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Atomos de um el´ ´ etron

No documento Ronei_fisica_quantica (páginas 140-146)

Um dos maiores sucessos na hist´oria da Mecˆanica Quˆantica foi a compre- ens˜ao do espectro de alguns ´atomos simples. Nesta sec¸c˜ao discutiremos o papel da equa¸c˜ao de Schr¨odinger neste processo. A equa¸c˜ao de Schr¨odinger n˜ao pode ser resolvida analiticamente para qualquer sistema atˆomico, mas apenas para alguns ´atomos hidrogen´oides. De fato, no seu trabalho original, Schr¨odinger resolveu explicitamente o ´atomo de hidrogˆenio. Sua solu¸c˜ao envolvia o estudo dos movimentos do pr´oton e do el´etron que comp˜oem o ´atomo de hidrogˆenio e ´e an´aloga `a formula¸c˜ao cl´assica de descrever o movimento em termos de um centro de massa. Dada a dificuldade na solu¸c˜ao da equa¸c˜ao de Schr¨odinger, n˜ao vamos resolvˆe-la explicitamente, mas t˜ao somente discutir seus resulta- dos, indicando o caminho da solu¸c˜ao. Todavia, cabe ressaltar que, apesar das dificuldades na resolu¸c˜ao de problemas de muitos corpos, a equa¸c˜ao de Schr¨odinger ´e largamente empregada, com o aux´ılio de computadores, na re- solu¸c˜ao de sistemas complexos em F´ısica da Mat´eria Condensada. Para tanto, utilizam-se solu¸c˜oes aproximadas, j´a que o potencial real n˜ao ´e bem conhecido, como a proposta pelo ganhador do Prˆemio Nobel de Qu´ımica de 1998, Walter Kohn18.

Supondo que possamos tratar um ´atomo de hidrogˆenio como uma ´unica part´ıcula: um el´etron com energia cin´etica p2 sujeito a um potencial coulom- biano V (r) = −kZer2, onde p ´e o momento do el´etron, µ sua massa reduzida19, Z seu n´umero atˆomico, e a carga do el´etron e r sua posi¸c˜ao. Nesse caso, a Equa¸c˜ao de Schr¨odinger em trˆes dimens˜oes assume a forma

−~2 2µ  ∂2 ∂x2 + ∂2 ∂y2 + ∂2 ∂z2 

Ψ(x,y,z) + V (x,y,z)Ψ(x,y,z) = EΨ(x,y,z). (6.36)

Por quest˜oes de simetria, o tratamento do problema proposto em coorde- nadas esf´ericas

     x = rcosθ y = rsenθ cosφ z = rsenθ senφ

18A Teoria do Funcional da Densidade (DFT) foi proposta por Walter Kohn em cola-

bora¸c˜ao com Pierre Hohember e Lu Jeu Sham e est´a fundamentada em dois trabalhos se- minais: P. Hohenberg and Walter Kohn Inhomogeneous electron gas, Physical Review 136, B864 (1964) e W. Kohn and L. J. Sham, Self-consistent equations including exchange and correlation effects, Physical Review 140, A1133 (1965).

19O uso da massa reduzida nos permite levar em considera¸ao a existˆencia do n´ucleo sem

6.7 ´Atomos de um el´etron Miotto e Ferraz 131 ´e mais adequado do que em coordenadas cartesianas, o que leva `a

−~ 2 2µ  1 r2 ∂ ∂r  r2∂Ψ(r,θ, φ) ∂r  1 senθ ∂ ∂θ  senθ∂Ψ(r,θ, φ) ∂θ  + 1 sen2θ ∂Ψ(r,θ, φ) ∂θ  + V (r)Ψ(r,θ, φ) = EΨ(r,θ, φ). (6.37)

Para resolver esse problema, supomos que seja poss´ıvel a separa¸c˜ao de vari´aveis Ψ(r,θ,φ) = R(r)Θ(θ)Φ(φ), o que permite a substitui¸c˜ao da equa¸c˜ao 6.37 por trˆes equa¸c˜oes diferenciais acopladas: em r (radial), em θ e em φ.

