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Darwin e o papel da emoção numa perspectiva de adaptação evolutiva

Anexo IV – Paradigmas de comportamento vocal – Valores totais de intensidade relativa dos parciais

Em 3.1, são referidas as diferentes abordagens da psicologia moderna relativamente à emoção, começando pela relação entre os processos cognitivos e emocionais segundo os modelos

2. A Emoção na Filosofia – Introdução

2.3. Darwin e o papel da emoção numa perspectiva de adaptação evolutiva

Muitos dos caminhos que a Ciência ainda hoje segue foram abertos por Charles Darwin, incluindo a própria metodologia em que se baseia a investigação científica. A própria concepção da vida como um processo evolutivo contínuo constitui uma abordagem revolucionária, com todas as suas implicações, inclusivamente na sua aplicação aos fenómenos psicológicos. É indispensável uma referência ao seu trabalho, já que Darwin investigou exaustivamente a emoção e as suas expressões sob um ponto de vista psicofisiológico. Em The Expression of Emotion in Man and

Animals (DARWIN, 1899), analisa a expressão da emoção na face, no corpo e na voz, num estudo

pioneiro, onde defende, com base em critérios experimentais, a universalidade da expressão emocional, cujos pressupostos serviram de base para a corrente de teorização psicobiológica dominante na psicologia da emoção (Ekman, Izard, Tomkins, p. ex.). Outros investigadores e cientistas já se tinham debruçado sobre as relações entre a emoção e a sua expressão facial. Darwin cita os estudos do pintor francês Le Brun nas suas “Conférences sur l'expression des différents caractères des passions”, editada em Paris, em 1667. As suas notas são extraídas do texto da edição de “L'Art de connaître les Hommes”, do fisionomista G. Lavater, (LAVATER, 1820), onde se incluem os comentários e observações de M. Moreau sobre as relações entre a emoção e a sua expressão facial, numa análise relativamente detalhada dos processos musculares envolvidos. Darwin reconhece como precursora de uma abordagem científica a obra de Sir Charles Bell, “Anatomy and Philosophy of Expression”, de 1806, de que cita a edição póstuma de 1844, por incluir muita investigação do autor não publicada nas duas edições anteriores. O seu mérito foi o de encontrar uma relação entre os movimentos musculares, especificamente os respiratórios, e as variações da expressão facial da emoção. Darwin reconhece, no entanto, que a sua investigação não foi exaustiva. Para a sua investigação, apoiou-se em muitas outras obras de base científica sobre a expressão facial, como “The Physiology or Mechanism of Blushing,” de Burgess, publicado em 1839, o “Wissenschaftliches System der Mimik und Physiognomik”, do alemão Theodor Piderit, publicado em Detmold, Klingenberg, em 1867, que Darwin leu em tradução inglesa, ou ainda o “Mécanisme de la Physionomie Humaine”, de Duchenne, de 1862, que trouxeram para primeiro plano uma explicação científica, baseada portanto em provas laboratoriais, das alterações da expressão facial. A demonstração da estimulação eléctrica dos músculos feita pelo neurologista Duchenne constituiu um passo fundamental para a compreensão da transmissão dos impulsos nervosos. Darwin considera de grande interesse a obra do anatomista Pierre Gratiolet, editada em 1865, “De la Physionomie et des Mouvements d'Expression”, onde o autor estabelece uma relação entre os sentidos, o pensamento e a imaginação, e os fenómenos fisiológicos, defendendo que qualquer forma de pensamento, mesmo abstracto, tem uma relação directa com alterações que se

processam ao nível dos órgãos do corpo. Darwin, no entanto, tem interpretações divergentes sobre algumas das suas conclusões, não deixando de o classificar como um dos mais interessantes trabalhos sobre o assunto. Outro autor, defensor dos princípios evolucionistas, foi Herbert Spencer, de que Darwin cita algumas obras, como os “Principles of Psychology”, (SPENCER, 1855, 1872), ou os “Essays, Scientific, Political, and Speculative” (SPENCER, 1863), entre outras, nomeadamente os seus estudos sobre o riso. Spencer faz a distinção entre sensações e emoções, sublinhando a importância do papel daquilo que classifica como moldura corporal para a sua génese.

