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As transferências condicionadas de renda representaram um passo adicional importante na mudança da trajetória do Sistema de Proteção Social no Brasil. Fundado na década de 1920 sobre bases estritamente contributivas, o sistema de proteção social brasileiro sofreu modi- ficações iniciais durante os anos 1970 (com a introdução de benefícios semicontributivos – voltados para a população rural – e não contributivos – endereçados à população pobre idosa ou deficiente). Tais modificações foram muito robustecidas após a Constituição de 1988, com a definição do caráter universal dos sistemas de saúde e assistência social e do fortaleci- mento dos benefícios de natureza semi e não contributiva. Mas não havia, até o surgimento das transferências condicionadas de renda, benefícios voltados para a população pobre, em idade (e com capacidade) produtiva, mas sem renda suficiente para contar com a proteção contributiva. Por vocação, tais transferências alcançaram, sobretudo, as crianças – despropor- cionalmente afetadas pela situação de pobreza no Brasil.

A consolidação do Programa Bolsa Família dependeu, sobretudo, da construção do Cadastro Único para Programas Sociais – que exigiu, ao longo de anos, um árduo traba- lho, principalmente das administrações municipais, em um período inicial de montagem do Suas. Os anos de 2005 e 2006 foram fundamentais para a melhoria da qualidade do cadastro – e marcantes também pela adesão dos municípios ao CadÚnico e ao Programa Bolsa Família e pela criação do Índice de Gestão Descentralizada (IGD) em 2006.

A implementação interfederativa, marca do programa, respondeu à diretriz de descen- tralização político-administrativa, constitucionalmente prevista para a área de assistência so- cial. Mais importante, permitiu uma parceria do governo federal com governos municipais e estaduais, imprescindível para a efetividade do trabalho com a população vulnerável, e fortaleceu o Suas, confiando a ele papel crucial no Bolsa Família e dando a ele instrumentos fundamentais e até então inexistentes (como o CadÚnico e o Sistema de Acompanhamento de Condicionalidades – Sicon).

O programa também adotou inovações institucionais que ganharam destaque, incluindo seu engenhoso mecanismo de focalização – simples, transparente e tão eficaz quanto mecanis- mos mais complexos e sofisticados adotados em outros programas de transferência condicionada

de renda que se tornaram referência na América Latina. A crescente literatura acadêmica sobre o programa também revelou impactos positivos, entre outros, na redução da pobreza e da desi- gualdade; e na melhoria de indicadores educacionais e de saúde; além de desmistificar os receios de que o Bolsa Família pudesse reduzir a participação dos seus beneficiários no mercado de tra- balho ou aumentar a fecundidade entre as beneficiárias.

A trajetória bem-sucedida do programa até 2010 contribuiu para a emergência do Plano Brasil Sem Miséria. Primeiramente, por ser um exemplo eficiente de iniciativa intersetorial e interfederativa, mobilizando diversos setores e esferas governamentais. Segundo, por ter “pa- trocinado” a criação de um instrumento, o CadÚnico, sem o qual qualquer iniciativa voltada para a superação da extrema pobreza seria infrutífera. Ao mesmo tempo, o Plano Brasil Sem Miséria representou um grande desafio para um programa que começava a se consolidar – e que tinha, e em grande medida ainda tem, uma pesada agenda de estruturação operacional à frente. Mudanças significativas foram feitas já em 2011, com o reajuste concentrado nos benefícios variáveis, o aumento do número máximo desses benefícios por família (de três para cinco benefícios), o aumento da meta de atendimento de 12,9 para 13,8 milhões de famílias. Em 2012, com a criação do Benefício de Superação da Extrema Pobreza, o programa fez uma inflexão ainda maior na direção das crianças e da extrema pobreza, permitindo que quase cin- co milhões de famílias recebessem um complemento de renda capaz de levar a renda familiar

per capita acima dos R$ 70,00.

Os desafios para a evolução e consolidação do Programa Bolsa Família seguem imensos. Embora pague mensalmente benefícios para quase 14 milhões de famílias, conta com uma estrutura de execução espartana – tanto no nível central quanto, via de regra, no nível local. O Suas, base de sua execução, tem ainda um longo caminho de evolução à frente. Embora siga sendo um programa de desenho relativamente simples, sua operacionalização ainda assim é, e seguirá sendo, bastante complexa – especialmente quando comparado a programas de transferência não focalizados e não condicionais.

Seja como for, o Programa Bolsa Família representou uma evolução definitiva do siste- ma de proteção social brasileiro na direção de famílias que ainda não possuíam nenhum tipo de cobertura. É, como argumenta Helmut Schwarzer, no capítulo que compõe este volume, um exemplo de como dar um passo fundamental na direção de um piso de proteção social, em nível nacional. Trata-se, também, de um benefício que aproxima o estado de bem-estar brasileiro daqueles mais consolidados, alcançando grupos populacionais – especialmente as crianças – que não contavam com nenhuma proteção.

Questionamentos sobre seu modelo sempre ocorrerão. Isto deve ser considerado natu- ral. De tempos em tempos, mesmo sistemas de proteção social muito consolidados passam por questionamentos e reformas. Sempre haverá aqueles que defenderão sua transformação em um benefício de caráter universal, pago indistintamente a todos os cidadãos brasileiros; e aqueles que argumentarão por um benefício de caráter mais restritivo.

Muitos argumentam que a emergência e a manutenção de programas de proteção social dependem da existência de grupos de apoio fortes e organizados. Outros, entretanto, sugerem que benefícios e serviços sociais, mais que depender da existência destes grupos, criam seus próprios grupos de apoio (como sugere Paul Pierson, 1996). A condução da evolução do Bolsa Família e das iniciativas voltadas para a superação da pobreza terá, no futuro próximo, que lidar com este fato.

Na opinião dos autores, entretanto, os passos já dados não terão retorno. Mesmo para os mais críticos, seria difícil imaginar o Brasil sem um instrumento que vocalize e explicite as necessidades da parcela mais vulnerável da população, como é hoje o CadÚnico. Ou em uma situação na qual os mais pobres não tivessem acesso a uma renda modesta – tanto do ponto de vista da família beneficiária quanto, especialmente, da renda nacional –, de natureza complementar à renda do trabalho. Ou, ainda, em situação na qual as crianças continuassem apresentando taxas de extrema pobreza duas vezes mais altas que a média nacional. Há muito a evoluir, sem dúvida, e os caminhos desta evolução estão abertos. Os passos a serem dados, entretanto, serão certamente de avanço.

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TRAJETÓRIA DE CONSTRUÇÃO DA GESTÃO INTEGRADA DO SISTEMA ÚNICO DE

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