Como o potencial coulombiano apresenta apenas dependˆencia radial (po- tencial central), ele s´o aparecer´a na equa¸c˜ao dependente de r, e a equa¸c˜ao radial ter´a a forma:

−~ 2 2µ  1 r2 ∂ ∂r  r2∂R(r) ∂r  −kZe 2 r R(r) = ER(r). (6.38)

As equa¸c˜oes diferenciais em θ e φ n˜ao sofrem influˆencia do potencial, o que significa que as solu¸c˜oes aqui discutidas valem para qualquer potencial central. Em nosso estudo sobre a equa¸c˜ao de Schr¨odinger em coordenadas carte- sianas, vimos que a cada grau de liberdade (ou coordenada independente) est´a associado um n´umero quˆantico (que decorre das condi¸c˜oes de contorno do sistema). Assim, a solu¸c˜ao em coordenadas esf´ericas leva a trˆes n´umeros quˆanticos, simbolizados por n, l e m. Os n´umeros quˆanticos n1, n2 e n3 asso-

ciados `as coordenadas cartesianas eram independentes. Todavia, o mesmo n˜ao ocorre com os n´umeros quˆanticos associados `as coordenadas esf´ericas. Na ta- bela 6.1 apresentamos a forma das solu¸c˜oes para a equa¸c˜ao de Schr¨odinger em coordenadas esf´ericas, os valores poss´ıveis dos n´umeros quˆanticos associados e sua interpreta¸c˜ao f´ısica.

Utilizando as solu¸c˜oes para as equa¸c˜oes diferenciais acopladas apresentadas na tabela 6.1, podemos escrever a solu¸c˜ao geral para o ´atomo de hidrogˆenio na forma:

Ψn,l,m(r,θ,φ) = Cn,l,mRn,l(r)Θl,|m|(θ)eimφ, (6.39)

onde Cn,l,m´e uma constante de normaliza¸c˜ao. Observe que essa solu¸c˜ao geral

depende explicitamente dos n´umeros quˆanticos n, l e m. Da mesma forma, a energia tamb´em deve depender explicitamente dos mesmos n´umeros quˆanticos. Assim, ´e muito comum identificar n˜ao s´o a fun¸c˜ao de onda, mas tamb´em a energia e outros operadores utilizando o mesmo conjunto de ´ındices.

132 Miotto e Ferraz Introdu¸c˜ao `a Mecˆanica Quˆantica

Tabela 6.1: Descri¸c˜ao das solu¸c˜oes para a equa¸c˜ao 6.37 e suas respectivas interpreta¸c˜oes. Nas solu¸c˜oes apresentadas Z ´e o n´umero atˆomico do ´atomo hidrogen´oide; µ, a massa reduzida do el´etron; k =4π1

o, onde o´e a permissi-

vidade do v´acuo, e a carga do el´etron; Pl,|m|(cosθ) ´e uma Fun¸c˜ao de Legendre

Associada; Λn,lum polinˆomio; e ao o raio de Bohr (0,529177 ˚A).

coordenada r solu¸c˜ao Rn,l(r) ∝ e−Zr/nao  2Zr nao l Λn,l  2Zr nao 

n´umero quˆantico n

poss´ıveis valores 0, 1, 2, ...

a solu¸c˜ao da equa¸c˜ao radial fornece n´ıveis de energia interpreta¸c˜ao quantizados idˆenticos aos obtidos por Bohr

En= −µk

2e4Z2

2~2n2

coordenada θ

solu¸c˜ao Θ(θ) ∝ Pl,|m|(cosθ)

n´umero quˆantico l

poss´ıveis valores 0, 1, 2, ..., (n − 1) interpreta¸c˜ao quantiza¸c˜ao do momento angular

(L =pl(l + 1)~)

coordenada φ

solu¸c˜ao Φ(φ) ∝ eimφ

n´umero quˆantico m

poss´ıveis valores −l, −l + 1, −l + 2, ..., 0, 1, ..., l − 2, l − 1, l interpreta¸c˜ao quantiza¸c˜ao da componente z do momento angular

6.7 ´Atomos de um el´etron Miotto e Ferraz 133 Quer saber mais?

Na solu¸c˜ao do ´atomo de hidrogˆenio, a energia n˜ao depende dos n´umeros quˆanticos l e m porque escolhemos um potencial que ´e proporcional ao inverso do raio ao quadrado. De forma geral, a energia pode depender de todos os trˆes n´umeros quˆanticos. De fato, se al´em do potencial, tiv´essemos um campo magn´etico ~B = B ˆz, a coordenada z n˜ao mais poderia ser esco- lhida aleatoriamente, e ter´ıamos uma dependˆencia explicita em m na ener- gia. Experimentalmente, na presen¸ca de um campo magn´etico externo, observa-se uma separa¸c˜ao das raias espectrais, o que ´e conhecido como Efeito Zeeman. Para saber mais sobre este efeito, consulte, por exemplo, Paul Tipler, F´ısica, vol. 4, ´Otica e F´ısica Moderna, sec¸c˜ao 37.5.

