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Gozo suplementar e “não há relação sexual”

CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

5.3 Máquinas desejantes e n sexos

5.4.1 Gozo suplementar e “não há relação sexual”

No livro “Théorie queer et psychanalyse”, Javier Sáez afirma que Lacan, ao propor duas formas de gozo, fálico e suplementar, cria uma teoria da diferença sexual não imaginária e não naturalizada. Não imaginária porque pretende ir além das identificações, relações imaginárias que seriam sempre binárias. Não naturalizada porque admite que um sujeito, independentemente de seu sexo anatômico, pode escolher se inscrever do lado feminino ou masculino do gozo. A diferença sexual não seria aí nem uma essência, nem uma realidade transcendente. Diria respeito a lugares vazios “masculino-feminino” que o sujeito encontra em seu ambiente.

A topologia lacaniana rompe com esse tipo de binarismo imaginário. Sua capacidade subversiva reside precisamente no fato de que Lacan não teoriza a sexualidade em termos de gênero, mas em termos de gozo. Se um dos principais esforços da teoria queer é pensar a sexualidade fora das categorias de gênero, temos aqui um exemplo disso84. (SÁEZ, 2005, p. 122, tradução minha)

De acordo com essa perspectiva, Lacan seria, portanto, queer antes do tempo, já que pensou a sexualidade fora dos termos do gênero antes do surgimento da teoria queer. Para o psicanalista Fabian Fajnwaks (2013, 2015), não há nada de mais queer que o próprio conceito de gozo, sobretudo o de gozo suplementar, que denota a possibilidade de modos de gozo múltiplos que escapam ao Um universalizante. Se no texto “A significação do falo” Lacan só admite a existência do gozo fálico, gozo que tem o falo como referência, no Seminário 20, “Mais, ainda”, ele passa a conceber um gozo que escapa à função fálica, correspondendo, assim, à definição queer de gozo: fundamentalmente rebelde a toda lei ou universalização.

Ainda assim, Fajnwaks (2015), ao comentar uma espécie de lista de gozos sexuais feita por um autor queer – drag queens, drag kings, mulheres de smoking, daddys, butch, homens lésbicos, etc. – diz que seria possível reagrupá-los nas duas modalidades de gozo propostos por Lacan. Esse reagrupamento não implicaria na submissão de uma multiplicidade de formas de obtenção de prazer a uma lei? Não implicaria ainda em recair no binarismo que se estaria tentando combater? E isso não limitaria justamente o caráter subversivo das práticas sexuais queer?

84 La topologie lacanienne rompt ce type de binarisme imaginaire. Sa capacité subversive réside précisément en ce que Lacan ne théorise pas la sexualité en termes de genre mais en termes de jouissance. Si l’un des principaux efforts de la théorie queer est de penser la sexualité en dehors des catégories de genre, nous en avons là un exemple.

Desse modo, podemos argumentar que, embora o gozo não-todo fuja à universalização e abarque uma diversidade de experiências possíveis, mantém-se um sistema classificatório binário e ainda referido ao falo. O falo permanece como referência aos dois sexos no inconsciente, mesmo se um gozo está para além dele. A fixidez de apenas duas posições, “homem” e “mulher”, restringe os possíveis da sexuação (DAVID-MÉNARD, 2009).

Na opinião do psicanalista Alain Lemosof, esse sistema binário das formas de gozo criado por Lacan reproduz, não mais seguindo a anatomia ou a construção cultural, e sim as modalidades de inscrição na função fálica, uma nova carta de gênero. “Como explicar que o que parecia, nesse quadro, subverter a ordem do sexo e do gênero, seja ilustrado pelas figuras sexuadas e gendradas mais tradicionais com suas conotações mais problemáticas, por exemplo que ‘as’ mulheres não podem dizer nada de ‘seu’ gozo suplementar?85” (LEMOSOF, 2009, p. 120). Além disso, as duas formas de gozo são entendidas como ahistóricas, já que as sexualidades de qualquer época ou cultura poderiam ser encaixadas de um lado ou de outro da classificação.

