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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

2.6 Proibição do incesto e passagem da natureza à cultura

2.6.1 Nome-do-Pai e metáfora paterna

Se apoiando sobre a obra de Lévi-Strauss sobre as estruturas elementares do parentesco, Lacan propõe que o Édipo pode ser pensado como uma passagem da natureza à cultura. O Édipo se configura como um processo de arrancamento da criança do corpo materno: o pai realizaria o corte decisivo da relação do filho com a mãe, retirando-o do registro especular do

imaginário para inscrevê-lo no simbólico, lugar do Outro18, campo social e cultural, fundado pela interdição do incesto.

Tornando-se coextensiva à ordem edípica, a problemática natureza-cultura desloca seu espaço de oposição insolúvel para o de um conflito passível de uma saída. De fato, a ordem edípica se define como o lugar de tal conflito, suscetível de acabar permitindo ao sujeito aceder ao registro simbólico, ou seja, à cultura. (DOR, 1991, p. 29)

Aqui, fica clara a influência de Lévi-Strauss, segundo o qual, como vimos, a proibição do incesto define a passagem da natureza à cultura. “Lá onde a antropologia fala de ruptura radical necessária com a natureza, o psicanalista faz surgir a figura da separação da mãe, e à cultura, ao pensamento simbólico, responde a figura paterna (...), a afirmação da necessidade da imposição do nome do pai” (TORT, 2001, p. 47). Tanto para Lacan como para Lévi-Strauss, essa passagem entre as duas ordens é uma espécie de redefinição da libido, que passa a se situar na relação com o outro (ZAFIROPOULOS, 2002).

Além da proibição do incesto, Lacan também se apropria da teoria de Lévi-Strauss da regra da heterossexualidade exogâmica como verdade cultural universal (BUTLER, 1990, 2003): segundo a teoria lacaniana, tornar-se parte da cultura significa superar, por mecanismos de diferenciação de gênero, o tabu do incesto e alcançar a heterossexualidade normativa.

Na elaboração lacaniana, o Édipo implicaria a passagem do polo materno, identificado com o registro da natureza, ao paterno, representante da cultura e da linguagem (BIRMAN, 2006b). O Édipo passa a ser definido como uma função essencialmente simbólica, exercida pelo pai, e interpretado não mais em referência a um modelo de patriarcado ou de matriarcado, mas em função de um sistema de parentesco (ROUDINESCO e PLON, 1998). O que interessa a Lacan nesse momento, portanto, não são mais as condições sociais e familiares que dão forma ao Édipo, mas o sistema organizando as estruturas de parentesco, tal como descrito por Lévi-Strauss (ZAFIROPOULOS, 2002).

A importação por Lacan da teoria de Lévi-Strauss foi uma mudança fundamental no campo psicanalítico, que até então reduzia a compreensão da função paterna à sua articulação com o lugar do pai na família – articulação que, aliás, continua a ser feita por muitos psicanalistas na contemporaneidade, conforme nos alerta Zafiropoulos (2014). “A posição do Nome-do-Pai como tal, a qualidade do pai como procriador, é uma questão que se situa no

18 O termo Outro, com “o” maiúsculo, designa na teoria de Lacan o lugar simbólico, da linguagem e da alteridade absoluta para o sujeito. O Outro é determinante para a constituição do sujeito e de sua relação com o desejo, e é incarnado por diversos personagens ao longo de sua existência. É o lugar da alçada do terceiro, distinto do campo da pura dualidade, das relações imaginárias, chamado de outro com “o” minúsculo.

nível simbólico. Pode materializar-se sob as diversas formas culturais, mas não depende como tal da forma cultural, é uma necessidade da cadeia significante” (LACAN, 1957-58/1999, p. 187).

O período durkheimiano de Lacan acaba, assim, com a abordagem da questão psicanalítica do pai por um novo axioma: o pai não é um objeto real, e sim um puro significante19. Lacan (1957-58) chega mesmo a dizer, retomando os mitos de Édipo e de “Totem e Tabu”, que o Nome-do-Pai é o pai morto, uma construção mítica. É preciso que tenha havido o assassinato do pai para que surja o significante pai enquanto autor da lei.

Nessa virada do pai de família ao Nome-do-Pai, o que eu chamo de assassinato epistemológico do pai (em homenagem à mitologia freudiana) é bem perpetrado nesse momento por um Lacan que se tornou freudiano (sobre a questão do pai morto) e estruturalista no mesmo movimento, porque ele vai fazer prevalecer ao longo de suas pesquisas as leis do simbólico e da linguagem sobre as da família, e porque ele endossa muito precisamente, mas sem dizê-lo, a teoria de Lévi-Strauss concernindo o significante de exceção que permite ao pensamento simbólico se exercer, o significante zero ou o Nome-do-Pai em Lacan20. (ZAFIROPOULOS, 2014, p. 97-98, tradução minha)

Em “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse”, de 1953, Lacan descreve o sujeito como ser assujeitado aos símbolos que envolvem sua vida antes mesmo de seu nascimento; ele é, por isso, sujeito do significante, submetido às leis da palavra e da linguagem. Percebe-se aí mais uma vez a influência de Lévi-Strauss, que antes anos dizia que os símbolos são mais reais que aquilo que simbolizam, e que o significante precede e determina o significado. Lacan retoma ainda a ideia desse autor de significante flutuante, significante de exceção cujo papel é permitir ao pensamento simbólico se exercer. De modo análogo, o significante Nome-do-Pai é o operador estrutural que possibilita que o pensamento simbólico do neurótico se exerça (ZAFIROPOULOS, 2002, 2014).

