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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

5.8 Função paterna

5.8.3 Mediação pelo sinthoma

Como vimos anteriormente neste capítulo, Geneviève Morel defende que o conceito lacaniano de sinthoma permite pensar de modo novo e subversivo a escolha de sexo feita por

102 Ils ne nient pas la différence de sexe, ne nient pas l’existence différenciée du féminin et du masculin, mais refusent de la prendre comme seule base du désir, de la sexualité, de la famille... de l’alliance et de la filiation. Ils délient complètement sexualité et procréation et l’unité familiale comme lieu privilégié d’expression de la complémentarité sexuelle... ou de la domination masculine.

um indivíduo, que passa a independer do falo e do Nome-do-Pai. Além disso, o sinthoma é entendido pela autora como uma solução viável à carência paterna e ao complexo de Édipo.

Segundo ela, ao inventar o conceito de sinthoma, Lacan mantém a ideia de que a criança deve sair do assujeitamento à lei materna para sobreviver psiquicamente, mas admite que isso não se faz necessariamente segundo o modelo do Édipo. O sinthoma, elemento contingente sobre o qual o sujeito se apoia para se separar da mãe, aparece então como uma alternativa estável e suficiente ao complexo de Édipo e à intervenção castradora do pai. Ele poderia, inclusive, ser mais eficiente que o pai.

Sob um ponto, entretanto, Morel insiste: é preciso que o interdito do incesto seja estabelecido para a criança e que ela seja separada da mãe. Para ela esse é um aspecto universal, que nem o sinthoma permite relativizar ou abordar no caso a caso. Ao contrário, o sinthoma surge como um agente substituto a essa separação necessária.

Mesmo se, de maneira contingente, o pai e a lei paterna podem servir para fabricar um sintoma separador (cf. o caso freudiano do pequeno Hans), isso não é mais nem regra nem uma norma. O Nome-do-Pai guarda sobretudo um interesse clínico: ele não é mais que uma modalidade particular de sinthoma. Só permanece o interdito do incesto, na medida em que é clinicamente demonstrado (e confirmado por nossos casos) que o assujeitamento à lei da mãe é patológico e que o sujeito procura se liberar dele103. (MOREL, 2008, p. 329, tradução minha)

Morel entende que, com a mudança da teoria lacaniana nos anos 70, sai-se do sistema estruturalista do tudo ou nada: ou Nome-do-Pai ou foraclusão. O pai não é mais caracterizado como o significante da lei no simbólico e a sua função passa a ser “função de sintoma”, ou seja, a criança deve encontrar no pai um meio de constituição de um sintoma viável. Ela inclusive não acredita que há no inconsciente algo de universal que se poderia chamar “a lei”. Como vimos, ela critica o discurso lacaniano contemporâneo que utiliza o conceito de Nome-do-Pai de maneira normativa, sem levar em conta que o próprio Lacan o desconstrói na evolução de seu ensino.

Segundo a psicanalista, com o caso Joyce, fica provado que é possível não se servir do Nome-do-Pai sem enlouquecer, apesar da estrutura psicótica, e que, inversamente, o pai como agente da castração é também apenas uma forma de sinthoma, certamente muito disseminada, nos campos da neurose e da perversão. O sinthoma substitui a “ordem simbólica” e o Nome-do-Pai enquanto significante universal e transcendente. Trata-se de uma estrutura no

103 Même si, de façon contingente, le père et la loi paternelle peuvent servir à fabriquer un symptôme séparateur (cf. le cas freudien du petit Hans), ce n’est plus ni la règle ni une norme. Le Nom-du-Père garde surtout un intérêt clinique : il n’est plus qu’une modalité particulière de sinthome. Seul demeure l’interdit de l’inceste, dans la mesure où il est cliniquement avéré (et confirmé par nos cas) que l’assujettissement à la loi de la mère est pathogène et que le sujet cherche à s’en dégager.

cruzamento do universal e do singular, pois todo mundo tem um sinthoma potencial, mas sua forma depende da história de cada um. Não há sinthoma genérico.

E é justamente a singularidade do sinthoma que é explorada pela autora para propor uma clínica psicanalítica na qual o Nome-do-Pai não funcione como regra ou norma para a sexuação e a elaboração de sintomas e sofrimentos pelo sujeito, mesmo que eles sejam resultado de uma carência paterna. Ela acredita que de fato há na contemporaneidade uma carência simbólica do pai, mas defende que a postura do psicanalista deve ser a de encontrar uma alternativa séria à referência ao Nome-do-Pai para pensar a filiação e o sexo. “A clínica lacaniana do sinthoma – ou do sintoma tomado nesse sentido – abre, portanto, perspectivas de futuro promissoras em uma época onde a função do pai na família está muito enfraquecida104” (MOREL, 2000, p. 127, tradução minha).

Nesse sentido, não se trata de “neurotizar” os pacientes não neuróticos, de assujeitá-los à lei. A autora expõe, inclusive, como lei em excesso pode ser igualmente produtora de patologia. Ela mostra como casos de neurose grave, caracterizados por sintomas penosos, ligados a um supereu severo e produzidos justamente por um excesso de lei – onde o pai é um puro significante da lei –, podem envolver tanto ou mais sofrimento que alguns casos de psicose.

