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Atributos do professor de FLE

No documento [ – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 176-182)

3. OS DOCUMENTOS OFICIAIS E OS REGIMES DE VERDADE

5.2 DISCURSOS SOBRE O ENSINO DE FRANCÊS COMO LÍNGUA

5.2.4 Atributos do professor de FLE

Ao elaborarmos a pergunta O que é necessário para ser um professor de FLE?, tínhamos como propósito identificar os possíveis imaginários acerca do que seria indispensável ao ensino de FLE na opinião dos professores atuantes nesse campo de ensino.

No terceiro capítulo dessa tese, debatemos alguns trechos dos documentos oficiais acerca de como eles orientam a prática do professor para que o mesmo seja legitimado enquanto profissional da educação. Vimos também no segundo capítulo, mais precisamente na seção 2.5, uma descrição dos papéis desempenhados pelo professor e pelo aluno segundo os imaginários sócio-discursivos circulantes. Contudo, objetivávamos ouvir dos próprios professores características consideradas indispensáveis ao seu trabalho para que tivessem sua prática legitimada. Tínhamos como hipóteses encontrar nos autorrelatos atributos como: falar bem a língua, conhecer a gramática, conhecer a França, conhecer culturas francófonas, etc.

Alguns enunciadores confirmam nossas hipóteses. Entretanto, as falas de outros enunciadores se voltam para aspectos comportamentais, como por exemplo, ter paciência e não perder o controle. Pensamos que os enunciadores elencariam uma série de características que julgassem inerentes à sua prática e se posicionariam em relação a elas, apresentando possíveis argumentos que justificassem seus pontos de vista. Destarte, faremos uma análise

orientada pela lógica argumentativa, visto que os discursos dos enunciadores foram organizados predominantemente pelo modo argumentativo.

Comentamos anteriormente que imaginávamos encontrar nas falas dos enunciadores descrições sobre características que constituem possíveis imaginários acerca do que seria indispensável no ensino de FLE na visão dos próprios professores de francês. Além disso, esperávamos que esses enunciadores pudessem ir mais longe e apresentassem opiniões favoráveis e desfavoráveis sobre a forma como sua prática é vislumbrada dentro das instituições de ensino ou até mesmo na sociedade. Os argumentos utilizados pelos enunciadores justificam a seguinte tese: ser professor vai muito além de passar um conhecimento a alguém. A maioria dos autorrelatos dos enunciadores menciona características inerentes ao imaginário que eles próprios manifestam sobre o que é ser um professor de FLE e deixam transparecer, por trás de suas falas, o que as instituições nas quais atuam supõem como atributos do professor.

Os procedimentos semânticos utilizados pelos enunciadores na organização dos discursos predominantemente argumentativos dialogam com valores compartilhados socialmente, sobretudo no âmbito do domínio do Ético. Há certo sentimento de incapacidade em desenvolver um trabalho tal como ele é arquitetado pelos documentos oficiais elaborados dentro e fora da instituição de ensino. Abaixo, seguem os relatos dos enunciadores retratando as múltiplas funções do profissional de Língua Francesa:

Domínio do Ético:

Exemplo 84: “Eu acho que para ser professor de qualquer disciplina tem que ter uma vontade muito

grande de saber que seu tempo na sua casa você vai trabalhar, que vai levar muito trabalho para casa, gostar do que faz, acreditar no que faz. Trabalhar língua estrangeira no colégio é muito mais difícil do que trabalhar no curso. No curso você tem a sala montada, o aluno se inscreveu porque ele quis, mas o curso não pode prescindir do colégio pois o primeiro contato do aluno com a língua

estrangeira é no colégio.” (enunciador V)

Exemplo 85: Agora, para ensinar língua estrangeira em uma escola, você tem que gostar, porque

senão a pessoa desiste. O que você vê a questão do menos respeito, menos valor...”; “é muita

barreira. Eu comecei diferente, eu vi outro tipo de escola...”; “cada vez mais é o não poder, o professor não pode isso, não pode aquilo. Então resta muito pouco para a gente poder. Eu não sou boazinha. Eu sou exigente e chata. Acho que isso é pré-requisito de professor senão não funciona.” (enunciador W)

