• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

4.2 Paixão de dessimbolização

Irène Théry, também socióloga francesa, retoma a ideia de Héritier de diferença dos sexos enquanto pilar fundador da cultura para desenvolver sua argumentação contra a união homossexual e sobretudo contra o direito à filiação dos casais homossexuais, no texto “Le contrat d’union social en question”. Escrito em 1997, dois anos portanto antes da aprovação do PaCS na França, esse artigo se refere ainda a uma demanda de contrato de união social (CUS) feito em 1996 pelo Orgulho gay e lésbico na França, anterior ao projeto do PaCS. O CUS, como o PaCS, visava permitir a união de duas pessoas quaisquer, de mesmo sexo ou de sexos diferentes.

A autora começa o texto afirmando que o problema do CUS, e das reivindicações do movimento homossexual como um todo, é a confusão entre a luta contra a discriminação e a aspiração à indistinção (justamente o argumento de Héritier na citação acima), que remeteria a

37 Vouloir parvenir à l’indifférenciation entre les sexes, c’est ne pas tenir compte d’un donné avec lequel le vivant doit composer, à savoir l’existence de la différence sexuée. (…) Or la lutte contemporaine pour que les femmes accèdent à la liberté et à la dignité de personne (…) a pour objet un rééquilibrage politique, intellectuel et symbolique des catégories qui forment le social pour aboutir à une situation plus juste et plus cohérente avec nos savoirs, et non un renversement qui reproduirait un système d’inégalité.

uma verdadeira paixão de dessimbolização, característica das sociedades democráticas contemporâneas. A indistinção jurídica absoluta que daí resulta (entre homossexualidade e heterossexualidade, no caso) coloca em questão as instituições que organizam a diferença simbólica dos sexos e as relações entre eles: o casamento e a filiação.

Segundo Théry, a instituição jurídica da diferença reconhece a finitude de cada sexo, que precisa do outro para que a humanidade viva e se reproduza. Por meio do casamento e da filiação, o direito desenha a ordem genealógica que inscreve cada ser humano em sua dupla linhagem paterna e materna e onde se enraíza a diferença entre masculino e feminino.

Citando Marie-Thèrese Meulders-Klein, Théry opõe discriminação, ou seja, não tratar de modo igual o que é semelhante, a distinção, isto é, o reconhecimento de que o casal homossexual não é semelhante ao heterossexual. Dessa perspectiva, o não-acesso dos homossexuais ao casamento não é uma forma de discriminação, e sim um modo de sustentar a distinção entre casais hétero e homossexuais, e ainda de reafirmar o casamento como instituição que organiza as relações entre os homens e as mulheres, e um dos fundamentos da família.

Segundo a Corte Europeia dos Direitos do Homem, prossegue a autora, o casal homossexual não pode ser, como o heterossexual, protegido ao título do “direito à vida familiar”, remetendo apenas ao direito da vida privada. Um contrato de união social abriria caminho para uma pluralidade de laços jurídicos de casal, pondo em risco “a maior conquista da República”, o caráter único do casamento civil, criado em 1792, que garante a ancoragem e a imutabilidade da instituição matrimonial na sociedade. Além disso – e essa parece ser a maior preocupação da socióloga –, o contrato daria ao casal homossexual o direito à filiação, na forma de adoção ou de reprodução artificial.

Remeter cada um a seu bel prazer, demandar ao direito que o legitime, é, em nome da concepção mais pobre da liberdade (eu faço o que me agrada), renunciar a algo da lei comum, protetora dos mais vulneráveis. O CUS é, sem que seus promotores pareçam ter entendido, a primeira verdadeira ameaça contra a “glória escondida da Revolução Francesa”, que foi a criação do casamento civil38. (THÉRY, 1997, p. 171, tradução minha)

Théry entende que o reconhecimento jurídico da união homossexual coloca em risco três elementos fundamentais de diferenciação simbólica, que desenham a ordem simbólica indispensável ao conjunto das sociedades humanas e à subjetivação dos indivíduos: o casal, o gênero e a filiação. E o direito teria aí, segundo ela, uma função instituinte importante, porque

38 Renvoyer chacun à son bon vouloir, demander au droit de le légitimer, c’est, au nom de la conception la plus pauvre de la liberté (je fais ce qui me plait) renoncer à quelque chose de la loi commune, protectrice des plus vulnérables. Le CUS est, sans que ses promoteurs aient semblé le comprendre, la première vraie menace pour la « gloire cachée de la Révolution française » que fut la création du mariage civil.

contribui para estabelecer, na linguagem e na lei comum, essas distinções antropológicas principais. Se a diferenciação simbólica falha, o sujeito de direitos se torna tão abstrato que deixa de ser sexuado.

No que tange ao casal, a distinção em jogo é a entre o laço que autoriza a relação sexual e o laço que a exclui ou proíbe. Ao permitir que não-casais também se unam juridicamente, o contrato de união social aboliria a referência ao casal, noção que implica necessariamente uma dimensão sexual. A socióloga critica que a definição de casal seja feita pelos critérios da vida comum e da relação sexual em vez de pelas grandes ficções que ordenam o horizonte de sentido das sociedades humanas. Nesse processo, nega-se o bom senso e se estabelecem as diferenças a partir dos fatos, das situações concretas e das escolhas privadas, em detrimento do plano do direito, das significações comuns instituídas e da ordem simbólica. Isso seria, nos termos da autora, um ataque à ordem simbólica dos laços humanos, uma maneira de dessimbolizar a diferença.

