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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

5.2 Vizinhança dos sexos

Sabine Prokhoris, no livro “Le sexe prescrit : la différence sexuelle en question”, também retoma a ideia foucaultiana de dispositivo de sexualidade de “História da Sexualidade 1” para definir “diferença sexual”: efeito normativo, muito tenaz e concreto, de relações de poder concernindo o sexo e mantidas inquestionáveis. Efeito que atravessa a trama de cada existência e dita os laços entre os indivíduos e o modelo de família com direito de existir. A partir do terceiro capítulo do livro, a autora passa a usar uma única palavra para se referir à diferença sexual, “diferençadossexos” (“différencedessexes”, em francês), para mostrar a consistência do conceito e o fato de que é tido como princípio estruturante de tudo o que é humano.

Enquanto dispositivo de sexualidade, a diferença sexual faz parte do conjunto mais amplo de dispositivos reguladores de nossas maneiras de ser, pensar, amar, a que Prokhoris dá o nome de normas de existência ou “gramática da subjetivação”. Ela critica que a psicanálise esteja na atualidade na posição de fornecer essas normas ou referências incontestáveis, sobretudo da ordem sexual, ou seja, traçar uma linha de partilha entre os bons e maus modos de ser homem ou mulher, entre figuras adequadas e inadequadas da sexualidade, do feminino e do masculino. Ser bom homem ou boa mulher significa justamente se submeter sem erro à ordem da diferença dos sexos, também chamada de ordem simbólica, e a partir dela constituir “corretamente” seu desejo e sua posição sexual, heterossexual.

A psicanálise reforça, assim, “um inventário de possíveis” do sexo e da diferença sexual, sobretudo por meio de teses sobre ordem simbólica, complexo de Édipo, castração, inveja no pênis na mulher. Em Lacan, a “diferençadossexos” articulada à referência fálica dá acesso à ordem simbólica. Ou se submete a isso ou se precipita no caos do “fora sexo”. Disso resultam severas chamadas à ordem do “legítimo” e do “humano”, nos debates contemporâneos sobre reconfigurações possíveis das normas no campo da sexualidade, e inclusive na clínica.

O que Prokhoris defende, na contracorrente dessa psicanálise conservadora, “guardiã da lei simbólica”, é que a diferença dos sexos não existe. Com isso ela quer dizer que, embora haja dois sexos anatômicos distintos, esse dado poderia ser pensado a partir de outra construção intelectual. Foi o caso do paradigma do sexo único, descrito no capítulo 1, que entendia que todos tinham o mesmo órgão sexual, mas uns o tinham interno e outros, externo. A “diferençadossexos” constitui, portanto, uma solução de pensamento que foi preferida a outras para dar conta de um estado de coisas.

Pois a perspectiva que organiza a existência de cada sexo, o desenrolar de seus possíveis, e as figuras de suas relações, sob o ângulo exclusivo de uma diferença irredutível e por isso essencial, diferença que eles teriam em suma vocação para realizar – no duplo sentido dessa palavra –, não é, entretanto, a única coerente que se possa conceber. Tanto que, se é com efeito na maior parte dos casos visível a olho nu que os meninos e as meninas não são exatamente idênticos, também é observável que, apesar dessa distância entre seus sexos respectivos, seus corpos e o que eles podem fazer deles se parecem enormemente. Se parecem e se diferenciam. A “diferençadossexos”, ou seja, a representação que dispõe nesses termos, e segundo esse esquema, o fato tanto de sua proximidade como de sua dessemelhança, dando assim forma e sentido a uma situação com efeito surpreendente, não poderia ser simplesmente o produto de uma simples constatação – supondo que existe alguma coisa que se possa chamar constatação; supondo, dito de outro modo, que nossas percepções se contentam em placidamente registrar, depois retranscrever em representações “objetivas” uma realidade que não suscita nem a mínima perturbação nem a menor questão80. (PROKHORIS, 2000, p. 122-123, tradução minha)

Nessa passagem podemos perceber que ela parte do princípio da raridade discursiva de Foucault: o fato de homens e mulheres terem órgãos genitais diferentes poderia ser interpretado de outro modo. A “diferençadossexos”, embora pretenda ser a lei, é apenas uma representação, um esquema, dentre outros possíveis. Poderia haver outros dispositivos discursivos, outros códigos, que definissem sob outra perspectiva a sexualidade dos indivíduos, o feminino e o masculino. E aí as condições de subjetivação, as suas formas “válidas”, seriam outras.

No final desse trecho citado, observamos também uma crítica a Françoise Héritier, que será feita de modo mais claro posteriormente no texto, segundo a qual (como vimos também no capítulo 4) a diferença dos sexos está na base da criação da oposição fundamental que nos permite pensar. Ela seria o começo absoluto, a condição sine qua non do exercício do pensamento, pois pensar é classificar, classificar é discriminar e a discriminação fundamental está baseada na diferença irredutível dos sexos.