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Para esses dois enunciadores em fim de carreira, V e W, ser professor requer uma dedicação muito grande ao trabalho, já que muitas das tarefas demandadas por essa profissão precisam ser executadas em espaço distinto da sala de aula. O enunciador V defende um aspecto mencionado pelos PCNs acerca da oferta do ensino de língua estrangeira na escola. O documento enfatiza que “seu ensino, como o de outras disciplinas, é função da escola, e é lá que deve ocorrer.” 24 Ele se queixa de não dispor dos recursos mínimos para preparar suas aulas nos moldes preconizados pelos documentos normatizadores. O enunciador W aponta para a questão da falta de liberdade do professor, revelando que ele tem cada vez menos voz em seu campo de atuação. Em sua opinião, uma característica comum aos professores é ser exigente e chato. Em meio a tantas dificuldades, concluem que para ocuparem esse cargo precisam contar com uma motivação pessoal para vencerem os obstáculos sem se deixarem levar pelo desânimo. Curioso perceber que na opinião dos enunciadores atuantes em escolas públicas trabalhar a língua estrangeira na escola implica um maior grau de dificuldade do que em um curso privado, alegando que no curso há uma estrutura física adequada para esse ensino e o aluno deseja aprender a língua estrangeira. Com base nesses relatos, sobressaem dentro do domínio do Ético os valores de Responsabilidade e Justiça, o primeiro relacionado ao compromisso do profissional em se aproximar do modelo idealizado pelos imaginários sócio-discursivos e o segundo pelo sentimento de impotência para realizar sozinho as mudanças que lhe são impostas no campo da educação sem que haja meios para fazê-las.

Exemplo 86: “Eu sempre imaginei que fosse passar cultura e questionamento...”; “mas acho que

essa postura tá cada vez mais desaparecendo para o dinamismo, para a animação”; “eu sou da época em que professor é que falava. O aluno ficava calado. Isso mudou, agora o aluno é o centro. Eu acho que o bom professor é um animador, reúne várias coisas além da língua e sabe escutar. O aluno quer ser amado, escutado. Então você ainda tem que dar atenção ao cliente, saber ouvir, detectar os problemas em sala de aula. É muita coisa para dominar. Para ser um bom professor agora tá sendo

uma arte.” (enunciador A)

Exemplo 87: “Para ser um bom professor de francês hoje em dia, no contexto da Aliança, tem que

procurar se adaptar aos diferentes contextos. Seja o público adolescente ou adulto, seja criança. Estar aberta para essa adaptação. Eu procuro tá sempre me atualizando, sempre pesquisando, fazendo aulas dinâmicas, jogos, fazendo eles produzirem a língua o tempo todo e permitindo que a

aula seja agradável”; “(trabalhar) dentro da perspectiva que é a “Actionnelle” aqui da Aliança. Eu sou muito apegada ainda ao método comunicativo e até mesmo ao tradicional, essa coisa de folhinha,

24 Trecho retirado dos Parâmetros Curriculares Nacionais de ensino de 5ª à 8ª série de língua estrangeira, página 19.

de gramática. Para essa realidade daqui eu tenho que me desvincular, me adaptar mais a essa coisa da ação, do aluno como ator social.” (enunciador M)