Mais uma vez, a autora denuncia a paixão de dessimbolização contemporânea que se expressa aí na forma da crença (equivocada, segundo ela) de que a singularidade subjetiva seria mais respeitada se fosse emancipada do mundo comum das instituições. Os “apaixonados pela dessimbolização” defendem que caberia a cada um definir casal, algo íntimo e subjetivo para ser delegado à coletividade. A socióloga contra-argumenta: “sociedade alguma pode se privar de distinguir os homens das mulheres, as crianças dos adultos e sem dúvida o sexual do não-sexual39” (THÉRY, 1997, p. 173, tradução minha). O perigo de a sociedade perder sua legitimidade em distinguir o que é um casal do que não é seria uma indistinção absoluta e a ininteligibilidade da experiência dos indivíduos.

A paixão de dessimbolização estaria presente também no apagamento da representação das diferenças de gênero, do masculino e do feminino, representação que, como propôs Héritier, existe em todas as sociedades humanas. A diferença dos gêneros é entendida por ela como a ordem simbólica da diferença dos sexos, o horizonte de sentido que inscreve os laços sexuados no universo da diferenciação, do mesmo e do outro, e que rege a todos, heterossexuais (“que desejam o outro sexo/gênero”), homossexuais (“que desejam o mesmo”) e bissexuais (“que alternam, mas certamente não são indiferentes à identidade de gênero do objeto de seu desejo”).

Seguindo esse raciocínio, se a distinção entre casal homo e heterossexual acaba, os indivíduos, emancipados de sua identidade feminina ou masculina, são privados do gênero,

39 De fait, aucune société ne peut se passer de distinguer les hommes des femmes, les enfants des adultes, et sans doute le sexuel du non sexuel.

um dos princípios que os inscreve na diferenciação simbólica. São privados, assim, de uma dimensão fundamental de sua humanidade. A demanda por igualdade de direitos é a grande vilã contemporânea na visão da socióloga, pois enfraquece as modalidades tradicionais de instituição na cultura da diferença dos gêneros – que não encontra mais nas distinções hierárquicas uma ancoragem com referências fáceis – e da própria pulsão sexual.

A paixão de dessimbolização consiste muito precisamente em acreditar que se pode dispensar essa inscrição do casal na ordem simbólica do gênero, que se pode reduzir o laço à relação, o sexuado ao sexual, e se abster de instituir o masculino e o feminino. (...) Se a diferença dos gêneros não revela mais a ordem simbólica dos laços humanos, se ela não é mais instituída como uma distinção significante para a cultura comum, ela se reduz necessariamente a uma apreciação absolutamente subjetiva (cada um com sua definição do masculino e do feminino) dublada de uma diferença factualmente objetiva, que remete ao universo concreto das verdades biológicas. Como vimos a propósito do casal, a ilusão da primeira só nutre o declive da segunda40. (THÉRY, 1997, p. 178, tradução minha)

Nessa passagem fica clara a defesa de Théry de uma diferença sexual binária objetiva, biológica, observável no corpo, a partir da qual se deduz a diferença dos gêneros, exatamente como na teoria de Héritier. Para a socióloga, os sistemas de classificação das subjetividades e das sexualidades, sempre binários – homem/mulher, feminino/masculino, heterossexualidade/ homossexualidade –, são fundamentais para a preservação da cultura contra o caos da indiferenciação e da ininteligibilidade.

Ela afirma justamente que é para “preservar a cultura” que todos os países ocidentais proíbem qualquer forma de filiação “unissexuada”, que daria à criança duas mães ou dois pais, como a adoção por casal homossexual ou a inseminação artificial por um casal de lésbicas. A seu ver, essa filiação “unissexuada” vai contra o essencial das questões simbólicas, que é que a criança tenha uma mãe, um pai e uma inscrição genealógica. Ela consiste em usar e reduzir o outro sexo a simples provedor de vida, a uma dimensão unicamente corporal, transformando a reprodução biológica em uma sequência de gerações.

A autora defende claramente, então, que o casal homossexual não pode ter acesso à união social ou ao casamento porque o casamento é a instituição que inscreve a diferença sexual e a diferença das gerações na ordem simbólica, ligando o casal à filiação. Está em jogo aí a presunção de paternidade, conceito de Jean Carbonnier, citado por ela, isto é, a ficção

40 La passion de désymbolisation consiste très précisément à croire qu’on peut se dispenser de cette inscription du couple dans l’ordre symbolique du genre, qu’on peut réduire le lien à la relation, le sexué au sexuel, et se passer d’instituer le masculin et le féminin. Encore une fois, il ne s’agit pas, par ce mouvement d’indistinction juridique, de supprimer les différences, mais de déplacer leur lieu d’expression légitime. Si la différence des genres ne relève plus de l’ordre symbolique des liens humains, si elle n’est plus instituée comme une distinction signifiante para la culture commune, elle se réduit nécessairement à une appréciation absolument subjective (chacun sa définition du masculin et du féminin) doublée d’une différence factuellement objective, relevant de l’univers concret des vérités biologiques. Comme on l’a déjà vu à propos du couple, l’illusion de la première ne fait jamais que nourrir la pente de la seconde.

jurídica pela qual o marido é designado por antecipação como o pai das crianças que a mulher vier a ter.

O que a socióloga sustenta, portanto, “em nome da diferença”, é o caráter fundamentalmente heterossexual do casamento e sua articulação necessária com a filiação. Somente o casal heterossexual está inscrito na ordem simbólica da diferença dos sexos. Segundo ela, a maioria dos homossexuais admite inclusive, ainda que sofra com isso, que sua orientação sexual é incompatível com a paternidade ou a maternidade, devido à destruição simbólica da diferença entre feminino e masculino.