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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

2.3 Crítica à modernidade

Pelo que analisamos até aqui, é inegável que Freud tem uma concepção da sexualidade centrada no falo e na hierarquia entre o masculino e o feminino, e que traz em sua teoria marcas da moral do patriarcado e do paradigma da diferença sexual que permeavam o imaginário da modernidade. É importante, no entanto, levar em consideração que Freud também produziu textos nos quais critica a modernidade, principalmente os impasses que colocava ao erotismo, inclusive ao da mulher, e até a própria concepção da diferença sexual.

A crítica à noção moderna de diferença sexual pode ser observada em sua leitura da histeria em dois momentos (BIRMAN, 2001): em primeiro lugar, ao romper com a concepção nervosa de sexualidade predominante no século XIX e propor pensar a histeria a partir dos imperativos de seu erotismo, isto é, a partir de uma etiologia psíquica, e não de traços degenerativos. Ou seja, Freud inscreve o erotismo no fundamento da subjetividade. Em segundo, ao afirmar a bissexualidade como característica psíquica da histeria. O desejo de ser simultaneamente homem e mulher, de gozar igualmente como os dois sexos, pode ser interpretado como uma recusa do modelo da diferença sexual.

Freud positiva e afirma, portanto, o erotismo da histérica em oposição ao modelo de maternidade enquanto paradigma da feminilidade. O psicanalista cria então um paradoxo em sua própria teoria, porque por um lado aponta a maternidade como condição à feminilidade e por outro interpreta o adoecimento histérico como conflito entre a exigência de erotismo e o destino forçado da maternidade. A consequência dessa polarização entre maternidade e erotismo é que seguindo suas formulações teóricas a mulher ou fica, enquanto mãe, destinada à histeria e às doenças nervosas, pela obrigação de renúncia à potencialidade sexual, ou é vista como perigosa, pois sua insistente demanda de erotismo a destinaria à ruptura dos laços sociais. Essa condição de paradoxo em que Freud colocou a mulher existe, na opinião de Birman (2001), porque não se sai da circularidade do registro fálico.

Na continuação desse movimento de crítica à modernidade e de positivação do erotismo, Freud positiva a perversão e desconstrói as articulações então existentes entre sexualidade e reprodução e entre sexualidade e genitalidade. Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, ele afirma que a pulsão sexual é perverso-polimorfa, ou seja, que a sexualidade não visa à reprodução, e sim ao prazer, e que há uma multiplicidade de

modalidades da experiência sexual e de zonas corporais passíveis de serem objeto de prazer, sendo a zona genital apenas uma entre elas. A independência entre pulsão sexual e objeto também é desenvolvida em “Os instintos e suas vicissitudes” (1915), quando Freud diz que o objeto é o que há de mais variável na pulsão e não está originalmente ligado a ela, só lhe sendo destinado por possibilitar uma satisfação.

A crítica à modernidade também está presente no modo como Freud (1905, 1906) procura diferenciar vida sexual normal, neurose e perversão, três possíveis “desfechos” do desenvolvimento da sexualidade perverso-polimorfa. O grau de perversão de cada pessoa varia conforme as resistências psíquicas contra as quais a pulsão sexual precisa lutar. A neurose é o resultado do recalque excessivo dessa pulsão, o negativo da perversão: as fantasias claramente conscientes no perverso, que podem se transformar em atos se houver as circunstâncias favoráveis, estão inconscientes no neurótico e atuam como forças formadoras de sintomas. Com vida sexual restrita, o neurótico encontra no sintoma a sua atividade sexual, formação de compromisso entre a exigência da pulsão sexual e a exigência de renúncia sexual.

Ainda nos “Três ensaios”, em nota de rodapé, Freud diferencia a vida amorosa na antiguidade e a na modernidade a partir do deslocamento da ênfase da pulsão sexual para o objeto. Ou seja, enquanto os antigos valorizavam as intensidades eróticas e não havia preconceito em relação a objetos sexuais, os modernos menosprezam a atividade pulsional e só consideram normal a satisfação obtida com objetos socialmente aceitos.

Em “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna”, Freud denuncia ainda mais claramente a produção de “doença nervosa” por uma moral sexual que se contrapõe ao campo das pulsões, reprimindo a vida sexual dos indivíduos. Além de proibir atividades sexuais consideradas perversas, essa moral institui o imperativo de monogamia e de abstinência até o casamento, e restringe as relações sexuais dentro do casamento a atos procriadores.

