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Breves Comentários

No documento [ – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 63-70)

3. OS DOCUMENTOS OFICIAIS E OS REGIMES DE VERDADE

3.2 A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO DE BOURDIEU E AS DIRETRIZES DO

3.2.1 Breves Comentários

Após a apresentação de alguns pontos colocados em evidência pelos Parâmetros Curriculares Nacionais sobre o ensino de línguas, introduziremos comentários acerca de nossa concepção sobre esse ensino nas diferentes etapas escolares. Lembramos que os PCNs traçam uma identidade social dos professores e eles se espelham nesses documentos para construir seus princípios de ação pedagógica.

Iniciando as considerações pela primeira fase escolar do ensino fundamental, ou seja, da 1ª à 4ª série, na nomenclatura atual 2º ao 5º ano, esclarecemos que os documentos analisados foram: a introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais, na qual se explica sua proposta, seus princípios e fundamentos e seus objetivos bem como os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa. Conforme dissemos anteriormente, nessa fase o ensino de língua estrangeira não se faz obrigatório, logo não há orientação para esse estudo. Assim, nosso olhar voltou-se para os PCNs de Língua Portuguesa pelo fato de as prescrições e os objetivos do trabalho nessa disciplina nortearem o ensino da língua estrangeira na fase posterior.

Seja na parte introdutória, seja na parte direcionada à Língua Portuguesa, os PCNs apresentam importantes reflexões acerca do processo de ensino/aprendizagem no Brasil. Para

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a realidade do estudante brasileiro, a questão da leitura merece destaque, ocupando o eixo central da educação no país. Segundo o documento, muitos alunos concluíam os estudos sem sequer conseguir interpretar um parágrafo de uma notícia de jornal. Outros abandonavam as salas de aula devido às inúmeras dificuldades de aprendizagem enfrentadas, sobretudo no domínio da língua, que até então era reduzida ao ensino da língua padrão. É verdade que durante muito tempo ignorou-se a realidade social dos alunos. Somente após os anos 80 começou-se a desvelar as razões pelas quais as crianças que vinham de famílias menos favorecidas pareciam ter menos desenvoltura para lidar com as demandas escolares que as de famílias mais favorecidas. Parece-nos que, uma década à frente, Pierre Bourdieu já tivesse atentado para essas questões de cunho social e percebido que os valores difundidos na escola eram aqueles disseminados pelas classes sociais dominantes.

Como diz Bourdieu (1970,2008), sem dúvida a instituição escolar legitima e reproduz a hierarquia social, justamente porque a competência legítima pode, muitas vezes, funcionar como capital linguístico de distinção. Para ele, tanto a seleção dos conteúdos a serem trabalhados na escola quanto as práticas linguísticas são próprias às classes dominantes, gerando assim um sentimento de “desencorajamento”, de “desânimo” nos alunos das classes populares. Em contraste, os alunos oriundos das classes sociais mais favorecidas dispõem de um capital cultural herdado de suas famílias, que lhes permitem o acesso a livros, viagens, obras de arte e até mesmo o tipo de linguagem ao qual têm acesso, contribuindo para o sucesso escolar dos filhos destas classes. A essa reprodução de saberes/representações privilegiados pelas classes dominantes em detrimento daqueles trazidos pelas classes dominadas, a essa dominação imposta pela aceitação das regras, a essa incapacidade de conhecer as práticas linguísticas, Bourdieu elabora a noção de violência simbólica:

Toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbítrio cultural. (Bourdieu; Passeron, 1970, 2008, p. 26)

Contudo, através da leitura dos PCNs, sentimos uma enorme vontade em mudar essa realidade tão presente nas escolas do nosso país e o desejo de lutar contra essa violência simbólica que Bourdieu tanto criticou. Circula nos discursos normatizadores do ensino no Brasil a possibilidade de reconhecer as distintas variantes linguísticas e os seus valores, a aceitação de uma norma em detrimento de outra desde que em consonância com o seu

contexto de utilização. Para exemplificar, extraímos um trecho do documento que aborda os objetivos gerais de Língua Portuguesa para essa fase do ensino fundamental7:

expandir o uso da linguagem em instâncias privadas e utilizá-las com eficácia em instâncias públicas, sabendo assumir a palavra e produzir textos – tanto orais como escritos – coerentes, coesos, adequados a seus destinatários, aos objetivos a que se propõem e aos assuntos tratados;

utilizar diferentes registros, inclusive os mais formais da variedade linguística valorizada socialmente, sabendo adequá-los às circunstâncias da situação comunicativa de que participam.

