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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

5.1 Subversões do binarismo

5.1.1 Paródias de gênero

Partindo da premissa foucaultiana de que a sexualidade é construída no interior das relações de poder e de que não é possível haver, portanto, sexualidade anterior, fora ou além da lei, Butler entende que as possibilidades subversivas do dualismo sexual devem ser repensadas nos próprios termos do poder. A tarefa crítica deve operar no interior da matriz de poder, por meio de uma repetição da lei que não representa sua consolidação, e sim seu deslocamento.

Se a subversão for possível, será uma subversão a partir de dentro dos termos da lei, por meio das possibilidades que surgem quando ela se vira contra si mesma e gera metamorfoses inesperadas. O corpo culturalmente construído será então libertado, não para seu passado “natural”, nem para seus prazeres originais, mas para um futuro aberto de possibilidades culturais. (BUTLER, 1990/2013, p. 139)

A subversão de que fala Butler ocorre no campo das identidades de gênero, na forma de “paródias de gênero”. Partindo da ideia de que o gênero é um conjunto de atos ou performances que se repetem e se cristalizam com o tempo em uma estrutura rígida, sua aposta é a de que alguns tipos de repetição, a que chama de parodísticas, são subversivas, disruptivas, perturbadoras. Esses tipos de repetição performática denunciam que também a identidade tida como permanente é uma construção. Desse modo, desestabilizam as categorias naturalizadas de sexualidade, identidade e desejo, e obrigam a repensar a própria noção de diferença sexual, a estabilidade da dicotomia entre feminino e masculino.

A ação subversiva é uma variação da repetição, é uma nova possibilidade de gênero que surge no interior das práticas de significação repetitiva contestando os códigos rígidos dos binarismos hierárquicos, por ser em relação a eles um fracasso necessário, exibição exagerada, configuração incoerente ou possível reconfiguração ou reposicionamento. As consequências dessa ação são o abalo das categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade, e a sua ressignificação subjetiva além da estrutura binária.

Da modernidade, Butler traz o exemplo da hermafrodita Herculine, descrita por Foucault, que representa a impossibilidade sexual de uma identidade e desorganiza as regras que governam o sistema sexo/gênero/desejo: “Herculine desdobra e redistribui os termos do sistema binário, mas essa mesma redistribuição os rompe e os faz proliferar fora desse sistema” (BUTLER, 1990/2013, p. 46). A confusão e a ambiguidade sexuais, bem como a presença da hétero e da homossexualidade na hermafrodita, desafiam a capacidade descritiva das categorias sexuais disponíveis, operando como lugar de denúncia e deslocamento dessas categorias.

Também a resistência da histérica à exigência de se submeter ao modelo moderno da diferença sexual, descrita por Freud e retomada por Birman no capítulo 1, poderia ser interpretada segundo a teoria de Butler como uma ação subversiva, no plano da fantasia e também no do corpo, por meio de sintomas que expressam os conflitos de um erotismo que não se adequa à categoria de feminilidade socialmente prescrita. A superfície corporal da histérica poderia ser compreendida como lugar de uma performance dissonante e desnaturalizada, que revela a sua impossibilidade de habitar o gênero feminino, de encarnar o que é tido como natural. Revela, portanto, o caráter performativo do próprio natural.

Já no que diz respeito à contemporaneidade, Butler traz alguns exemplos interessantes de identidades de gênero subversivas ou parodísticas, como a drag queen e as butch/femme. Trata-se de identidades que se apropriam das categorias sexuais de uma forma nova e, assim, as desestabilizam. A performance de gênero da drag68, uma teatralização, imitação exacerbada da feminilidade, brinca com a distinção entre a anatomia do performista, sua identidade de gênero e o gênero que está sendo performado. Trata-se, nas palavras da autora, de três dimensões contingentes da corporeidade significante: o sexo anatômico é distinto do gênero e os dois se distinguem do gênero da performance.