O enunciador A acredita que ser professor de francês é poder ligar as duas culturas (brasileira e francófona). Entretanto, para o curso em que trabalha, ser professor é dominar a língua, ser um animador, saber manusear os diversos recursos didáticos (TBI – quadro branco inteligente, data-show), dar aulas dinâmicas, “dar atenção ao cliente, saber ouvir, detectar os problemas em sala de aula”, etc. O professor ainda é submetido a seguir a abordagem metodológica de ensino utilizada pela instituição, concordando ou não. Nesse caso, por exemplo, o enunciador parece não estar completamente satisfeito com o fato de o professor ter um papel periférico no ensino da língua estrangeira, devendo seguir os pressupostos da metodologia acional em vigor na instituição em que trabalha. Vemos mais uma vez como o trabalho do professor se multiplica, indo do campo do saber, passando pelo campo tecnológico e indo rumo ao campo psicológico. Para essa instituição, o aluno passa a ser visto como cliente e torna-se dever do professor agradá-lo a fim de mantê-lo inscrito no curso. Logo, o professor atribui para si todas essas responsabilidades e se esforça para desempenhá- las com sucesso, ainda que muitas vezes o resultado não seja satisfatório.

Os enunciadores A e M trazem para a discussão o “modelo” de professor idealizado pelo curso privado Aliança Francesa. O enunciador em fim de carreira vai ao encontro do que havíamos previsto encontrar no corpus aliando o saber da língua como requisito fundamental para ser considerando um bom professor de francês. Esse enunciador reitera que na instituição em que trabalha faz parte das atribuições do professor saber manusear os diferentes instrumentos didáticos que lhe são disponibilizados, fazendo com que sua aula seja “animada”. Para ele, além do professor saber a língua e dar uma aula de qualidade, atualmente ainda precisa dar conta de mais essas funções. O enunciador M concorda com seu colega que preparar aulas dinâmicas e animadas sejam recomendações da empresa em que trabalham. Esse último menciona ainda a importância de se manter sempre atualizado em uma tentativa de preparar aulas tidas como padrão em sua instituição. Aqui fica clara a posição de um professor em início e em fim de carreira. O mais antigo busca aprimoramento de sua prática participando de cursos de atualização e o segundo entende que saber utilizar todos os recursos multimídias é uma atribuição a mais para si. De qualquer forma, ambos desempenham o papel de agentes na execução dessas tarefas visto que elas são designadas pela diretoria do curso como essenciais ao trabalho do professor. Cabe também comentar como o texto do Quadro

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Europeu Comum de Referência para as Línguas atravessa o discurso do enunciador M ao mencionar seu empenho em cumprir com os pressupostos da metodologia de trabalho sugerida por esse documento e exigida pelo curso privado Aliança Francesa. Aqui identificamos dentro do domínio do Ético os valores de Responsabilidade e Esforço/Superação.

Exemplo 88: “Acima de tudo estar muito motivado, tem que saber o conteúdo, paciência, jogo de

cintura e tentar mostrar ao aluno que aquilo pode ser útil em algum momento da vida dele.” (enunciador E)

O enunciador E, da rede federal, elenca a paciência como virtude essencial ao professor para que consiga manter o controle emocional equilibrado nas situações adversas com as quais se depara diariamente. Ele revela a necessidade de estar motivado para desenvolver esse ofício e pontua o conhecimento do conteúdo a ser ensinado como importante, assim como seus colegas do curso privado.

Exemplo 89: Formação em língua estrangeira, conhecer o seu público, mostrar que ali, no caso do

município, você representa o Estado, o poder...”; “o professor tem que saber que ele não pode

perder o controle”; “também é importante saber que o professor não deve ficar estático em sala de aula. Eu tenho 21 anos de magistério e eu passo a aula inteira em pé, eu vou ao fundo da aula. Também tem que pensar em propor algo prazeroso ao aluno. De que adianta só trabalhar a gramática, objeto direto, indireto?” (enunciador N)

O enunciador N elenca como atributos essenciais para o professor de francês “ter formação em língua estrangeira, conhecer seu público”, ter controle emocional, ter um papel “ativo” em sala de aula e buscar propor atividades prazerosas ao aluno. Ao nos depararmos com essas duas últimas tarefas a serem cumpridas pelo professor, notamos claramente a interferência das vozes presentes nos discursos oficiais, uma vez que os PCNs relatam que “as aulas de Línguas Estrangeiras Modernas nas escolas de nível médio, acabaram por assumir uma feição monótona e repetitiva que, muitas vezes, chega a desmotivar professores e alunos”. 25