19 O termo significante foi introduzido por Saussure, no quadro de sua teoria estrutural da língua, e posteriormente retomado por Lacan. Saussure divide o signo linguístico em duas partes: o significante, imagem acústica de um conceito, e o significado, que remete ao conceito em si. No exemplo da palavra árvore, o significante é um som pronunciado com a ajuda de seis fonemas (á.r.v.o.r.e), enquanto o significado é a ideia de árvore. A significação em Saussure se deduz da ligação existente entre um significante e um significado, estando o significado acima do significante. Lacan inverte essa posição e coloca o significado abaixo do significante e a este atribui função primordial na determinação do sujeito. O significante é o “elemento significativo do discurso, consciente ou inconsciente, que determina os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e à maneira de uma nomeação simbólica” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 708). Em Lacan, o significante está isolado do significado, sob a forma de uma letra ou uma palavra simbólica, desprovida de significação, mas determinante, enquanto função, para o discurso e o destino do sujeito.

20 Dans ce virage du père de famille au Nom-du-Père, ce que j’appelle le meurtre épistémologique du père (en hommage à la mythologie freudienne) est bien perpétré à ce moment-là par un Lacan devenu freudien (sur la question du père mort) et structuraliste dans le même mouvement, parce qu’il va désormais faire prévaloir dans le cours de ses recherches les lois du symbolique et du langage sur celles de la famille, et qu’il endosse très précisément – mais sans le dire – et sur la fonction paternelle la théorie de Lévi-Strauss concernant le signifiant d’exception qui permet à la pensée symbolique de s’exercer, le signifiant zéro ou le Nom-du-Père chez Lacan.

Há aqui a passagem do valor social do pai ao valor propriamente simbólico de seu Nome: a partir de 1953, o poder do pai e o valor estrutural de sua função não se relacionam mais com seu poder social ou do grupo do qual é chefe, e sim com seu valor no registro simbólico. O trajeto de Lacan de 1938 a 1953 vai de uma espécie de idealização do poder social do grupo patriarcal às virtudes sociais e simbólicas da função significante do pai. Nessa perspectiva, portanto, o pai da família extensa não tem mais valor que o pai da família conjugal. O que interessa a Lacan são os efeitos inconscientes da função do Nome-do-Pai (ZAFIROPOULOS, 2002).

Lacan chama a atenção para não se confundir a ausência ou carência do pai na família (dimensão realista) com sua carência no complexo de Édipo (dimensão simbólica). Também aqui Lacan teria sido influenciado por Lévi-Strauss, que propõe uma relativização radical da realidade familiar (ZAFIROPOULOS, 2002). Isso não significa que o romance familiar deva ser negligenciado, mas que o que importa de fato é ler o texto simbólico desconhecido que determina o destino e o sofrimento do sujeito.

Nesse momento de ruptura com Durkheim e encontro com Lévi-Strauss, Lacan modifica portanto radicalmente seu ponto de vista sobre o pai, passando a sustentar uma ideia ahistórica da função simbólica do pai, ou seja, de que ela poderia e deveria ser exercida independentemente da forma da família e do lugar ocupado nela pelo pai em um dado momento histórico. Nesse ponto, Lacan se torna freudiano, no sentido em que se reconcilia com Freud sobre a questão do pai (ZAFIROPOULOS, 2014). Voltaremos à questão da ahistoricidade da função paterna no final deste capítulo.

A partir dessa virada estrutural na teoria de Lacan, o Édipo deixa de ser enunciado apenas como um complexo e ganha condição de estrutura, na qual o falo e o Nome-do-Pai ocupam posições estratégicas (BIRMAN, 2006b). A função paterna, em Lacan, tem função normativa para o sujeito, pois o introduz em uma nova realidade, humana e portanto simbólica. A problemática edipiana se centra sobre a maneira como o sujeito vai se situar em relação à função do pai (BRUNO, 2012).

Inicialmente assujeitada à lei da mãe, a criança precisa, para se separar dela, de um apoio exterior, o pai simbólico. Para que o complexo de Édipo siga seu destino, é preciso que intervenha uma lei, uma ordem simbólica. Essa ordem, a ordem da palavra, é a ordem do pai. É uma lei que diz que o sujeito só poderá realizar sua sexualidade no plano simbólico (BRUNO, 2012). Nome-do-Pai é justamente o significante que introduz a lei da interdição do incesto no inconsciente enquanto lei simbólica: “É no Nome-do-Pai que devemos reconhecer o suporte da função simbólica que, desde a aurora dos tempos históricos, identifica sua pessoa

à figura da lei21” (Lacan, 1953/1999, p. 276, tradução minha). O pai intervém sob a forma da lei para privar a criança da fusão com a mãe. A ele se atribui a exigência da castração.