A performance imitativa do gênero feminino realizada pela drag não é a cópia de um gênero verdadeiro, original. Ao contrário, ela mostra que as posições tidas como naturais (masculinas ou femininas) são elas também imitações submetidas a repetições e sanções constantes, e que a heterossexualidade é ela própria uma paródia de gênero. O gênero é um tipo de imitação que não se refere a original algum.

Butch e femme são identidades sexuais gays que se reapropriam das categorias

hegemônicas de mulher e homem, feminino e masculino, hétero e homossexual, as reinventam. Butch é o nome que se atribui à lésbica “ativa”, identificada com a masculinidade, enquanto femme seria a lésbica “passiva”, mais feminina. Embora haja a ideia de que butch e femme reproduzem em um contexto gay a interação heterossexual, Butler defende que, ao mesmo tempo em que o cenário heterossexual é evocado, ele é deslocado, ressignificado. Também a feminilidade e a masculinidade da femme e da butch são ressignificações desses termos referidos à heterossexualidade.

68 A expressão drag significa dressed as a girl, vestido como uma garota. É usada para definir homens que se vestem com roupas e acessórios associados ao sexo feminino, produzindo um visual exageradamente feminino com fins performáticos. O fato de se vestir como mulher não significa que a drag se identifique com a identidade de gênero feminina, tampouco determina a sua orientação sexual.Vale lembrar aqui a afirmação de Freud no texto “A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”, de que há em cada indivíduo três

conjuntos diferentes de características, que variam independentemente uma da outra e podem ser encontradas em permutações múltiplas: os caracteres sexuais físicos, os caracteres sexuais mentais (isto é, a posição sexuada) e o tipo de escolha de objeto.

A presença dessas normas [heterossexuais] não só constitui um lugar de poder que não pode ser recusado, mas pode constituir, e de fato constitui, um lugar de competição e manifestação parodísticas, o qual rouba à heterossexualidade compulsória sua afirmação de naturalidade e originalidade. (BUTLER, 1990/2013, p. 179-180)

Segundo a autora, o objeto de desejo da femme, por exemplo, não é nem um corpo feminino, nem uma identidade masculina descontextualizados, mas a desestabilização transgressora dos dois termos quando eles entram na interação erótica. O desejo se constitui na justaposição dissonante e na tensão sexual gerada por essa desestabilização transgressora. A noção de identidade natural enquanto questão é a própria fonte da significação erótica.

Outro exemplo de paródia de gênero trazido pela autora é o do dono gay de um restaurante que, ao entrar de férias, deixou um bilhete dizendo que “ela” trabalhou demais e precisa descansar. A referência à identidade feminina não significa que a sexualidade do dono do restaurante se derive ou se reduza a esse constructo. O importante, segundo Butler, é entender o efeito destituidor de poder e desnaturalizante de um deslocamento gay dos construtos heterossexuais: “Essa apropriação gay do feminino funciona no sentido de multiplicar os lugares possíveis de aplicação do termo, de revelar a relação arbitrária entre o significante e o significado, e de desestabilizar e mobilizar o signo” (BUTLER, 1990/2013, p. 177).

No texto “¿El fin de la diferencia sexual?”, a filósofa retoma o tema das identidades

butch e femme e defende que a série completa das possibilidades da feminilidade e do desejo

feminino não se encontra dentro dos termos que existem para defini-las. Ao contrário, ela excede o marco binário e confunde seus termos. Propõe então que o marco da diferença sexual se mova além do binarismo e aceite a multiplicidade. “Por que não deveria ser o caso que estivéssemos na borda da diferença sexual para a qual a linguagem da diferença sexual não é suficiente e que isto seja, de certa maneira, consequência de uma maneira de entender o corpo como constituído por múltiplas forças e constituinte de múltiplas forças?69” (BUTLER, 2001/2012, p. 280, tradução minha).

