, no caso do texto cantado, também pelas musicais. Este ponto levanta uma questão muito pertinente, pois os ouvintes que têm um conhecimento mais ou menos aprofundado da estrutura musical têm uma apreensão muito diferente dos que captam apenas um conjunto de sons mais ou menos ordenado, mas sem compreenderem a lógica dessa ordenação. A audição de certas peças musicais pode provocar estados de encantamento absoluto no ouvinte, mesmo quando este ignora por completo a lógica que subjaz à ordenação dos sons. Nesse caso, penso que os aspectos musicais são integrados nos outros sinais relativos à consciência nuclear, ou, pelo menos, estes têm uma importância muito maior do que os que apelam para a consciência alargada. Quando aumenta a compreensão daquilo a que poderemos chamar, embora de uma forma não muito precisa, a gramática musical, esses aspectos de natureza mais essencial vão perdendo importância, à medida que aspectos como o contorno de uma frase, a progressão da estrutura harmónica subjacente, elementos contrapontísticos ou outros vão ganhando espaço. Neste processo, a fruição das componentes musicais tem muito mais a ver com zonas muito mais elaboradas da nossa consciência. À medida que o número de zonas de conhecimento que enriquecem a audição musical aumenta, vão-se acumulando camadas sobrepostas de abordagem analítica do processo de composição (material temático, sequências harmónicas, motivos rítmicos),

comparações com outro material musical armazenado em memória. Quando um ouvinte culto e conhecedor dos processos de composição está perante um determinado fragmento musical, é despoletado um processo que evoca a vários níveis de consciência um conjunto vasto de conhecimentos abrangendo processos de composição, memórias de outros fragmentos semelhantes, de outros compositores, além de toda a carga de conhecimentos associada relativa a outras formas de arte do mesmo período. Este processo, muito mais enriquecedor do que o de um ouvinte que não tenha a mesma carga de conhecimentos, pode no entanto não ser tão intenso como o de um ouvinte inteiramente leigo, para quem o conjunto de sons que está a ouvir evoca seguramente muito menos níveis de consciência alargada, situando-se muito mais próximo do encantamento original provocado pela fruição de uma obra sem qualquer carga de conhecimentos associados.

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