Na sua obra, Darwin estabelece uma relação entre estados emocionais e actos ou movimentos associados, partindo daquilo que classifica como de utilidade para a satisfação ou gratificação de determinados estados de espírito. Através da indução dos mesmos estados de espírito, pela associação através do que classifica como a força do hábito, esses movimentos ou acções têm tendência a ser repetidos, embora já fora do seu contexto de utilidade directa. Darwin reconhece neste processo a importância do sistema nervoso, estabelecendo uma relação entre a sua estrutura e a conectividade das células nervosas e o despoletar de estados emocionais. Partindo da observação directa de pessoas e animais, distingue entre acções e movimentos inatos e adquiridos, procurando concluir se as expressões da emoção seriam ou não universais, ou se dependeriam da aprendizagem. Para isso, estabeleceu um processo de pesquisa, por meio de ajuda externa, em inúmeras localizações fora do continente europeu, através de um complexo e extensivo questionário. Na sua busca de precisão científica, procurou deixar de parte todos os dados que não fossem obtidos por observação directa. As suas conclusões foram as que esperava encontrar, isto é, que ao mesmo estado de espírito corresponde uma uniformidade de expressões faciais. Esta questão foi, aliás, reiteradamente levantada pela investigação posterior, havendo pesquisa científica recente sobre o assunto.60

Darwin procura estabelecer uma distinção clara entre actos ou movimentos inatos e adquiridos, e, dentre os movimentos que não carecem de aprendizagem, caracterizar os actos reflexos, tanto através das suas características funcionais como da sua génese neurológica. Para isso, vai servir-se de dados obtidos através de investigação científica baseada em processos comparativos e na experimentação laboratorial, através de obras das grandes figuras da Medicina e Fisiologia modernas, como a de Johannes Peter Muller, cuja “Handbuch der Physiologie des Menschen” leu na tradução inglesa do médico Peter Baly, (BALY, 1838-42), “Body and Mind”, do pioneiro da psiquiatria inglesa Henry Maudsley (MAUDSLEY, 1870), do médico e investigador

60 Pesquisas levadas a cabo por Ekman e Friesen comparando as expressões emocionais de uma amostra de estudantes americanos e japoneses, ou com sujeitos de vários países (EKMAN, 2003), ou Izard, com observadores de oito culturas diferentes. Estudos feitos em povos sem acesso aos meios de comunicação mostraram os mesmos resultados (EIBL-EIBERSFELDT, 1970), e, especialmente, os extensos estudos de Karl

alemão Rudolf Virchow, (VIRCHOW, 1871), ou da obra “Leçons sur les Propriétés des Tissus Vivants”, do médico e cientista francês Claude Bernard (BERNARD, 1866). Dentre os vários autores que lhe serviram para fundamentar as suas pesquisas, uma referência especial para Thomas Huxley, uma figura incontornável na definição de uma nova metodologia de base científica, que defendeu vigorosamente durante toda a sua vida, embora de forma crítica, os princípios evolucionistas enunciados por Darwin. Dentre a sua vasta obra, cita com frequência passagens de “The Senses and the Intellect” (HUXLEY, 1864), ou “On Elementary Education in Physiology” (HUXLEY, 1877).

Desde o primeiro capítulo, procura definir claramente o processo que um determinado evento exterior, como um som inesperado, ou outro tipo de sinal que possa constituir ameaça, despoleta no organismo, através da estimulação de determinados grupos musculares pelo sistema nervoso. Consciente de que este tipo de actos ou movimentos reflexos são involuntários, procura na sua origem sinais do que pode constituir uma herança genética independente da aprendizagem. Numa perspectiva evolutiva, pressupõe que estes actos reflexos tenham sido, pelo menos, parcialmente, adquiridos pela repetição através de gerações, de movimentos ou actos que, na origem, teriam um objectivo preciso, o da protecção do indivíduo. Ao estabelecer uma relação entre determinados movimentos reflexos e a expressão das emoções, Darwin procura uma explicação que satisfaça os seus pressupostos de que todo o nosso comportamento, tal como toda a nossa fisiologia, se encontram estruturados de um modo definido pelas respostas mais adequadas de um organismo ou de uma espécie às condições do meio envolvente.