Bourdieu compreende o universo social a partir do conceito de valor distintivo formulado por Saussure. Enquanto que para Saussure “na língua, como em todo sistema semiológico, o que distingue um signo é tudo o que o constitui. A diferença é o que faz a

característica, como faz o valor e a unidade” (SAUSSURE, 1916, 1999, p. 140), para

Bourdieu a noção de valor aparece para explicar a dinâmica das classes sociais, tanto em seus aspectos econômicos quanto simbólicos. As ações simbólicas exprimem a posição social segundo uma lógica proveniente da estrutura social, a lógica da distinção. Os signos devem o essencial de seu “valor” à sua posição em uma estrutura social definida como sistema de posições e oposições.

Dando sequência aos comentários em relação aos PCNs, passaremos agora para análise de trechos do documento voltados mais precisamente para o papel da língua estrangeira do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. Nessa fase, é exigido o ensino de pelo menos uma língua estrangeira no currículo.

O documento elucida que aprender uma língua estrangeira não se limita a conhecer as regras gramaticais que a regem ou ter conhecimento de um grande número de palavras. Aliás, o locutor declara sua desaprovação e julga (JG) que essa prática só resultaria no desinteresse do aluno, conforme o trecho abaixo:

... ao se entender a linguagem como prática social, como possibilidade de compreender e expressar opiniões, valores, sentimentos, informações, oralmente e por escrito, o estudo repetitivo de palavras e estruturas apenas resultará no desinteresse do aluno em relação à língua (JG). (Parâmetros Curriculares Nacionais de ensino de 5ª à 8ª série de língua estrangeira, 1998, p. 54)

7 Trecho retirado dos Parâmetros Curriculares Nacionais de ensino de 1ª à 4ª série de Língua Portuguesa, página 33

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A maior validade neste aprendizado seria fazer com que os alunos aprendessem a se comunicar em contextos quotidianos, conhecessem uma nova cultura, adquirissem uma nova visão de mundo, ampliando assim seu conhecimento de mundo. Objetivando contemplar também essa visão social, através da leitura, haveria possibilidade de se atingir essas metas.

Além disso, é preciso ter em vista que os conhecimentos que o aluno possui em língua materna auxiliarão no aprendizado da língua estrangeira e que as estratégias de leitura ensinadas nas aulas de língua estrangeira auxiliarão os alunos na leitura de textos em língua materna. Outras habilidades comunicativas também podem ser trabalhadas, segundo o documento, porém a maioria das escolas brasileiras apresenta algumas incompatibilidades estruturais para o desenvolvimento de habilidades de compreensão e expressão oral, como por exemplo, o excessivo número de alunos, carga horária reduzida, falta de material didático e de recursos didáticos (aparelho de som, projetor, televisão, aparelho de DVD, etc).

Entretanto, afirmar que desenvolvimento das habilidades orais fique comprometido pelo fato de a maioria dos professores possuírem pouco domínio dessas habilidades talvez não seja o melhor a ser feito. Alguns professores podem ter desenvolvido pouco suas habilidades orais, seja porque não foram exploradas na faculdade, seja porque realmente tenham tido dificuldades em desenvolvê-las, mas essa não deve ser a razão pela qual o trabalho de leitura tenha que ser priorizado. O documento “naturaliza” as condições precárias da escola, cabendo aos professores o ônus de promover o conhecimento dos alunos “apesar” dessas condições – com seus próprios meios.

Outro aspecto que gostaríamos de mencionar refere-se ao papel das línguas estrangeiras na escola. Em suas considerações preliminares, os PCNs julgam que apesar de o conhecimento de línguas estrangeiras gozar de prestígio na sociedade, a disciplina encontra-se deslocada do contexto escolar (JG). No entanto, impõem que seu ensino deva ocorrer na escola (IJ):

Embora seu conhecimento seja altamente prestigiado na sociedade, as línguas estrangeiras, como disciplinas, se encontram deslocadas da escola.

