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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

4.1 Binarismo e hierarquia dos sexos

Françoise Héritier defende nos dois volumes de “Masculin/Féminin”, “La pensée de la différence”, de 1996, e “Dissoudre la hiérarchie”, de 2002, que a diferença dos sexos está no fundamento de todo pensamento, é seu limite último, sobre o qual está fundada a oposição conceitual essencial entre o idêntico e o diferente. Essa relação idêntico-diferente, por sua vez, está na base dos sistemas que regulam nosso universo mental e que opõem, dois a dois, noções abstratas ou concretas, como quente e frio.

Essa categorização dualista de base é a meu ver oriunda da observação liminar da diferença sexuada sobre a qual a vontade humana não tem domínio. Ela está no centro de todos os sistemas de pensamento em todas as sociedades. Todos funcionam de fato com categorias dualistas, oposições binárias de caráter concreto ou abstrato, as quais se acham, sobretudo as concretas, conotadas do signo do masculino e do feminino. (...) Nós pensaríamos de maneira diferente se não

fôssemos sexuados e submetidos a essa forma particular de reprodução que é a procriação. A apreensão intelectual da diferença sexuada seria assim concomitante à expressão mesma de todo pensamento32. (HÉRITIER, 2002, p. 15-16, tradução minha)

Em outras palavras, a observação primeira da diferença irredutível dos sexos, uma diferença biológica (uns têm pênis e outros, vagina) e de funcionamento fisiológico determina nossas categorias cognitivas binárias, como as operações de classificação, oposição, hierarquização, nas quais o masculino e o feminino se encontram presentes. Não há sistema de pensamento nem sistema social que não tenham sido fundados a partir do que a natureza oferece ao olhar. Em suas próprias palavras: “os sexos anatômica e psicologicamente diferentes são um dado natural; de sua observação decorrem noções abstratas cujo protótipo é a oposição idêntico/diferente, sobre a qual se moldam as tantas outras oposições conceituais de que nos servimos em nossos discursos de todas as ordens33” (HÉRITIER, 1996, p. 26, tradução minha). Essas categorias cognitivas são extremamente duráveis, pois são inculcadas nos indivíduos desde muito cedo em seu ambiente cultural.

A diferença sexual é então, segundo ela, um dado biológico universal, imutável. Já a valência diferencial dos sexos, conceito criado pela autora, é uma tradução desse dado biológico, um artefato, que exprime uma relação hierárquica entre o masculino e o feminino, traduzível em termos de importância, valor, temporalidade (o que é anterior e o que é posterior). Embora o modo como essa valência diferencial dos sexos se traduz nas instituições e grupos sociais varie, há sempre o domínio do princípio do masculino sobre o do feminino, valorização do primeiro em detrimento do segundo.

Em todas as sociedades, a diferença entre os sexos é traduzida em uma linguagem binária e hierárquica. A valência diferencial dos sexos traduz o lugar diferente que é atribuído universalmente aos dois sexos. “Essas categorias são hierarquizadas e não de natureza igualitária: o masculino é superior ao feminino, como o calor ao frio, a razão à selvageria, o

32 Cette catégorisation dualiste de base est à mes yeux issue de l’observation liminaire de la différence sexuée sur laquelle la volonté humaine n’a pas de prise. Elle est au cœur de tous les systèmes de pensée dans toutes les sociétés. Tous fonctionnent en effet avec des catégories dualistes, des oppositions binaires de caractère concret ou abstrait, lesquelles se trouvent, surtout les concrètes, connotées du signe du masculin et du féminin. (…) Nous pensions sans doute différemment si nous n’étions pas sexués et soumis à cette forme particulière de

reproduction qu’est la procréation. L’appréhension intellectuelle de la différence sexuée serait ainsi concomitante de l’expression même de toute pensée.

33 Cette hypothèse peut être creusée, bien qu’apparemment tautologique : les sexes anatomiquement et

physiologiquement différents sont un donné naturel ; de leur observation découlent des notions abstraites dont le prototype est l’opposition identique/différent, sur laquelle se moulent tant les autres oppositions conceptuelles dont nous nous servons dans nos discours de tous les ordres.

construído ao incoerente34” (HÉRITIER, 2002, p. 77, tradução minha). O que justifica “razão” ser superior em valor a “selvageria” ou “exterior” a “doméstico”, por exemplo, é o fato de “razão” e “exterior” estarem associados ao signo masculino, enquanto “selvageria” e “doméstico” estão ligados ao feminino. Esses termos inclusive mudam de valor se em determinada cultura essa associação se inverter.

Héritier defende que, apesar de a valência diferencial dos sexos não ser natural como a diferença sexual em si, ela também se apresenta nas sociedades como um mecanismo invariante. Ou seja, a autora defende que o binarismo e a hierarquia dos sexos são categorias universais. A valência diferencial dos sexos seria mesmo um dos pilares fundadores da família e da sociedade, ao lado dos três já propostos por Lévi-Strauss: a proibição do incesto, a divisão sexual das tarefas e uma forma reconhecida de união sexual.

Enquanto quarto pilar nessa estrutura, indispensável para explicar o funcionamento dos outros três, que não dão conta da relação entre o masculino e o feminino, a valência diferencial dos sexos seria, portanto, necessária à construção da sociedade e de suas regras de funcionamento. A sociedade não poderia se construir de outra forma que não sobre esse conjunto de pilares interligados.

Segundo a socióloga, também a elaboração dos grandes sistemas de parentesco – e os sistemas terminológicos, as regras de filiação e de aliança que derivam deles – teria se dado a partir do tratamento de um dado biológico elementar e incontornável (a diferença sexual) pelo pensamento: “...as regras que comandam a filiação, esse lugar necessário e o direito do qual depende o reconhecimento do lugar da criança na família e na sociedade, estão todos ancorados nisso que o corpo humano, portanto a natureza humana, tem de mais irredutível: a diferença dos sexos35” (HÉRITIER, 1996, p. 254, tradução minha).

