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A implementação dos programas de transferência condicionada de renda, como apresentado na seção 2, representou, em alguma medida, uma ruptura com a trajetória do sistema de pro- teção social brasileiro criado nos anos 1920. Este sistema voltou-se, pela primeira vez, para a população pobre em idade ativa, com capacidade produtiva, e, sobretudo, passou a ter um programa com claro viés pró-criança. Isto não esgota, todavia, a novidade institucional do programa e do CadÚnico.

Um primeiro aspecto é que as condicionalidades do programa exigiram uma articulação entre as áreas de assistência social, de educação e de saúde em torno da população beneficiária. Desta ma- neira, a população vulnerável – tradicionalmente com maiores dificuldades de acesso aos serviços de educação e saúde e, sobretudo, de acesso com qualidade – passou a receber uma atenção especial dos sistemas educacional e de saúde, por meio do acompanhamento de condicionalidades.

A articulação intersetorial – necessariamente trabalhosa – não resumiria os esforços institucionais que teriam que ser realizados para a implementação do CadÚnico e do PBF.

Com efeito, o sistema previdenciário e assistencial existente até a década de 1990 era fundamentalmente centralizado, operado pelo governo federal diretamente por meio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O CadÚnico e o PBF, ao contrário, foram criados sobre a estrutura descentralizada da assistência social – isto é, do (então) embrionário Sistema Único de assistência social (Suas). Desta maneira, responderam não apenas à diretriz de descentralização político-administrativa prevista na Constituição Federal para a área de assistência social, como estabeleceram uma parceria com os governos estaduais e, sobretudo, municipais, cuja proximidade da realidade social local seria imprescindível para sua implementação. A articulação interfederativa, desta manei- ra, passou a ser uma das características mais marcantes – e, pode-se dizer, mencionadas – (Lindert et al., 2007) do programa.

E é preciso registrar que a articulação federativa e intersetorial se combinaram, à medida que o trabalho de acompanhamento de condicionalidades também é executado de maneira descentralizada pelos sistemas de educação e saúde. Trata-se, assim, de um desenho relati- vamente complexo, cujos resultados positivos são, de certa forma, surpreendentes – afinal, manter níveis satisfatórios de articulação entre organizações e redes diferentes, em diversos níveis federativos não é tarefa trivial.

Um efeito claro da implementação descentralizada do Bolsa Família foi o fortalecimento da área de assistência social no município. A construção de um registro administrativo da magnitude do CadÚnico – extremamente trabalhosa – não ocorreria sem um forte programa a “patrociná-la”. Este papel foi, sem dúvida, cumprido pelo Bolsa Família. Desta maneira, a área de assistência social nos municípios brasileiros (como regra, responsável pela gestão local do programa e do cadastro) ganhou relevância política e, especialmente, um instrumento (o CadÚnico) essencial para o conhecimento da população de baixa renda da localidade, até então, inexistente.

Dois mecanismos brevemente mencionados na seção 2 tiveram papel crucial no sucesso da articulação interfederativa. O primeiro deles foi o termo de adesão assinado entre o MDS e todos os municípios brasileiros, no qual estão sistematizados os compromissos municipais para tornar-se participante do Bolsa Família. Assim, estão definidas as atribuições de cadas- tramento, monitoramento de condicionalidades em saúde e educação, gestão de benefícios e eventual oferta de programas complementares. Cada município precisa ter um gestor desig- nado do programa, bem como uma Instância de Controle Social, que é encarregada de fazer o acompanhamento da gestão do Cadastro e do programa no município.

A criação do Índice de Gestão Descentralizada (IGD) foi outra inovação institucional fundamental para a articulação interfederativa. O IGD foi criado pela Portaria GM/MDS no 148/2006, seguido pela criação do Índice de Gestão Descentralizada Estadual (IGDE – Portaria

O índice é composto por indicadores da gestão do CadÚnico e das condicionalidades. Possui duas funções claras. A primeira, previsivelmente, é mensurar a qualidade das ações de gestão do município. A segunda, servir de base para a transferência de recursos de apoio à gestão descentralizada, que podem ser utilizados pelos municípios para a realização de ações e projetos de fortalecimento do programa, do Cadastro e do acompanhamento de condicionalidades, bem como de apoio à instância de controle social.

Desde 2006, R$ 2,2 bilhões foram transferidos para municípios e estados como apoio à gestão descentralizada do programa e do CadÚnico. Os recursos repassados em 2012 foram, em termos nominais, 60% maiores que os repassados em 2010 – mostrando que o aumento do público beneficiário tem sido acompanhado pelo aumento dos recursos de apoio à gestão. Pode-se argumentar que o IGD teve papel relevante como fonte de recursos para a estrutu- ração da proteção social nos municípios – e também nos governos estaduais. Seu mecanismo de transferência, baseado em resultados alcançados, acabou inspirando a criação de uma transferência específica para a área de serviços de assistência, o IGD-Suas.

Do ponto de vista das inovações institucionais, há pelo menos mais um aspecto importante a ser destacado, também relacionado ao desenho do programa. Um traço comum dos programas de transferência condicionada de renda que foram largamente adotados na América Latina e em outros países do mundo é o fato de serem programas focalizados, isto é, voltados para as famílias mais pobres.

