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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

3.2 Acirramento do desamparo

3.2.3 Crise do patriarcado

Outro modo de enunciar o desamparo do sujeito contemporâneo é dizer que ele decorre da perda da eficácia dos mecanismos de proteção simbólica culturalmente instituídos

(BIRMAN, 2012), tendo importância aí a figura do pai. A crise do patriarcado também pode ser entendida nesse contexto do enfraquecimento de modelos e de figuras de referência e de proteção.

Há desde a modernidade o esvaziamento da autoridade simbólica do pai e o deslocamento do pai de uma posição de proteção da subjetividade para a da falta e da falha, deslocamento que pode ser observado na própria trajetória da teoria freudiana (BIRMAN, 2003): inicialmente, ao deslocar o lugar da sedução do registro do acontecimento para o da fantasia no final do século XIX, Freud realizou uma verdadeira operação de salvação do pai, que não poderia ser uma figura realmente perversa, e sim quem daria proteção à criança. A partir de 1920, entretanto, o pai é descrito por Freud como estando em uma posição de falha, não mais por ser sedutor, mas por sua incapacidade de antecipar os acontecimentos que pudessem ter um efeito traumático sobre a subjetividade.

O trauma seria uma possibilidade colocada ao sujeito em decorrência da falha paterna, mais especificamente a de não permitir ao psiquismo produzir antecipadamente angústia-sinal para evitar a desastrosa angústia traumática. “Desenha-se então outra configuração da subjetividade, na qual o trauma é uma possibilidade sempre presente e virtual. Isso implicaria uma fragilidade inerente ao psiquismo, entreaberto por suas fissuras frente ao traumático” (BIRMAN, 2003, p. 99).

O trauma e o desamparo são reveladores, assim, da condição humana finita, incompleta e imperfeita, e da falta definitiva de proteção dos deuses (e do pai) na nossa existência, pois o sujeito não consegue dispor de meios suficientes para se antecipar ao inesperado e ao improvável. Também os conceitos de pulsão de morte e de um além do princípio de prazer têm importância nesse contexto de entendimento do desamparo, pois indicam a presença de intensidades e excesso na subjetividade que se deve justamente a uma falta de articulação representacional da pulsão produzida pela figura paterna.

Birman (2003, 2006a) afirma que o desamparo é o preço pago por se ter desafiado o pai nos registros simbólico e político, a resultante maior da humilhação imposta à figura do pai na economia psíquica do sujeito. A descrição do assassinato do pai da horda primitiva por Freud em “Totem e tabu” poderia ser entendida como representando a derrocada do poder soberano que marca o advento da modernidade, cujo símbolo maior é a decapitação do rei na Revolução Francesa. Trata-se da passagem do pai onipotente a uma organização social fundada nos laços fraternos, articulada ao individualismo, portanto. Para Tort (2007), pode-se entender a Revolução Francesa como a repetição da morte do pai pré-histórico descrita em

“Totem e tabu” e como a separação simbólica entre a política e o modelo familiar do laço social.

A ficção histórica do pai morto seria o modo de Freud descrever a perda de proteção do indivíduo moderno, a morte do pai na subjetividade, equivalente à morte de Deus descrita por Nietzsche e ao desencantamento do mundo por Weber. “No mundo desencantado da modernidade e permeado pela morte de Deus, a condição humana se reconheceria finalmente pela imperfeição e pela finitude” (BIRMAN, 2001, p. 228).

Foi a experiência do desamparo que permitiu o surgimento do modernismo, conjunto de saberes e manifestações críticos à modernidade que pretendiam oferecer aos indivíduos meios de lidar com ela, dentre os quais estão a psicanálise, as vanguardas estéticas e os movimentos emancipatórios do século XIX. Na contemporaneidade, porém, estaríamos vivenciando a crise desse discurso modernista, o que aumenta ainda mais o sentimento de vulnerabilidade. As utopias e os projetos alternativos nos registros social e político da modernidade não se sustentam mais para fazer frente às dores e desesperanças produzidas na atualidade (BIRMAN, 2006a).