Em resposta ao pensamento de Héritier, Prokhoris afirma que a diferença dos sexos não poderia ser observada ou descoberta, como propõem antropólogos e psicanalistas, porque

80 Car la perspective qui organise l’existence de chaque sexe, le déploiement de ses possibles, et les figures de leurs relations, sous l’angle exclusif d’une différence irréductible et pour cela essentielle, différence qu’ils auraient en somme vocation à réaliser – au double sens de ce mot – n’est pas après tout la seule cohérente qui se puisse concevoir. D’autant que, s’il est en effet dans la plupart des cas visible à l’œil nu que les garçons et les filles ne sont pas exactement identiques, il est tout aussi remarquable que, nonobstant cet écart de leurs sexes respectifs, leurs corps, et ce qu’ils peuvent en faire, se ressemblent énormément. Se ressemblent et se dissemblent. Si bien que la « différencedessexes », c’est-à-dire la représentation qui dispose en ces termes, et selon ce schéma, le fait tant de leur mitoyenneté que de leur dissemblance, donnant ainsi forme et sens à une situation en effet étonnante, ne saurait être tout bonnement le fruit d’un simple constat – à supposer qu’il existe quelque chose que l’on puisse appeler « constat » ; à supposer, autrement dit, que nos perceptions se contentent de placidement enregistrer, puis retranscrire en représentations « objectives », une réalité ne suscitant ni le moindre trouble ni la plus petite question.

uma diferença não é uma coisa em si, mas uma maneira, entre outras possíveis, de interpretar, de tratar, de dar sentido e valor às distâncias e discordâncias entre as coisas observadas.

A autora diz ainda que a diferença sexual é uma formação do inconsciente, no sentido, não de que o inconsciente seria sexuado, mas de que o assujeitamento à ordem sexuada mergulha suas raízes no inconsciente. Por ser uma formação do inconsciente, embora muito hegemônica, ela pode ser solucionada ou desfeita, como um sintoma, por exemplo.

A proposta de Prokhoris então é que no lugar da diferença dos sexos coloquemos em funcionamento outro dispositivo de sexualidade, o da vizinhança dos sexos, que dissolve as linhas de divisão definitiva entre mulher e homem, e entende o sexual como potência intensiva, perverso-polimorfa, fora de qualquer estruturação prévia pela “diferençadossexos”. “‘Homem’ e ‘Mulher’ não poderiam se enfraquecer de acordo com outras lógicas que aquela que articula a ‘diferençadossexos’ e suas implicações?81” (PROKHORIS, 2000, p. 157, tradução minha).

O sexual, capacidade erógena plural, excede, transborda e ultrapassa o sexuado, isto é, a determinação sexuada dos corpos e das identidades. Tem uma aptidão ao transformismo, por identificações, contaminações, contatos. O sexual seria um “originário” aberto a todo tipo de identidade erótica, do qual o sexuado procede, e não o contrário.

não é a sexuação que dita a partição da sexualidade, mas a disposição sexual dita por Freud “perverso-polimorfa”, ou seja, absolutamente plástica e apta a todas modulações, que determina as figuras através das quais o sexuado entrará de tal ou tal maneira no dispositivo da sexualidade82. (PROKHORIS, 2000, p. 178, tradução minha)

Nesse dispositivo da vizinhança dos sexos, a análise, em vez de empreender “retificações subjetivas” para colocar o sujeito no bom caminho a percorrer para ser mulher ou homem, deve oferecer um espaço que lhe permita revisar e renovar suas normas de existência, inventar novas lógicas e linguagens para a sua sexualidade. Desse modo, os nós inconscientes que ordenam a sexuação de acordo com a “diferençadossexos” podem ser desfeitos.

Em vez de denunciar a negação da diferença dos sexos nos novos arranjos da sexualidade e da família, como muitos psicanalistas têm feito nos debates atuais sobre uniões homossexuais e homoparentalidade, trata-se, pelo contrário, para Prokhoris, de denunciar que

81 « Homme », « femme », cela ne pourrait-il se décliner selon d’autres logiques que celle qui articule la « différencedessexes » et ses implications ?

82 ce n’est pas la sexuation qui dicte la partition de la sexualité, mais la disposition sexuelle dite par Freud « perverse-polymorphe », c’est-à-dire absolument plastique et apte à toutes les modulations, qui détermine les figures à travers lesquelles le sexué entrera de telle ou telle façon dans le dispositif de la sexualité.

a construção “diferençadossexos” é uma negação, das mais violentas e radicais, de outros modos possíveis de os indivíduos construírem sua sexuação.

Mais uma vez recorrendo ao jogo da vizinhança, com o que ele comporta de deslizamentos e passagens, a autora argumenta que não existem nem o mesmo (se colocando contra a ideia de que na homossexualidade trata-se do amor do mesmo, que recusa o outro, como defende por exemplo Irène Théry), nem o outro radical. Só há vizinhos, mais ou menos afastados um do outro. Seguindo essa mesma perspectiva, os novos amores e sexualidades indeterminam o complexo de Édipo e obrigam a tirar novamente as cartas da sexuação. Novos agenciamentos e trajetos podem surgir, rompendo com a lógica de que cabe ao pai separar a criança da mãe e inscrevê-la na ordem simbólica, salvando-a assim da confusão dos sexos e das gerações.

É interessante que Prokhoris critica inclusive o argumento, a favor da homoparentalidade, de que em um casal de duas mulheres uma delas poderia fazer a separação do filho da mãe biológica. Sua crítica é a de que esse argumento reforça a ideia de que a relação inicial da mãe com o filho é sempre uma fusão paralisante. “Não é surpreendente que nessa conta só haja mães ruins: ou ‘abusivas’, ‘castradoras’, porque não querem aceitar que seu filho-falo, ou seu filho-expressão-do-poder-feminino seja separado delas, e então não aceitam a ‘lei do pai’; ou ‘desnaturadas’83” (PROKHORIS, 2000, p. 248, tradução minha).