Ainda nesse texto, capítulo do livro intitulado “Deshacer el genero” (Desfazer o gênero), e também no artigo “O parentesco sempre é tido como heterossexual?”, tradução de outro capítulo do mesmo livro, Butler critica explicitamente a tese ontológica da diferença sexual – a ideia de que a diferença sexual é fundamental à cultura e à sua transmissão – e a

69 ¿Por qué no debería ser el caso que estuviéramos al borde de la diferencia sexual para el cual el lenguaje de la diferencia sexual no es suficiente, y que esto sea, en cierta manera, consecuencia de una manera de entender el cuerpo como constituido por múltiples fuerzas y constituyente de múltiples fuerzas?

tese que deriva dela de que a reprodução deve permanecer uma prerrogativa do casamento heterossexual.

A proposta de Butler nesse livro é a de que deixemos a diferença sexual como questão em aberto, a ser constantemente negociada, de modo que não tenha consequências naturais ou necessárias para a organização social da sexualidade: “Ao insistir em que esta será uma pergunta constante e aberta, quero sugerir que não tomemos nenhuma decisão sobre o que é a diferença sexual, que deixemos a questão aberta, que se converta em uma pergunta preocupante, sem resolver, propiciadora70” (BUTLER, 2001/2012, p. 271, tradução minha). Fica evidente que a teoria butleriana se opõe totalmente à de Françoise Héritier: em vez de estrutura transcendental, a diferença sexual é para Butler uma categoria não fixa, aberta e que abre à reflexão.

Paola Marrati (2009), ao comentar a obra de Butler, resume que a tese da filósofa é a de que historicamente a diferença dos sexos funcionou, e continua hoje a funcionar, como o que torna a experiência possível, isto é, o que a torna inteligível e vivível. A prova desse papel histórico da categoria transcendente de diferença sexual são todos os indivíduos que, de modos diferentes e em lugares e épocas diferentes, foram e são excluídos do campo da experiência e da inteligibilidade aberto e regrado por ela.

Os próprios efeitos de exclusão, porém, colocam em questão o suposto status de estrutura transcendental da diferença sexual, porque se ela fosse realmente condição de possibilidade da experiência, não admitiria margens e exceções. Desse modo, Butler indica a historicidade do que se dá como estrutura e abre os limites do possível, os retira da influência de uma falsa necessidade.

Ela mostra não apenas que a diferença sexual não tem, nem de fato nem de direito, a inevitabilidade que se atribui a ela, mas também que essa diferença não está destinada a continuar nos limites de uma lógica binária. (...) O trabalho de Butler indica que uma diferença sexual não binária não tem nada de exótico, que é simplesmente um fato, um fato que concerne a todos, a cada um e cada uma de sua maneira sempre singular71. (MARRATI, 2009, p. 192, tradução minha)

A aceitação e positivação dessa diferença sexual não binária parece ser ainda um grande desafio na contemporaneidade. A própria Butler afirma em um texto de 2009 que,

70 Al insistir en que ésta será une pregunta constante y abierta, quiero sugerir que no tomemos ninguna decisión sobre lo que es la diferencia sexual, sino que dejemos la cuéstion abierta, que se convierta en una pregunta preocupante, sin resolver, propiciadora.

71 Elle montre non seulement que la différence sexuelle n’a pas, ni de fait ni de droit, l’inévitabilité qu’on lui prête, mais aussi que cette différence n’est pas destinée à rester dans les limites d’une logique binaire. (…) Le travail de Butler fait apparaître qu’une différence sexuelle non binaire n’a rien d’exotique, que c’est tout simplement un fait, un fait qui nous concerne tous, chacun et chacune à sa manière toujours singulière.

apesar da tentativa de questionamento do sistema binário, é muito difícil aceitar o que haja de ambíguo e não unívoco nos corpos sexuados. Ela dá o exemplo dos cientistas que continuam procurando fatores e componentes biológicos aos quais se pudesse atribuir a responsabilidade pela diferença clara entre mulher e homem, entre formas femininas e masculinas.