Vamos agora explorar um pouco mais a solu¸c˜ao geral dada em 6.39. Consi- dere inicialmente o estado fundamental do sistema, ou seja, n = 1, l = m = 0. A exponencial que representa a dependˆencia em φ assume o valor 1. O mesmo ocorre com a Fun¸c˜ao de Legendre Associada, o que implica em termos ape- nas a parte radial da fun¸c˜ao de onda, que vale: Ψ1,0,0(r,θ,φ) = R1,0(r) =

C1,0,0e−Zr/nao. No caso de um ´atomo de hidrogˆenio, Z = 1 e a solu¸c˜ao reduz-

se a Ψ1,0,0 = R1,0(r) = C1,0,0e−r/nao. A constante C1,0,0 ´e determinada pela

condi¸c˜ao de normaliza¸c˜ao Z +∞ −∞ dx Ψ?1,0,0(r,θ,φ)Ψ1,0,0(r,θ,φ) = 1, e vale C1,0,0 = √1π  1 ao 32

. Assim, o estado fundamental do ´atomo de hi- drogˆenio ´e descrito por:

Ψ1,0,0(r,θ,φ) = 1 √ π  1 ao 32 e−aor , (6.40)

que depende explicitamente apenas de r. Os estados quˆanticos definidos por l = m = 0 s˜ao normalmente designados como estados s. De forma an´aloga, os estados excitados 2s, 3s,..., apresentam dependˆencias radiais similares:

Ψ2,0,0(r,θ,φ) = 1 4√π  1 ao 32 2 − r ao  e−2aor (6.41) Ψ3,0,0(r,θ,φ) = 1 81√3π  1 ao 32 27 − 18 r ao + 2r 2 a2 o  e−3aor (6.42) etc ....

Como vimos anteriormente, a densidade de probabilidade ´e proporcional a Ψ?Ψ e a densidade de carga, que ´e um observ´avel f´ısico, pode ser obtida de Ψ?eΨ, onde e ´e a carga elementar.

134 Miotto e Ferraz Introdu¸c˜ao `a Mecˆanica Quˆantica

Figura 6.12: Representa¸c˜ao da densi- dade de carga (superior) e da fun¸c˜ao de distribui¸c˜ao radial (inferior) do ´

atomo de hidrogˆenio. A nomenclatura Xs refere-se ao estado com n´umeros quˆanticos n = X (X = 1,2,3) e l = m = 0.

Na parte superior da figura 6.12 temos a representa¸c˜ao da densidade de carga para o estado fundamental 1s e para os estados excitados 2s e 3s do ´atomo de hidrogˆenio. Observe a forma esfericamente sim´etrica das densidades de carga. O decr´escimo exponencial da densidade pode ser mais facilmente avaliado a partir da fun¸c˜ao de distribui¸c˜ao radial re- presentada na parte inferior. A distˆancia mais prov´avel corresponde ao m´aximo da fun¸c˜ao de distribui¸c˜ao e ´e igual ao raio de Bohr para o es-

tado 1s. Para os estados 2s e 3s ob- servamos um m´aximo em torno de ao, mas m´aximos globais para valo-

res muito maiores. Note, tamb´em, que o n´umero de m´aximos nas dis- tribui¸c˜oes radiais ´e numericamente igual ao n´umero quˆantico n. Es- tados com n´umeros quˆanticos maio- res (n = 4, 5, 6, ...) apresentam com- portamento semelhante para a den- sidade de carga e para a fun¸c˜ao de distribui¸c˜ao radial.

Consideremos agora o caso onde l = 1. Conforme descrito na ta-

bela 6.1, o valor de m pode variar entre −l e l, ou seja, para l = 1 os valores poss´ıveis de m s˜ao −1, 0 e 1. Assim como no caso dos estados s, a nota¸c˜ao para os estados com l = 1 ´e muitas vezes feita utilizando uma letra, no caso p. Assim, temos l = 1 e m = 0 → pz, l = 1 e m = 1 → pxe l = 1 e m = −1 → py.

