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Do ponto de vista dos colegas de trabalho/direção da escola

No documento [ – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 169-174)

3. OS DOCUMENTOS OFICIAIS E OS REGIMES DE VERDADE

5.2 DISCURSOS SOBRE O ENSINO DE FRANCÊS COMO LÍNGUA

5.2.3 O Status da Disciplina de Língua Francesa

5.2.3.2 O Status da Disciplina de Língua Francesa do ponto de vista

5.2.3.2.4 Do ponto de vista dos colegas de trabalho/direção da escola

Nossos entrevistados alegam perceber a disciplina de Língua Francesa como menos importante do que outras no próprio meio escolar. Tal afirmação está diretamente relacionada ao fato de que a) a disciplina possui carga horária bastante reduzida, b) a disciplina não reprova, c) desconhecimento da relevância do aprendizado dessa língua estrangeira. Dessa forma, a tese sustentada por nossos enunciadores é de que a disciplina é vista como irrelevante pelos colegas de trabalho/direção.

Conforme visualizamos nos discursos acima, os enunciadores acreditam que alunos e pais associem a importância da disciplina a um fim prático, imediatista. Constatamos que a imagem que os enunciadores fazem a respeito dos colegas de trabalho sobre a disciplina também tenha uma implicação direta com sua “utilidade”. Logo, todos os argumentos utilizados pelos enunciadores se organizam dentro de um domínio de julgamento concernente ao Pragmático.

Seguem os trechos das entrevistas bem como suas análises.

Domínio do Pragmático:

Exemplo 75: É uma desvalorização de todos os lados, a direção também.(enunciador E)

O enunciador E acredita que a disciplina seja desvalorizada por toda a comunidade escolar, e até mesmo, pela sociedade.

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Exemplo 76: “Eu acho que muitos pensam que não tem muito fundamento. Acham que tem que ser

inglês e espanhol. Francês é tão diferente então colocar pra que?”; “eu senti isso na pele. Eles falam isso. Esse ano a direção do colégio deliberou que o colégio prioritariamente ia oferecer inglês e espanhol e que não ia oferecer francês. Foi isso que aconteceu. Eu sobrei.” (enunciador B)

Exemplo 77: “Eu ia sair dessa escola que eu tô e ia pra outra perto da minha casa. Tava tudo certo.

Quando eu cheguei lá e a diretora viu que era francês ela disse que queria inglês. Aí ela relutou e eu não fiquei lá. Voltei para essa escola novamente.” (enunciador R)

Os enunciadores B e R, ambos da rede estadual de ensino, ressaltam que a própria direção expressa preferência pela língua estrangeira que quer oferecer em sua escola, possuindo autonomia para aceitar ou recusar o professor de outra língua estrangeira diferente daquela desejada por ela. O enunciador B revela ter ficado sem escola para trabalhar devido à decisão da diretora escolar em oferecer exclusivamente aulas de inglês e de espanhol na instituição de sua liderança, de um ano para o outro. Por isso, acreditamos que o domínio de avaliação presente seja novamente o do Pragmático. Na opinião dessas lideranças, somente a Língua Inglesa deve ter alguma relevância para ser ensinada nas escolas, talvez pelo fato de ser a língua mais falada no mundo dos negócios. E com a imposição da Secretaria de Estado de Educação para que a Língua Espanhola seja obrigatória no Ensino Médio, de acordo com a resolução número 4746, apresentada no terceiro capítulo dessa tese, essas (inglês e espanhol) são as duas únicas línguas legitimadas a serem ensinadas na escola na concepção de grande parte dos diretores.

Exemplo 78: “Nem todos (os colegas valorizam). Tem uns que veem com diferença a matéria.

(enunciador N)

Segundo o enunciador N, alguns colegas veem a disciplina como menos importante que as outras. Nesse caso, o julgamento dos colegas que não valorizam a disciplina está no campo do Pragmático. Talvez nem eles atribuam qualquer valor ao aprendizado de línguas estrangeiras. Decerto que essa maneira de pensar recai sobre nossos enunciadores como antiética por não entenderem esse tratamento diferenciado que os inferioriza dentro de uma realidade injusta.

Prosseguindo com as análises, mostraremos a seguir as falas dos enunciadores W, da rede municipal, e outros dois trechos da entrevista dos enunciadores B e R, da rede estadual. Fizemos essa separação uma vez que acreditamos que apesar de os discursos explicitarem a força da (in) utilidade da disciplina na concepção dos outros professores e da direção escolar,

pensamos que os argumentos expostos fazem certa referência ao campo Estético ao associar- se o professor de francês aos valores relacionados ao requinte, à elegância.