Um aspecto particularmente interessante, que reflecte uma atitude científica moderna, não antropocêntrica, é o de a sua investigação se basear em dados observados experimentalmente, não só em humanos, mas também em animais e até plantas, atribuindo ao Homem um lugar no panorama evolutivo semelhante ao de qualquer outra espécie, sujeito às mesmas leis da Biologia. Darwin está consciente de que o Homem partilha com as restantes espécies animais uma parte muito importante da sua Biologia, e que nada é estático na Natureza, sendo antes um reflexo da adaptação de cada espécie ao meio. De um modo que encontra eco nos mais recentes dados científicos, atribui as mesmas características aos fenómenos psicológicos.

Na sequência da sua obra, procura relacionar a influência das emoções através da acção do sistema nervoso sobre os músculos, os órgãos e glândulas, ou o sistema vasomotor, provocando alterações fisiológicas, como o aumento do ritmo cardíaco, o tremor, ou o rubor, por exemplo: “We thus see that the undirected radiation of nerve-force from the nerve-cells which are first affected – the long-continued habit of attempting by struggling to escape from the cause of suffering – and the consciousness that voluntary muscular exertion relieves pain, have all probably concurred in giving a tendency to the most violent, almost convulsive, movements under extreme suffering; and such

movements, including those of the vocal organs, are universally recognized as highly expressive of this condition.

We will now turn to the characteristic symptoms of Rage. Under this powerful emotion the action of the heart is much accelerated, or it may be much disturbed. The face reddens, or it becomes purple from the impeded return of the blood, or may turn deadly pale. The respiration is laboured, the chest heaves, and the dilated nostrils quiver. The whole body often trembles. The voice is affected. The teeth are clenched or ground together, and the muscular system is commonly stimulated to violent, almost frantic action. But the gestures of a man in this state usually differ from the purposeless writhings and struggles of one suffering from an agony of pain; for they represent more or less plainly the act of striking or fighting with an enemy.

(...) All these signs of rage are probably in large part, and some of them appear to be wholly, due to the direct action of the excited sensorium. But animals of all kinds, and their progenitors before them, when attacked or threatened by an enemy, have exerted their utmost powers in fighting and in defending themselves. Unless an animal does thus act, or has the intention, or at least the desire, to attack its enemy, it cannot properly be said to be enraged. An inherited habit of muscular exertion will thus have been gained in association with rage; and this will directly or indirectly affect various organs, in nearly

the same manner as does great bodily suffering.” (DARWIN, 1899)61

A vocalização, como expressão sonora de emoção, é compreendida como uma herança de situações de perigo originais, como pedidos de socorro das crias, por exemplo, enfatizando a importância da comunicação na expressão da emoção. A partir daqui, procura aprofundar a variedade de expressões sonoras utilizadas pelos animais, quer em circunstâncias que acarretam perigo ou sofrimento, quer como manifestação de sensações ou emoções positivas. Na sua aplicação ao Homem, cita o “The Origin and Function of Music”, dos “Essays, Scientific, Political, and Speculative” de Spencer (SPENCER, 1858), onde este filósofo qualifica as alterações sofridas pela voz durante a expressão das emoções, em intensidade e qualidade, ressonância, timbre e altura. A sua análise vai mais longe do que a de Spencer, procurando aprofundar as origens do próprio