Os ´ındices x, y e z representam as dire¸c˜oes das coordenadas cartesianas e a escolha da associa¸c˜ao entre um dado valor de m e sua respectiva coordenada ´e feita por conven¸c˜ao. Observe na figura 6.13 que as densidades de carga as- sociadas aos estados p s˜ao sim´etricas em rela¸c˜ao ao plano nodal e apresentam o formato semelhante ao de um haltere. Esse formato de haltere da densidade de carga deriva diretamente das formas funcionais das fun¸c˜oes de onda, que no caso do ´atomo de hidrogˆenio (Z = 1) tem a forma:

Ψ2,1,0 = C2,1,0  r ao  e2aor cosθ (6.43) Ψ2,1,±1 = C2,1,±1  r ao 

6.7 ´Atomos de um el´etron Miotto e Ferraz 135

Figura 6.13: Representa¸c˜ao da densidade de carga para alguns estados do ´

atomo de hidrogˆenio. A nomenclatura pΛ refere-se ao estado com n´umeros

quˆanticos n = 2, 3, .., tal que se l = 1 e m = 0 → Λ = z, m = +1 → Λ = x, e m = −1 → Λ = y.

onde as constantes de normaliza¸c˜ao C s˜ao determinadas utilizando-se a condi¸c˜ao de normaliza¸c˜ao.

Al´em dos estados s e p discutidos explicitamente acima, outros estados quˆanticos tem caracter´ısticas comuns. Para os estados com l = 2, por exemplo, os poss´ıveis valores de m s˜ao −2, −1, 0, 1 e 2. Esses estados tamb´em s˜ao geralmente indicados pela associa¸c˜ao entre letras: dxy, dzx, dyz, e assim por

diante, de tal forma que a letra d est´a associada a l = 2 e os ´ındices ao n´umero quˆantico m. Da mesma forma, a estados com l = 3 e l = 4 associam-se as letras f e g respectivamente.

Quer saber mais?

As letras s, p, d n˜ao significam nada. No passado elas indicavam as linhas sharp (afilada), principal (principal), diffuse (difusa), e fundamental (fun- damental) do espectro ´optico dos ´atomos. Mas isso foi na ´epoca em que as pessoas n˜ao sabiam qual a origem de tais linhas. Depois de f n˜ao havia nomes especiais, assim continuamos hoje com as linhas g, h, etc. Vocˆe po- der´a visualizar as representa¸c˜oes das densidades de carga de alguns desses estados em http://www.d.umn.edu/˜pkiprof/ChemWebV2/AOs.

O mesmo tratamento utilizado para o ´atomo de hidrogˆenio pode ser esten- dido a todos os elementos da tabela peri´odica. A dificuldade est´a no fato de agora ser necess´ario o tratamento de um sistema de mais de duas part´ıculas. Sabemos da Mecˆanica Cl´assica que a solu¸c˜ao anal´ıtica de tal problema s´o foi obtida em alguns poucos casos. Todavia, podemos utilizar aproxima¸c˜oes num´ericas para obter tais solu¸c˜oes. De fato, nos estudos na ´area de F´ısica da Mat´eria Condensada, onde sistemas com muitos el´etrons s˜ao tratados, as solu¸c˜oes da Equa¸c˜ao de Schr¨odinger s˜ao obtidas atrav´es de tais aproxima¸c˜oes, como citado anteriormente.

136 Miotto e Ferraz Introdu¸c˜ao `a Mecˆanica Quˆantica Quer saber mais?

Em geral os estados quˆanticos atˆomicos s˜ao chamados simplesmente de orbitais. Assim, s˜ao comuns as referˆencias `a orbitais s, orbitais p, etc. To- davia, como vimos em nossa discuss˜ao, os el´etrons n˜ao descrevem ´orbitas, pois isso seria inconsistente com o Princ´ıpio de Incerteza de Heisenberg. Mesmo assim, o uso do termo orbital persiste ainda nos dias de hoje e sua raiz est´a no Modelo de Bohr e em seu sucesso na descri¸c˜ao dos n´ıveis de energia do espectro do hidrogˆenio. Lembre-se que as raias espectrais eram conhecidas com uma excelente precis˜ao e a excelente concordˆancia entre o Modelo de Bohr e os resultados experimentais contribu´ıram significati- vamente para sua aceita¸c˜ao. De fato, a obten¸c˜ao da mesma express˜ao, a partir de uma equa¸c˜ao de movimento para o el´etron, foi o primeiro grande sucesso da teoria de Schr¨odinger. Al´em disso, em contraste com as imagens pict´oricas associadas ao Modelo de Bohr, a Mecˆanica Quˆantica tem um car´ater bastante abstrato. Assim, a manuten¸c˜ao de algumas ex- press˜oes associadas ao Modelo de Bohr como o termo orbital sobrevive- ram ao advento da Mecˆanica Quˆantica. Existe inclusive uma teoria cha- mada Teoria do Orbital Molecular que ´e utilizada como uma ferramenta na compreens˜ao das liga¸c˜oes qu´ımicas entre mol´eculas. Saiba mais em http://zeus.qui.ufmg.br/˜ayala/matdidatico/tom.pdf.

No documento Ronei_fisica_quantica (páginas 140-146)