Em “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse”, Lacan denomina a proibição do incesto de lei primordial e afirma que ela, ao regrar a aliança, superpõe o reino da cultura ao reino da natureza, até então entregue à lei do acasalamento. Diz ainda que essa lei é idêntica a uma ordem de linguagem, pois nenhum poder sem as nominações de parentesco pode instituir a ordem das preferências e os tabus que unem e entrelaçam os indivíduos através das gerações. Nome-do-Pai, portanto, faz também referência ao fato de o pai nomear a criança, dar seu nome, e por esse ato encarnar a lei. Se a sociedade humana é dominada pelo primado da linguagem, a função paterna é o exercício de uma nominação que permite à criança adquirir sua identidade.

Em “D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose”, texto de 1956, e no Seminário 5, “As formações do inconsciente”, de 1957-58, Lacan denomina a função simbólica do pai de metáfora paterna e propõe uma fórmula para explicá-la. Vale esclarecer que na teoria lacaniana do significante, a metáfora é a função de substituição de um significante por outro, através da qual o sujeito é representado (ROUDINESCO e PLON, 1998). Dizer que o pai é simbólico equivale a dizer que ele é uma metáfora, um significante que surge no lugar de outro significante. Ou seja, o pai é um significante que substitui outro significante.

Lacan (1956) defende que a estrutura do edifício freudiano é composta por quatro traços principais: a equivalência mantida por Freud da função imaginária do falo nos dois sexos, o complexo de castração enquanto fase normativa da assunção pelo sujeito de seu próprio sexo, o mito do assassinato do pai tornado necessário pela presença constituinte do complexo de Édipo em toda a vida pessoal, e o efeito de desdobramento na vida amorosa da busca repetitiva do objeto perdido.

O que mais interessa a Lacan aí são os dois primeiros traços, que juntos levam ao entendimento de que o falo é o pivô do processo simbólico que termina nos dois sexos com o sexo sendo colocado em questão pelo processo de castração. A função do falo, prossegue o autor, é uma função de significação, que deve ser evocada no imaginário do sujeito pela metáfora paterna, a metáfora do Nome-do-Pai. A metáfora paterna substitui um significante por outro, produzindo um efeito de significação fálica. Em outras palavras, o pai substitui a mãe como significante.

21 C’est dans le nom du père qu’il nous faut reconnaître le support de la fonction symbolique qui, depuis l’orée des temps historiques, identifie sa personne à la figure de la loi.

A fórmula da metáfora ou da substituição significante é a seguinte: !!!

!!!

  → S

(

! !’

)

, onde S e S’ são significantes, x é o significado na relação com a mãe, de suas idas e vindas; é o falo. A criança pode perceber desde muito cedo o que é o x imaginário e então se fazer de falo. s’ é o significado induzido pela metáfora, que consiste na substituição de S’ por S. A queda de S’, significante intermediário, aqui representada pelo traço riscado, é a condição de êxito da metáfora, quando S se apodera do objeto do desejo da mãe, que se apresenta sob a forma do falo.

Aplicando-se essa fórmula à metáfora do Nome-do-Pai, temos então:  !"#$!!"!!"#!"#"$%  !"  !ã!!"#$"%"&'()  !"#"  !  !"#$%&'!"#"$!  !"  !ã!   → Nome-­‐do-­‐Pai

(

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)

O significante Nome-do-Pai substitui o significante Desejo da mãe, um lugar que deve antes ter sido simbolizado pela alternância de presenças e ausências da mãe, como a da experiência do fort-da, que Freud descreve em “Além do princípio de prazer” (1920a). Como já foi dito, a metáfora paterna produz um efeito de significação fálica. Ao colocar o significante Nome-do-Pai no lugar de outro significante, o Desejo da mãe, ela produz aí o falo. Ou ainda, com a substituição dos significantes, o falo se torna o equivalente do que a mãe deseja fora da criança e esta se inscreve na função fálica.

O mecanismo correlativo da metáfora paterna é o recalque originário (DOR, 1991): o significante Nome-do-Pai toma o lugar do significante originário do desejo da mãe, que é recalcado em benefício do novo significante e se torna daí em diante inconsciente. O recalque originário é prova de que a criança renunciou ao objeto inaugural de seu desejo. Essa renúncia, perda simbólica de um objeto imaginário, abre à criança, no entanto, o acesso ao simbólico e a possibilidade de advir aí como sujeito desejante. “Por desconcertante que seja, a emergência do pai, enquanto metáfora pura e simples, não deixa de subsistir como a única investidura estruturante para a criança” (DOR, 1991, p. 55). A metáfora do pai é apresentada por Lacan, portanto, como o que estrutura o psiquismo do sujeito e lhe permite desejar.