61“Vemos assim que a irradiação indirecta da força nervosa a partir das células nervosas que são afectadas

em primeiro lugar – o hábito longamente adquirido de tentar escapar da causa do sofrimento através da luta – e a consciência de que o esforço muscular voluntário alivia a dor, todos concorreram provavelmente para criar uma tendência para os movimentos mais violentos, quase convulsivos, durante o sofrimento extremo; e tais movimentos, incluindo os dos órgãos vocais, são universalmente reconhecidos como altamente expressivos desta condição. (…) Sob esta poderosa emoção (a ira), a actividade do coração é muito acelerada, ou pode ser muito perturbada. A face torna-se vermelha, ou púrpura, devido ao impedimento do retorno do sangue ao coração, ou pode tornar-se de uma palidez de morte. A respiração é forçada, o peito eleva-se e as narinas dilatadas palpitam. Muitas vezes, o próprio corpo treme. A voz é afectada. Os dentes estão cerrados, ou rangem, e é comum o sistema muscular ser estimulado para uma acção violenta, muitas vezes frenética. Mas os gestos de um homem nesta condição diferem em geral das convulsões e lutas de alguém que sofre da agonia da dor; isto porque eles representam mais ou menos directamente os actos de bater ou lutar com um inimigo. (Charles Darwin, “Expression of Emotion in Man and Animals”, Capítulo III)

canto. Nesse sentido, estabelece uma relação entre os rituais de acasalamento em espécies animais e as expressões humanas de galanteio, considerando que as mais fortes emoções do Homem, como o amor, a rivalidade e o triunfo, constituem o ponto de partida para as primeiras manifestações de música vocal.

Darwin procura encontrar uma explicação para a carga emocional específica de cada tipo de som na base muscular e respiratória em que se baseia a emissão do som, e nas alterações na forma da boca para a emissão das diversas vogais, tal como sustenta Helmholtz na sua “Théorie Physiologique de la Musique”, editada em Paris (HELMHOLZ, 1868). Admite que haja uma relação entre a altura e intensidade sonoras e diferentes estados emocionais, embora de forma relativa, dado não haver uma correspondência directa entre a expressão de estados como o sofrimento ou o riso e a utilização de sons mais agudos ou mais graves, ou de maior ou menor intensidade.

Um ponto particularmente interessante tem a ver com a sua percepção de que poderá haver uma relação entre diferentes estados emocionais e a alteração da forma do tracto vocal, ou seja, que determinados estados emocionais possam provocar, de algum modo ainda não compreensível pela Ciência, alterações na forma do tracto vocal, ou se essas alterações serão produzidas por causas independentes.

A sua análise é bastante detalhada, mostrando estar consciente de que, ao transpor a sua abordagem para o campo da música vocal, há muitas questões estritamente musicais que estão na base da maior ou menor expressividade de uma determinada passagem.

Relativamente às alterações nos parâmetros fisiológicos observáveis em animais, em situações que provocam expressões emocionais intensas, Darwin divide os estados de espírito segundo a respectiva valência. Quando esta é agradável, como a alegria e o afecto, classifica-os como “excitantes”; quando é desagradável, como a dor, a ira, ou o terror, como “depressivos”. A sua abordagem das alterações que decorrem de perigo iminente lançou as bases da investigação posterior sobre o assunto, ainda hoje utilizada, como os conceitos de luta, fuga ou paralisação (“Fight or Flight”), noção introduzida muito mais tarde pelo médico e investigador Walter Cannon, em “Bodily Changes in Pain, Hunger, Fear and Rage: An Account of Recent Researches into the Function of Emotional Excitement” (CANNON, 1915).

No caso da expressão humana, a sua análise incide sobre os mecanismos musculares que provocam as alterações fisionómicas características de determinados quadros emocionais, onde apresenta não só uma descrição anatómica de cada músculo envolvido, como a relação entre a sua acção e a função biológica a que serve. Consciente de que a expressão emocional humana é em grande parte determinada pela aprendizagem individual e social, procura distinguir o que é inato do que será adquirido durante o crescimento. Para isso, recorre à observação em crianças e em pessoas

com quadros clínicos de deficiência mental que se tenham mantido imunes aos efeitos da aprendizagem social, o que ainda hoje é metodologia aceite na investigação científica.

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