Queremos também retomar um ponto tratado no segundo capítulo dessa tese, precisamente na seção 2.7, no qual, à luz da teoria de Charaudeau (2005), debatemos a questão das máscaras aliadas ao local de atuação do professor. Pensamos que o professor se

utiliza de uma máscara diferente em cada local de trabalho e, por trás dela, carrega os princípios que regem aquela instituição. Nesse caso, o enunciador N se coloca como representante da rede municipal quando entra em uma sala de aula dessa rede, trazendo para si a Responsabilidade de desempenhar mais esse papel.

Ainda no domínio do Ético, o trecho abaixo revela o desafio do professor em lidar com turmas numerosas e heterogêneas, tarefa que faz parte da rotina de um professor ainda que esteja em início de carreira.

Exemplo 90: Então além de ter que abrir mais vagas, ter mais valorização e ter muita courage,

courage, courage!!! Encarar uma turma com 40 alunos assusta, nossa! Uma turma imensa e eles não são disciplinados muitas vezes, não estão interessados naquilo que você está dizendo, não deixam

você falar, nem você se apresentar...” (enunciador B)

Esse enunciador em início de carreira integrante do corpo docente da rede estadual nos lembra da falta de vagas e de valorização ao professor de Língua Francesa. Para os poucos profissionais que restam na rede do Estado do Rio de Janeiro, mais precisamente cinquenta e oito, ele menciona como qualidade importante que o profissional tenha muita coragem, muita força para lidar com a realidade de sala de aula. Logo, destacam-se como domínios de valor o da Responsabilidade e o do Esforço/Superação, visto que o profissional assume o compromisso perante a rede e aos alunos de desempenhar o seu papel mesmo que para isso precise vencer as adversidades do dia a dia em sala de aula.

O enunciador M, em outro momento da entrevista, nos mostra em uma outra perspectiva o que ele acredita ser necessário para ser professor de francês. Ele se utiliza de procedimentos semânticos voltados para os domínios do Estético e do Hedônico. Esses dois domínios se combinam à medida que a beleza da língua provoca um sentimento de satisfação, de prazer.

Domínio do Estético (com ênfase no Hedônico):

Exemplo 91: “Para mim essa imagem do professor de francês tá condicionada com as imagens da

França, do país, com a cultura belíssima, encantadora, que tem essa coisa do glamour . E para mim ser professor de francês língua estrangeira, eu tento passar isso para os meus alunos. Essa paixão,

esse gosto de estudar o francês. Que é uma língua e uma cultura encantadora, sabe?” (enunciador

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O novato dentre os enunciadores acredita que ser professor de francês remeta a questões ligadas ao campo da beleza Estético – e ao campo do prazer – Hedônico. Em sua opinião, a imagem do professor precisa estar condicionada à belíssima cultura francesa, ao glamour, ao encanto proporcionado por essa cultura belíssima. Ele relata seu desejo em convencer seu aluno a se interessar pelo francês dando testemunho de sua paixão pela língua.

Interessante resgatar esse ideal de profissional no discurso de um professor em início de carreira que somente tenha atuado em cursos livres. Essa imagem de professor de francês está realmente mais arraigada no imaginário daqueles que trabalham no curso privado de Língua Francesa. Conforme vimos acima, o enunciador A gostaria de ser um elo entre a cultura brasileira e a francófona, suscitando em seus alunos a possibilidade de ver o mundo através de outro enfoque. Entretanto, já se encontra parcialmente conformado em ter que desempenhar outros papéis em sala de aula, papéis distribuídos pela sua instituição. O

enunciador M, ainda mantém o firme propósito de ser um representante da cultura francesa.

Aqui reside uma distinção marcante entre professor em início e em fim de carreira.

Prosseguiremos nossas análises com base na última pergunta do roteiro de entrevista realizada com nossos oito enunciadores.

No documento [ – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 176-182)