Gostaríamos de comentar essa associação feita entre aquele que possui o “saber” sobre a Língua Francesa e os atributos relacionados à França e as representações do período da Belle-Époque. Na concepção da maioria dos brasileiros, a França é tida como o berço da cultura e da literatura. Esse país serve de referência para nós nas áreas da educação, da gastronomia, da moda, da pintura, da decoração, do luxo. A Língua Francesa dominava o gosto e a elegância, portanto era falada nas cortes europeias. Por essa razão, ainda hoje, quando o interlocutor percebe que o outro possui conhecimentos ligados à França, sua primeira reação é associá-lo a uma pessoa “chique”.

Como a partir desse ponto as falas dos enunciadores farão alusão, com certa frequência, ao adjetivo “chique” e nosso trabalho visa analisar os discursos argumentativos pelo viés semântico, achamos por bem defini-lo segundo dois dicionários de referência para a Língua Portuguesa e para a Língua Francesa.

Segundo o dicionário Houaiss de Língua Portuguesa22, o adjetivo “chique” possui duas acepções:

1 que se veste com apuro e bom gosto e que se destaca pela elegância e ausência de afetação

Ex.: <mulher c.> <homem c.>

2 Derivação: por extensão de sentido. que se caracteriza pelo requinte

Ex.: <decoração c.> <reunião c.> <vestido c.>

Segundo o dicionário Le Petit Robert de Língua Francesa23, o vocábulo “chic” tem as seguintes acepções:

I. N. m.

1. VX Facilité à peindre des tableaux à effet. Travailler, peindre de chic, d'imagination, sans modèle. « Le chic est […] plutôt une mémoire de la main qu'une mémoire du cerveau »(Baudelaire).

2. Adresse, facilité à faire qqch. avec

élégance. ➙ aisance, désinvolture, habileté, savoir-faire. Il a le chic pour m'énerver.

22 Extraído do site http://200.241.192.6/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame?palavra=chique&Alceado=2

23ROBERT, P., REY, A. & REY-DEBOVE, J. (1996). Le Nouveau Petit Robert: dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. Nouv. éd. Paris : R. Laffont

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3. Élégance hardie, désinvolte. ➙ caractère, chien, originalité, prestance. Il a du chic. Son manteau a du chic. Loc. adj. Bon chic, bon genre*. ➙ B. C. B. G., NAP. II. Adj. (inv. en genre) ➙ élégant. Une toilette chic. Elle est chic, habillée avec goût et élégance. VAR. FAM. CHICOS [ʃikos].

◆ FAM. Beau. ➙ bath, 2. chouette. On a fait un chic voyage.

III. INTERJ. FAM. marquant le plaisir, la satisfaction ➙ 2. chouette. Chic alors ! Destacamos as palavras que estão diretamente ligadas com as acepções da Língua Portuguesa: élégant (elegante), beau (belo), plaisir (prazer), e satisfaction (satisfação). Por isso, acreditamos que o adjetivo “chique” utilizado nas falas dos enunciadores fará alusão a esses valores.

Logo, os discursos que correlacionam aquele que sabe francês como uma pessoa chique, do ponto de vista semântico, nos dariam margem para classificá-los tanto no domínio de valor concernente ao Estético – ao referir-se à beleza da língua – quanto no domínio do Hedônico – ao referir-se ao prazer e à satisfação proporcionados pela utilização da língua , visto que em algumas falas não é possível desmembrar a beleza da língua e da cultura francesa do prazer e da satisfação que elas proporcionam.

Voltando às análises referentes aos trechos em que os enunciadores revelam como acreditam que a disciplina de Língua Francesa seja vista pelos colegas e pela direção escolar, identificamos nas falas julgamentos de valor ligados ao domínio do Pragmático – pelo fato da disciplina não ser valorizada por não propiciar ao aluno uma aplicação prática em sua vida, segundo os relatos. Não podemos deixar de mencionar a associação feita pelos colegas de trabalho com relação ao professor de Língua Francesa e às representações que a França evoca nos brasileiros, como a beleza, a cultura encantadora e o prazer proporcionados por elas. Esses julgamentos de valor acabam se misturando nas falas abaixo, o que não nos permitiu dissociar o domínio de valor Estético do Hedônico nas categorizações concernentes aos exemplos 79, 80 e 81.