A impossibilidade de circulação e de expressão da sexualidade perverso-polimorfa no campo da estrutura da família nuclear monogâmica provoca então efeitos nefastos sobre o psiquismo (BIRMAN, 2007). Os mal-estares que daí resultam incluem desde efeitos diretos sobre a vida sexual dos indivíduos, como a frigidez feminina e a impotência sexual masculina, até a formação de sintomas psiconeuróticos devido ao recalque, que não proporcionam a mesma satisfação que o prazer sexual direto. Em ambos os casos, há uma perda de erotismo do sujeito moderno.

Freud afirma nesse texto que as mulheres sofrem mais que os homens os efeitos da moral sexual, que seria mesmo uma moral dupla, no sentido de que dá maior liberdade sexual

ao homem que à mulher e pune menos severamente suas transgressões que as dela. “Essa moral sexual ‘dupla’ que é válida em nossa sociedade para os homens é a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser obedecidos” (FREUD, 1908b/1996, p. 180). O psicanalista chega a defender que a cura para a doença nervosa feminina causada pela insatisfação sexual no casamento – insatisfação que não é resolvida com a maternidade – seria a infidelidade, solução à qual a mulher receia em recorrer devido à submissão a um código sexual severo. Entre desejo insatisfeito, infidelidade e neurose, a mulher acaba escolhendo a última opção.

Segundo Freud, um modo de o indivíduo enfrentar com êxito a tarefa da abstinência e evitar o adoecimento consistiria em sublimar, isto é, trocar seu objetivo sexual por outro, psiquicamente relacionado ao primeiro mas não sexual, sem restringir consideravelmente a intensidade da energia sexual. A sublimação é definida aqui como uma dessexualização da pulsão sexual. O autor chama a atenção, no entanto, para o fato de que dominar a pulsão sexual e transferi-la para fins culturais mais elevados é algo que apenas uma minoria é capaz de fazer. A grande maioria das pessoas não possui a constituição necessária para sublimar uma parcela grande da pulsão sexual, necessitando, para não adoecer, de certa quantidade de satisfação sexual direta.

Em “O mal-estar na civilização”, Freud parece radicalizar sua crítica à modernidade. Inicialmente, ele retoma os argumentos já presentes em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” e “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna”, ao defender que as restrições sexuais impostas pela cultura, como a proibição de satisfações extragenitais e extramatrimoniais, que chegam mesmo à exigência de renúncia sexual, forçam os indivíduos a deslocamentos libidinais, como a sublimação e os sintomas neuróticos.

Mais uma vez, Freud ressalta que a sublimação, que seria o caminho menos doloroso para o deslocamento da libido sexual, além de não proporcionar a mesma satisfação que a relação sexual, é um método acessível a apenas poucas pessoas, que tenham disposição para se dedicar a atividades psíquicas, intelectuais e artísticas. Os sintomas, por sua vez, são satisfações substitutivas igualmente inferiores ao prazer sexual direto e que causam sofrimento e dificuldades por si próprias. Desse modo, o imperativo de renúncia sexual prejudica a obtenção de felicidade dos indivíduos, contribuindo principalmente para a formação de neuroses e para o domínio da frustração no campo dos relacionamentos sociais.

Nesse texto, os impasses colocados à subjetividade ultrapassam a dimensão da sexualidade. Freud explica que, além da renúncia sexual, a cultura também endereça aos indivíduos uma exigência de amor universal e de união com o outro, exigência que, assim

como a primeira, é impossível de ser realizada, devido à existência nos homens de uma poderosa inclinação para a agressão e a segregação.

O conceito de supereu também é importante nesse contexto, pois é por meio dele que Freud (1923b, 1930) fala do sentimento de culpa relacionado à sexualidade e à agressividade. Com a formação do supereu, a renúncia pulsional não possui mais um efeito liberador, porque o simples desejo de fazer algo “proibido”, que não pode ser escondido do supereu, é considerado equivalente ao ato e provoca culpa. Esse sentimento de culpa expressa mesmo o conflito interno de cada sujeito devido à ambivalência de seus sentimentos (amor e ódio), de suas pulsões (de vida e de morte). O psicanalista afirma inclusive que a intensificação do sentimento de culpa é o problema mais importante do desenvolvimento da cultura e implica em uma permanente infelicidade interna, um constante mal-estar.