Nesse processo, o pensamento se refinou e explorou todas as possibilidades lógicas de combinações que o substrato natural poderia oferecer. Héritier chama a atenção para o fato de que algumas possibilidades de combinações jamais foram realizadas, o que demonstra os pontos fortes dessas leis universais e fundamentais do parentesco, como por exemplo a necessidade da sucessão das gerações, que se encadeiam em uma ordem que não pode ser invertida – o pai vem sempre antes do filho.

34 Ces catégories sont hiérarchisées et non de nature égalitaire : la masculin est supérieur au féminin, comme le chaud au froid, la raison à la sauvagerie, le construit à l’incohérent.

35 …les règles qui commandent la filiation, ce lieu nécessaire et le droit dont dépend la reconnaissance de la place de l’enfant dans la famille et dans la société, sont toutes ancrées dans ce que le corps humain, donc la nature humaine, a de plus irréductible : la différence des sexes.

Nessa manipulação simbólica dos fatos biológicos pelo pensamento entra em jogo também a valência diferencial dos sexos, o que pode ser comprovado por certas relações de desigualdade que aparecem em todos os sistemas de parentesco: homem/mulher, pai/filho, mais velho/mais novo.

Existem apenas dois sexos. Seu encontro é necessário para procriar e a procriação implica uma sucessão de gerações cuja ordem natural não pode ser invertida. Uma ordem de sucessão de nascimentos no seio de uma mesma geração faz serem reconhecidos no seio das fratrias filhos mais velhos e mais novos. Na realidade, essas relações naturais exprimem todas as três a diferença no seio das relações masculino/feminino, pai/criança, mais velho/mais novo. É esse material banal, em sua universal simplicidade, que manipula a todo tempo e em todo lugar o trabalho simbólico do parentesco36. (HÉRITIER, 1996, p. 57, tradução minha)

Essa passagem exemplifica a afirmação de Héritier de que o campo dos possíveis não é infinito, já que depende do invariante da diferença sexual. Ao abordar o tema da procriação artificial e da tentativa de se proporem novos modos de filiação para dar conta do que surge de novo com os avanços da medicina em termos de reprodução, modos de filiação em que se faz apelo a uma terceira pessoa situada fora do casal, a autora defende que isso não é possível. A margem de liberdade para inovações seria a seu ver sempre reduzida, pois se tem como incontornável o fato de a reprodução ser bissexuada.

Héritier defende ainda que a valência diferencial dos sexos e a dominação masculina que a acompanha são a expressão de uma vontade dos homens de controlar a fecundidade das mulheres, o “poder” especificamente feminino de fazer crianças dos dois sexos, ou seja, reproduzir a sua forma e também a forma diferente da sua. Assim, um sistema simbólico foi colocado em prática para subverter e domesticar essa função, e para permitir a continuação da vida em sociedade. Pela inversão conceitual que marca a valência diferencial dos sexos, os homens ganham papel decisivo na procriação, o papel de domínio mesmo. Esse processo é chamado pela autora de “despossessão” das mulheres, porque elas se configuram apenas como um meio, simples material da procriação, controlada pela vontade masculina.

Diante dessa constatação, ela afirma, no primeiro dos dois volumes de “Masculin/féminin”, que seria muito difícil se alcançar no futuro uma relação de igualdade entre homens e mulheres. A valência diferencial dos sexos, enquanto um pilar da sociedade, não poderia ser transformada. No segundo volume, porém, a socióloga parece rever essa

36 Il y a seulement deux sexes. Leur rencontre est nécessaire pour procréer et la procréation entraîne une

succession de générations dont l’ordre naturel ne peut pas être inversé. Un ordre de succession des naissances au sein d’une même génération fait reconnaître au sein des fratries des aînés et des cadets. En fait ces rapports naturels expriment tous les trois la différence au sein des rapports masculin/féminin, parent/enfant, aîné/cadet. C’est ce matériau banal, dans son universelle simplicité, que manipule en tout temps et en tout lieu le travail symbolique de la parenté.

impossibilidade de mudança, ao defender que, se a fecundidade é o lugar central da dominação do masculino, um modo possível de as mulheres saírem dele é por meio do controle da fecundidade, tornado possível com o acesso à contracepção.

É importante esclarecer aqui que Héritier diferencia a igualdade de direitos e de representações sociais à qual a contracepção poderia levar as mulheres em relação aos homens de uma indiferenciação entre os sexos, que ameaçaria a construção da identidade sexual.

Querer chegar à indiferenciação entre os sexos é não levar em conta um dado com o qual o vivo deve compor, a saber a existência da diferença sexuada. (...) Ora, a luta contemporânea para que as mulheres acedam à liberdade e à dignidade de pessoa (...) tem por objeto um reequilíbrio político, intelectual e simbólico das categorias que formam o social para atingir uma situação mais justa e mais coerente com nossos saberes, e não uma inversão que reproduziria um sistema de desigualdade37. (HÉRITIER, 2002, p. 207, tradução minha)

A ideia da autora então é a de que a contracepção pode permitir às mulheres acederem a uma igualdade no seio de uma diferença sexuada, reconhecida, aceita. Ou seja, a diferença dos sexos, real, visível, assim como a oposição entre idêntico e diferente oriunda dela são dados fundamentais, dos quais não se pode esquivar. O binarismo é intransponível. A diferença sexual poderia apenas ser percebida de modo não hierarquizado e assim dar origem a novos sistemas classificatórios onde a noção de feminino tenha valor igual a de masculino.