É importante ressaltar que falar aqui de desamparo, de crise do patriarcado e das referências simbólicas modernas, de aumento de incerteza e de vulnerabilidade não implica que se entendam essas mudanças unicamente pelo viés do negativo e da perda. Ao contrário, é possível também positivar o desamparo, se o compreendemos como o que contesta e desarruma uma ordem estabelecida, e permite assim a florescência de novas formas de subjetivação.

Quando Birman (2001, 2003) articula o desamparo à pulsão de morte, onde está em jogo uma falha do pai enquanto regulador do circuito da pulsão, podemos perceber a positivação dessa pura pulsionalidade, desarticulada de objetos de satisfação, deixada ao acaso de encontros e desencontros objetais. A subjetividade humana desamparada, imperfeita e finita, permeada por um mundo de intensidades, revela-se ainda como potencialidade de afetação e de errância no mundo. Só somos afetados e errantes, tumultuados por acontecimentos contingentes, porque imperfeitos e finitos, porque não contamos com critérios seguros oferecidos pela representação.

Neste capítulo, enfatizamos, na passagem da modernidade à contemporaneidade, a afirmação de novas sexualidades e de novas relações de sexo e de gênero, a emergência de novos modelos de família e de filiação que se afastam da família monogâmica, heterossexual

e patriarcal, e de novas leis que se atualizam para acompanhar essas transformações e as demandas dos movimentos feminista e gay.

Vimos que a crise do patriarcado ganhou força nos anos 60, quando a dominação masculina e a autoridade do pai passaram a ser contestadas com mais vigor e puderam de fato começar a ser ultrapassadas. Constatamos ainda que houve o acirramento da experiência de desamparo do sujeito contemporâneo, decorrente da emergência de novos imperativos morais e do enfraquecimento de referências simbólicas modernas e de figuras de proteção, dentre as quais o pai mais uma vez tem destaque.

Os dois capítulos seguintes da tese podem ser lidos como dois posicionamentos possíveis e opostos – sempre fazendo uso e dialogando com os conceitos da teoria psicanalítica de Freud e Lacan apresentados no capítulo 2 – frente a essas transformações ocorridas no campo da sexualidade nas últimas décadas. Apesar de os autores reunidos em cada um dos capítulos desenvolverem argumentos e conceitos próprios, e talvez não necessariamente concordariam uns com os outros, um critério parece permitir uni-los em um mesmo grupo e contrastá-lo com o grupo de autores do outro capítulo: enquanto os autores do capítulo 4 acreditam na universalidade e ahistoricidade dos conceitos da psicanálise, o que os conduz a uma interpretação negativa das sexualidades e famílias contemporâneas, os do capítulo 5 acolhem o novo e tentam propor novas maneiras de compreendê-lo e positivá-lo, inclusive a partir da revisão dos conceitos psicanalíticos.

CAPÍTULO 4

A POSIÇÃO CONSERVADORA

Neste capítulo, serão expostas as ideias de autores contemporâneos que se posicionam diante das mudanças históricas descritas no capítulo 3 de modo conservador, isto é, que as encaram como negativas, indesejáveis, como signo de desmoronamento da ordem simbólica, de comprometimento da função paterna e mesmo de destruição da subjetividade. Há nessa posição uma defesa da universalidade e da ahistoricidade dos conceitos psicanalíticos, principalmente alguns da teoria de Lacan, que atrapalha, e mesmo impede, a proposição de alternativas para lidar com o que surge de novo na cultura e na clínica. A sua análise aponta apenas o que considera problemático, sem aceitar como legítimas as novas questões e demandas que surgem.

Uma ontologia da diferença sexual será resgatada e sustentada por esses autores, e estará na base de muitos de seus argumentos, sobretudo quando eles sustentam os limites intransponíveis do binarismo e da hierarquia entre os sexos, ainda que nem sempre isso apareça de forma explícita em seus discursos. Por essa razão inclusive, o capítulo se iniciará com a exposição da teoria da socióloga estruturalista Françoise Héritier, sucessora de Lévi-Strauss, que estabelece justamente a diferença sexual como fundante de nossa cultura.

Veremos que uma interpretação estruturalista da subjetividade pressupõe a permanência do binarismo, da hierarquia, da diferença sexual e da heterossexualidade como condição da cultura, se opondo radicalmente à interpretação histórica da subjetividade que expusemos no capítulo 1 com Foucault, Birman e Butler, e que privilegiamos aqui.