Domínio do Pragmático (com ênfase no Estético/Hedônico):

Exemplo 79: Eu acho que tem duas visões. A visão do professor que é uma pessoa chique, acima do

normale a da matéria que não é importante, e perguntam (os colegas): “O que os alunos vão fazer

O enunciador W aponta para uma questão interessante e que merece ser comentada. Esse enunciador nos remete à questão da identidade social do professor e a construção de seus traços identitários. Para ele, a pessoa que sabe a Língua Francesa é vista como chique pela sociedade, visto que nos imaginários sócio-discursivos, a França é concebida como um país chique e onde as pessoas são muito cultas. Entretanto, naquele espaço escolar, parece que esse saber não é valorizado. Logo, o “detentor desse saber” também não o será. Neste depoimento, verificamos dois procedimentos semânticos: um no domínio do Estético/Hedônico e outro no domínio do Pragmático. O primeiro justifica-se pela associação do professor que conhece a Língua Francesa diretamente com a França, que é tida como chique, culta, bela. O segundo aparece bastante explicitamente na frase “O que os alunos vão fazer com isso? Fica claro que muitos professores desconhecem o objetivo de ensinar uma língua estrangeira na escola. Esse discurso vem sendo recorrente em muitas das falas dos nossos entrevistados e reflete um pouco do que é tido como verdade para o senso comum, ou seja, de que as disciplinas importantes são Língua Portuguesa e Matemática.

Exemplo 80: “Eles acham que é uma língua muito difícil, até pra eles, então imagina para os

alunos”; “tem muito colega que acha surpreendente: “Ah, francês!” Não sabia que tinha francês”; “eu acho que muitos pensam que não tem muito fundamento. Acham que tem que ser inglês e

espanhol. Francês é tão diferente então colocar pra que?.” (enunciador B)

Exemplo 81: “Eles acham que estudar francês não é para qualquer um”; “alguns professores quando

souberam que aqui tinha francês disseram surpresos: “Nossa! Eu não sabia que aqui tinha francês”;

“alguns colegas perguntam: Pra que eles vão estudar francês? E eu respondo que é para acessar

conhecimentos.” (enunciador R)

Poderíamos fazer a mesma análise acima para os trechos extraídos das entrevistas com os enunciadores B e R. A opinião dos colegas de trabalho fica dividida entre o encantamento pela língua, por sua beleza e ao prazer que ela lhes proporciona, que ficaria no domínio do Estético/Hedônico e a relevância de ensinar uma língua estrangeira “tão diferente” como a francesa, não lhe atribuindo um caráter útil, que ficaria no domínio do Pragmático. Aqui acreditamos que os domínios Estético e Hedônico estejam imbricados uma vez que o primeiro define os seres e os objetos com base em sua beleza e o segundo se pauta no prazer e na satisfação proporcionados. A partir dos excertos acima (ex. 79, 80 e 81), parece estar implícito nas falas dos entrevistados que, para os demais colegas e/ou direção escolar, o

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francês é uma língua de elite. Por conseguinte, como grande parte dos alunos das escolas públicas não pertencem à elite, esse conhecimento não serve para eles.

Trazemos novamente para o debate a sociologia da educação de Bourdieu que atribui à escola o papel de reprodutora das desigualdades sociais, contribuindo para a solidificação das relações de poder de uma classe em detrimento de outra. Para o sociólogo, as condições de acesso ao conteúdo escolar não acontecem de maneira igualitária para todos os alunos uma vez que cada indivíduo traz consigo uma bagagem social e cultural provenientes de sua origem social que serão determinantes em sua relação com os conteúdos escolares. Essa particularidade de cada aluno deve ser levada em consideração no âmbito escolar, o professor deve reconhecer sua existência, promover meios para que a maioria dos alunos seja levada a mobilizar seus conhecimentos prévios e dar condições para que o aluno aprenda sistematicamente aquilo que já é um saber partilhado pelas classes dominantes. Assim, talvez, classes dominantes e dominadas possam conviver em um espaço escolar em situação menos desigual, considerando-se as diferentes realidades presentes em uma mesma sala de aula. Logo, não é necessário privar os alunos das classes menos favorecidas de um saber, ainda que esse se distancie de sua realidade. É imprescindível considerar que o aprendizado dos alunos que possuem um capital cultural se fará de uma maneira distinta daqueles que não o compartilham, por isso a forma de ensinar e de avaliar deve considerar essas diferenças. Privar o aluno oriundo de uma classe social desfavorecida de um determinado conhecimento por acreditar que ele não é capaz de assimilá-lo faz com que se continue a reproduzir as condições de desigualdade em relação àqueles que são tidos como capazes de apreendê-lo.

Continuando nossas análises sobre a disciplina de Língua Francesa, abordaremos a seguir como os enunciadores acreditam que as leis norteadoras do ensino brasileiro lidam com a questão tão recorrente nas falas acima sobre a distinção entre os pesos das disciplinas e a relevância da Língua Francesa na grade curricular.

No documento [ – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 169-174)