Programas focalizados são controversos na literatura de políticas sociais. Seus críticos tendem a sugerir que administrar adequadamente a focalização de um programa de transferência de renda é uma atividade complexa e, especialmente, cara. Tais programas enfrentariam, assim, alguns dilemas. O primeiro deles é que parte considerável dos custos economizados com as próprias transferências seria consumida nos pesados e caros procedimentos adminis- trativos destinados a manter a boa focalização do programa. Em outras palavras, a estrutura institucional necessária para excluir os não elegíveis (em geral, por testes de meios) seria com- plexa, cara e, em última instância, geraria baixa efetividade da política – já que estaria asso- ciada a baixas taxas de take up (isso é, a altos erros de exclusão). Um segundo dilema poderia ser assim registrado: países ricos teriam capacidade administrativa para implementá-los, mas não teriam necessidade, já que poderiam adotar esquemas mais amplos e generosos, em geral voltados para toda a população, indistintamente; países pobres e em desenvolvimento teriam, sim, a necessidade de implementá-los (já que não conseguiriam implementar esquemas uni- versais mais generosos), mas não teriam capacidade administrativa para isto (Mkandawire, 2005). Em suma, a literatura da área de políticas sociais manteve, como regra, uma postura cética quanto à adoção de políticas focalizadas.

Na América Latina, a adoção dos programas de transferência condicionada de renda adotou desenhos bastante diferentes para contornar as dificuldades inerentes à implementação de programas focalizados. Atendo-se apenas aos casos mais mencionados na literatura, a experiên- cia mexicana baseou-se na centralização administrativa e em um índice multidimensional; e a experiência chilena, no empoderamento da estrutura da assistência social e também em um

índice multidimensional (Soares et al., 2009). A experiência brasileira, assentada em uma estrutura de assistência social descentralizada e, no período de implementação do programa, ainda incipiente, concedendo benefícios com base unicamente na renda declarada, pode ser considerada única.

Essa opção foi fruto das restrições institucionais existentes. Com efeito, as opções para o programa brasileiro eram limitadas para os gestores responsáveis pela sua operacionali- zação. A utilização de testes de meios, por exemplo, não chegou a ser considerada como opção viável. Como mencionado, a literatura sobre programas focalizados sugere que o uso de teste de meios tende a tornar os custos operacionais de tais programas excessivamente altos. Além disto, como são usados fundamentalmente com o objetivo de excluir os não elegíveis, os testes de meios têm, em geral, a consequência de fazer com que programas focalizados tenham taxas de take up relativamente baixas (isso é, erros de exclusão relativamente altos), o que os torna pouco efetivos no combate à pobreza.5

Pode-se dizer, entretanto, que tais argumentos também não foram decisivos para a opção de não utilizar testes de meios na operacionalização do Programa Bolsa Família. Na verdade, a incipiente rede de proteção social no Brasil não teria capacidade de executar testes de meios de forma massificada, o que condenaria ao fracasso qualquer programa que deles fizesse uso. Desta forma, a utilização de testes de meios nunca chegou a ser, de fato, uma opção viável.

Uma segunda opção, mais apropriada para parte considerável dos países que adotaram programas de transferência condicionada de renda, foi a utilização de índices multidimen- sionais ou de testes de meios aproximados (proxy means tests), no qual a elegibilidade e ocasionalmente o próprio valor do benefício era resultado não da renda declarada, mas de um conjunto de informações declaradas pela família (e eventualmente checadas in loco, ao menos por amostragem), nas várias dimensões relacionadas à vulnerabilidade social. No contexto brasileiro, entretanto, a utilização do teste de meios aproximado para concessão e definição do valor do benefício dificilmente se revelaria aceitável. Faltaria transparência às concessões de benefícios e clareza na comunicação com os beneficiários do programa.

Ao contrário, a adoção da renda declarada, com todos os seus riscos, tornaria fácil a comunicação com beneficiários, daria transparência à concessão e manutenção de benefí- cios e permitiria ações claras de controle, tanto do ponto de vista social quanto governa- mental. A renda declarada foi associada à combinação de outros aspectos do desenho voltado para manter a boa focalização do programa. Primeiramente, deve-se destacar a existência de estimativas de atendimento em nível local, que funcionam como limites (ressalte-se, flexíveis) para o número de beneficiários em cada cidade. Às estimativas, está associada a publicidade em torno dos beneficiários, de maneira a facilitar o controle social do programa. Estes dois traços criam certa pressão sobre a gestão municipal no sentido da boa focalização. Além disso, o programa brasileiro adotou ações periódicas de checagem dos dados do CadÚnico a partir do cruzamento com outros registros administrativos do governo federal.

5. A hipótese de que programas focalizados tendem a ter taxas de take up baixas e, portanto, maiores erros de exclusão é bastante difundida na literatura de políticas sociais. Apenas como exemplo, ver Hernanz et al. (2004).

Há ainda um aspecto de maior relevância a ser mencionado. No debate entre os defensores de benefícios focalizados e benefícios de natureza universal, frequentemente surge a crítica de que os procedimentos de focalização voltam-se mais para a exclusão dos não elegíveis do que para a inclusão dos elegíveis. Pode-se dizer que, desde o início, a maior preocupação rela- cionada ao PBF foi a inclusão dos elegíveis e que seu desenvolvimento o levou rapidamente a preocupar-se com a segurança de renda entre os mais vulneráveis – isto explica a expansão das metas de cobertura e, mais recentemente, a adoção da regra de permanência. Esta caracte- rística foi reforçada com o advento do Brasil Sem Miséria, que concedeu claramente ao Bolsa Família a diretriz de universalização de sua cobertura para todas as famílias pobres, conferin- do à trajetória do programa um potencial ainda maior de contribuir para a consolidação de um sistema de proteção social abrangente.

Seja como for, os resultados, que serão brevemente examinados na seção seguinte, demonstraram que, em termos de focalização, o programa brasileiro conseguiu ser muito efetivo, tanto na comparação com outros programas sociais brasileiros, quanto na compa- ração internacional. Desta maneira, o Bolsa Família conseguiu adequar as exigências de um programa focalizado à estrutura institucional existente e às exigências de transparência e de comunicação com os beneficiários do contexto social brasileiro.

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