Outro argumento em “defesa” de Lacan (DEAN, 2006; JORGE, 2013; SÁEZ, 2005) parte de sua afirmativa de que não há relação sexual, e do correlato de que não há saber sobre o sexo. Com ela, Lacan indicaria o não-encontro radical entre os sexos, descartando a possibilidade tanto de complementariedade ou harmonia entre os sexos, como a de encontrar saber, sentido ou garantia em relação à sexualidade. Além de não haver relação sexual entre o homem e a mulher, não há um ideal de complementariedade desejável, que se deveria buscar. Não se trataria, então, de impor ao paciente certos ideais culturais de uma heterossexualidade harmoniosa, já que essa harmonia não existe.

Para Sáez, esse raciocínio nos leva a uma compreensão de Lacan não heterocentrada da sexualidade, indo assim na direção oposta de seu entendimento pelos autores queer. Dizer que os corpos são sexuados e que existe uma diferença sexual não equivaleria a dizer que se saiba o que significa cada um dos termos, nem que esses conceitos se refiram a realidades ontológicas. Cada sujeito é uma totalidade faltante que, ao enfrentar a diferença sexual, não chega a verdade alguma sobre o sexo, sobre o que é uma mulher e o que é um homem. Diante desse vazio de saber e sentido, toda posição, identidade ou prática sexual é possível. A heterossexualidade e a homossexualidade seriam posições imaginárias possíveis,

85 Comment expliquer que ce qui semblait, dans ce tableau, subvertir l’ordre du sexe et du genre, soit illustré par les figures sexuées et genrées les plus traditionnelles avec ses connotations les plus problématiques, par exemple que « les » femmes ne peuvent rien dire de « leur » jouissance supplémentaire ?

“identidades-respostas”, dentre muitas outras adotadas em nível consciente, para se enfrentar o vazio, a impossibilidade de relação sexual, abrigada no inconsciente sem solução.

O argumento de Marco Antonio Coutinho Jorge (2013) vai nessa mesma direção de que a impossibilidade de um saber sobre o sexo legitima toda versão da sexualidade. Ele propõe a metáfora de um livro com o capítulo principal faltando, o capítulo perdido do saber sobre o sexo. Assim, se não há versão ou sentido original, mas apenas falta de sentido, qualquer interpretação do livro é válida e legítima. Ou seja, ninguém pode se arrogar o direito de autorizar ou desautorizar a sexualidade do outro.

Vale esclarecer que seu texto, capítulo do livro “As Homossexualidades na psicanálise: na história de sua despatologização”, pretende, como o livro como um todo e conforme o próprio título anuncia, combater a patologização da homossexualidade e a homofobia que daí resulta. Trata-se, portanto, de defender a homossexualidade como uma opção sexual tão “normal” e legítima quanto a heterossexualidade. É nesse contexto que Jorge considera subversiva a releitura lacaniana da diferença sexual a partir da diferença de gozo e do enigma insolúvel da sexualidade. Se a fonte de preconceito relativo à homossexualidade é a crença de que existe relação sexual entre os sexos, ao desorganizar essa crença Lacan estaria contribuindo para a desconstrução do próprio preconceito e para afastar a psicanálise de uma normativização biologizante e psicologizante da sexualidade.

O que parece problemático nesse tipo de discurso “em defesa da homossexualidade” é que, em primeiro lugar, ele mantém o binarismo homossexual-heterossexual, restringindo a pluralidade de possibilidades de desejar a duas, uma em oposição à outra. Mesmo que se argumente que não existe a homossexualidade, e sim as homossexualidades, pois se deve levar em conta a singularidade de cada sujeito, não se rompe com o binarismo. Trata-se do mesmo problema da narrativa das duas formas de gozo.

Em segundo lugar, ainda que se afirme que as fórmulas da sexuação pretendem se distanciar da referência à anatomia ou ao gênero, o uso do termo “homossexual” para qualificar uma escolha de objeto pressupõe que o desejo do sujeito surge como um efeito que alguém do mesmo sexo anatômico ou do mesmo gênero que o seu produz sobre ele. Isso equivaleria a dizer que o sexo e o gênero são perceptíveis ao nível do inconsciente e que a sexualidade diz respeito a objetos totalmente identificáveis, os homens e as mulheres, ou ao menos formas masculinas e femininas (DEAN, 2006).