(JG) A proliferação de cursos particulares é evidência clara para tal afirmação. Seu ensino, como o de outras disciplinas, é função da escola, e é lá que deve ocorrer

(IJ). (Parâmetros Curriculares Nacionais de ensino de 5ª à 8ª série de língua estrangeira, 1998, p. 19)

Durante todo o percurso escolar, o aluno seria exposto àquela mesma língua e teria condições de concluir o Ensino Médio com noções solidificadas sobre a mesma, ou até mesmo, expor o aluno a diferentes línguas continuamente. O que não pode acontecer, segundo

a constatação dos PCNs (AS), é a escola interromper o ensino de uma língua a cada ano letivo e oferecer outra em seu lugar, pois o aluno deixará a escola sem conhecimento de qualquer das línguas com que tenha tido contato:

Não há como (AS) propiciar avanços na aprendizagem de uma língua, propondo

ao aluno a aprendizagem de espanhol na quinta série, de francês na sexta e sétima, e de inglês na oitava série. (Parâmetros Curriculares Nacionais de ensino de 5ª à 8ª série de língua estrangeira, 1998, p. 20)

Ainda sobre o texto relacionado ao ensino do 6º ao 9º ano, gostaríamos de trazer à baila uma questão que tem sido motivo de debate tanto nas salas dos professores e nos lares dos alunos quanto nos meios acadêmicos sobre a escolha da língua estrangeira a ser ensinada na escola. É de conhecimento de todos que o inglês tem papel hegemônico no campo dos negócios e das trocas internacionais. Como consequência, as pessoas priorizam seu aprendizado e acabam sendo consumidoras passivas de sua cultura. Nossa sociedade é fundamentalmente capitalista, cuja visão de língua é meramente utilitarista. Para uma sociedade de consumo, só mesmo as línguas “úteis” (leia-se, capaz de permitirem a trocas de capitais) teriam valor.

Cabe ressaltar que mesmo no que concerne à Língua Inglesa, ela somente é válida como instrumento fixo – nem pensar em ideologia, cultura, etc. Nesse sentido, inglês e francês compartilham o mesmo problema. Porém, no caso do francês, o problema se apresenta

de forma mais intensa porque o domínio científico se dá em inglês. Não estamos querendo aqui renegar a importância dessa língua estrangeira na vida de nossos alunos. Seu valor é reconhecido. Porém, acreditamos que esse aprendizado também possa ser utilizado na formação de uma consciência crítica que nos faça repensar a hegemonia da Língua Inglesa. Apesar de o documento reconhecer essas questões (AS), tende a reforçar o ensino do inglês e do espanhol (AS):

Por um lado, há de considerar o valor educacional e cultural das línguas (AS), derivado de objetivos tradicionais e intelectuais para a aprendizagem de Língua Estrangeira que conduzam a uma justificativa para o ensino de qualquer língua. Por outro lado, há de considerar as necessidades linguísticas da sociedade e suas prioridades econômicas (AS), quanto a opções de línguas de significado econômico e geopolítico em um determinado momento histórico. Isso reflete a atual posição do inglês e do espanhol no Brasil. (Parâmetros Curriculares Nacionais de ensino de 5ª à 8ª série de língua estrangeira, 1998, p. 40).

Conforme desenvolvido anteriormente pelos PCNs, a língua estrangeira capacita o aluno a refletir sobre a realidade social, política e econômica e, acreditamos que isso seria

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viável através do aprendizado de qualquer língua estrangeira moderna, ou até mesmo de um aprendizado de uma segunda língua estrangeira, ainda que introdutório, em uma tentativa de conscientização do aluno e aceitação das diferenças.

Mergulhando nos PCNEM, Parâmetros Curriculares Nacionais direcionados ao Ensino Médio, trazemos como primeira observação a preocupação do documento em resgatar a importância das línguas estrangeiras que outrora lhes foi negada, já que essa disciplina foi, durante bastante tempo, considerada como “pouco relevante”. Entretanto, o texto reforça que “elas adquirem, agora, a configuração de disciplina tão importante como qualquer outra do currículo, do ponto de vista da formação do indivíduo” 8

. Dessa forma, fica claro que o Estado reconheceu a particularidade da disciplina e sentiu a necessidade de atribuir-lhe o mesmo “status” de qualquer outra.

Todavia, o documento julga que dois fatores foram decisivos na desvalorização da disciplina em relação às outras (JG): a reduzida carga horária e a má formação dos professores de língua estrangeira, que talvez não tenham utilizado ferramentas que levassem o aluno a se interessar pela língua estrangeira, transferindo assim um pouco da culpa do insucesso da disciplina ao próprio professor:

Fatores como o reduzido número de horas reservado ao estudo das línguas estrangeiras e a carência de professores com formação linguística e pedagógica, por exemplo, foram os responsáveis pela não aplicação efetiva dos textos legais (JG) (que indicavam a introdução das línguas estrangeiras vivas). Assim, em lugar de capacitar o aluno a falar, ler e escrever em um novo idioma, as aulas de Línguas Estrangeiras Modernas nas escolas de nível médio, acabaram por assumir uma

feição monótona e repetitiva que, muitas vezes, chega a desmotivar professores e alunos (JG)... (Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino

Médio de língua estrangeira, 2000, p. 25)

Não obstante, os PCNEM revelam que a língua predominante no currículo durante muito tempo foi o inglês e que, por essa razão, houve menor interesse em se estudar as outras línguas. A consequência é que mesmo quando a escola manifestava o interesse em incluir a oferta de outra língua estrangeira, não havia profissional qualificado para assumir a sala de aula nem para elaborar material didático capaz de fazer o aluno se interessar pela aprendizagem daquela língua, fazendo com que as aulas fossem pautadas, quase sempre, “apenas no estudo de formas gramaticais, na memorização de regras e na prioridade da língua escrita e, em geral, tudo isso de forma descontextualizada e desvinculada da realidade”9

. Mais

8 Trecho retirado dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de língua estrangeira, página 25 9

uma vez, temos a sensação de que a responsabilidade pelo fracasso na aprendizagem de língua estrangeira recai sobre o professor. Acerca dessa questão, poderíamos acrescentar que as metodologias de ensino de LE também são sócio-historicamente marcadas e que, se em algum momento uma habilidade foi priorizada em detrimento de outra, provavelmente, a época impunha tal necessidade. Entretanto, reconhecemos que essas metodologias continuaram a ser reproduzidas em um momento em que não cabiam mais, o que nos leva a reconhecer a existência de práticas deslocadas de ensino de LE. Porém, essa generalização trazida pelo documento visando encontrar uma relação de causa-efeito para o insucesso ou para a desmotivação dos alunos fica um pouco fora de propósito.

Em contrapartida, a proposta que os PCNEM trazem para o Ensino Médio em relação aos objetivos do ensino de língua estrangeira, almejando capacitar o aluno a compreender e a produzir enunciados corretos e permitir-lhe acessar informações de vários tipos, contribuindo para sua formação geral enquanto cidadão apresenta-se em consonância com os objetivos traçados pelos PCNs voltados para as etapas de ensino anteriores ao Ensino Médio. A discussão mais ampla, entretanto, gira em torno de qual língua estrangeira deve ser ensinada na escola e do monopólio linguístico.

O documento explicita que a Língua Inglesa é de fundamental importância para a vida do aluno no mundo em que vivemos, mas que essa não deve ser a única a ser ofertada. Tampouco, julga-se conveniente substituir esse monopólio pela Língua Espanhola, visto o crescimento do número de pessoas motivadas a aprendê-la por questões profissionais e econômicas. Preza-se pela descentralização do ensino, uma vez que a disciplina de Língua Estrangeira precisa atender “às diversidades, aos interesses locais, e às necessidades do mercado de trabalho no qual se insere ou virá a inserir-se o aluno.” 10 Porém, no parágrafo seguinte, os PCNEM ressaltam que o Ensino Médio tem um compromisso direto com a educação para o trabalho e que é de “domínio público” a importância do inglês e do espanhol na vida profissional das pessoas.

A nossa frente, um paradoxo: não se deve restringir o ensino de língua estrangeira ao inglês e ao espanhol, pois o aluno deve ter acesso ao conhecimento de diferentes culturas, mas o senso comum diz que aprender inglês e espanhol é mais útil na vida profissional de um aluno do que qualquer outra língua estrangeira. Mais uma vez, o discurso normatizador é atravessado por uma visão utilitarista, mercadológica, enfim, capitalista. Como as duas

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premissas são apresentadas como prioritárias no Ensino Médio (expor o aluno às diversidades culturais e contribuir na sua formação profissional), a solução encontrada foi a de trabalhar as outras línguas estrangeiras em caráter optativo, considerando-se que a Lei de Diretrizes e Bases prevê a possibilidade de incluir uma segunda língua estrangeira no currículo. A escolha da língua optativa terá que respeitar os interesses da clientela e se adequar às necessidades daquela comunidade, “passando a organizar seus cursos de Línguas objetivando tornar-se algo útil e significativo, em vez de representar apenas uma disciplina a mais na grade curricular”, o que nos faz pensar que, em algum momento, esses cursos não foram organizados de forma a levar o aluno a experienciar a utilidade deles.

Seis anos após a publicação dos PCNEM, o MEC lançou uma nova proposta de trabalho para o Ensino Médio. Vejamos abaixo as orientações para esse ciclo.

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