Ela denomina de “patologias da lei” tanto as psicoses em que o sujeito permanece assujeitado à lei da mãe como essas neuroses graves, e defende que a análise de ambos os casos tenha a proposta de ajudá-los a transformar o seu sintoma ou sofrimento em sinthoma. A proposta é a de que o sujeito adquira um saber fazer com o sofrimento e que o sinthoma ofereça um suporte novo às suas relações com o outro (pais, filhos, parceiros).

Por um lado, este capítulo reuniu diferentes narrativas que, de forma explícita ou implícita, mais ou menos radical, argumentam no sentido de que não existe uma ontologia da diferença sexual, ou seja, indicam a historicidade dessa categoria tida como estrutura transcendente, fundante da cultura, necessária para a diferenciação simbólica dos indivíduos e a inteligibilidade de suas experiências e sexualidade.

Vimos, ao contrário, que existem outros possíveis para essa diferenciação, que inclusive valorizam sexualidades, identidades, subjetividades atuais que não se encaixam em categorias binárias e que seriam definidas como desvio à norma e excluídas do campo restrito dos possíveis que essas categorias instituem. Performances parodísticas, multidões queer,

104 La clinique lacanienne du sinthome – ou du symptôme pris en ce sens – ouvre donc des perspectives d’avenir prometteuses à une époque où le rôle du père dans la famille est très amoindri.

vizinhança dos sexos, n sexos, feminilidade, lógica do limiar: conceitos diferentes que pretendem pensar justamente a diferença sem a necessidade do binarismo, da hierarquia ou da referência ao falo e ao patriarcado. Conceitos que, além disso e sobretudo, mostram que romper com uma ontologia da diferença sexual não significa chegar à indiferenciação ou à confusão. Muito pelo contrário, chega-se a uma multidão de diferenças, heterogeneidades, singularidades, a múltiplas modalidades de erotismo e de exercício da alteridade.

Por outro lado, o capítulo expôs narrativas sobre novos possíveis também da função paterna na contemporaneidade. Vimos que essa função deve ser entendida como historicamente constituída e, por isso, não depende do patriarcado, como defende por exemplo Charles Melman, tampouco da dominação masculina e da hierarquia dos sexos. Desse modo, há na contemporaneidade novas possibilidades de exercício da parentalidade a serem inventadas.

Percebemos que os autores que analisam novas modalidades de família que surgem na atualidade, como as homoparentais, em alguma medida consideram importante a transmissão da diferença sexual, da oposição feminino X masculino, à criança. Sua proposta subversiva é a defesa de uma função de mediação entre mãe e criança que rompe com as condições de sexo e de gênero ou com o falo e o Nome-do-Pai. Nesse sentido, rompem com as ideias, sustentadas por Irène Théry, de que não pode haver diferença em um casal homossexual e de que a homossexualidade é, portanto, incompatível com a parentalidade.

O argumento que se apreende de suas formulações é o de que é preciso transmitir à criança a diferença entre os sexos e separá-la da mãe, mas isso não requer que a diferença binária homem X mulher esteja encarnada nos pais, como na teoria de Joel Dor. Os pais, ainda que do mesmo sexo, podem assumir funções parentais diferentes, com a ajuda do analista e com o amparo da sociedade. Além disso, outras figuras de referência, outros modelos de feminilidade e masculinidade, podem participar do exercício da parentalidade, que se torna mais plural hoje.

Em texto recente, de 2013, Michel Tort problematiza a necessidade de que a origem do sujeito seja fundada sobre a fantasia de uma relação sexual entre dois pais de sexos diferentes, como defendem aqui Geneviève Delaisi de Parseval e Anne Cadoret. Segundo ele, essa exigência de uma “verdadeira representação do coito fecundante” está marcada ainda por representações históricas da sexualidade e da família em vias de serem modificadas e desorganizadas na contemporaneidade. A partir dessas representações, se estabelece a norma de funcionamento psíquico inconsciente e de integração do sujeito ao simbólico.

Também a compreensão lacaniana da função paterna unicamente como mediação e separação entre mãe e criança – como fica evidente na teoria de Geneviève Morel, por exemplo – pode ser problematizada na atualidade, como faz Sabine Prokhoris, porque reforça a ideia, não necessária, de que a relação da mãe com a criança é sempre paralisante e um risco de psicose. Exclui-se a possibilidade de que a mãe, ela mesma, se distancie progressivamente do filho para reconquistar um pouco da sua autonomia e retomar as atividades anteriores ao nascimento da criança. Inclusive porque hoje a mulher trabalha fora e investe em uma série de domínios para além do ambiente doméstico e do cuidado com os filhos.

Desse modo, essas representações da função paterna e da relação entre mãe e criança, também históricas, merecem ser repensadas diante das mudanças – sobretudo no que diz respeito à maior inserção da mulher na sociedade e aos novos papeis desempenhados pela mãe e o pai no cuidado do filho – e dos desafios que surgem no campo da sexualidade na atualidade.