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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

4.6 Confusão dos sexos

O mote do psicanalista Michel Schneider em sua crítica à contemporaneidade é também o apagamento da diferença sexual, já denunciado por Théry, Lebrun e Melman. A singularidade de sua tese, defendida no livro “La confusion des sexes”, é a de que esse apagamento da diferença sexual conduz à a indiferença ao sexo, à perda do desejo sexual. O autor critica o posicionamento político de socialistas e feministas na França nas últimas duas décadas, que, na sua opinião, reforça e acelera a indistinção crescente entre os sexos. Os dois primeiros parágrafos do livro já revelam o argumento que está por vir:

O homem é uma mulher como as outras. Tal era o título de um filme recente. Tal é a fantasia subjacente às representações e práticas sexuais de um número crescente de homens e mulheres. Ao mesmo tempo, observa-se uma tendência a se acabar com a sexualidade, sua perturbação, sua paixão, sua parte de sofrimento e seu inverso de morte. Sociólogos e psicanalistas fazem a constatação dupla de um apagamento da diferença entre homens e mulheres, e de uma perda da atração pelo sexo nas gerações jovens. Mas nenhum laço é feito entre essas evoluções. A tese deste livro: a indiferença ao sexo é consequência da indiferença entre os sexos, e o socialismo moral e político é hoje o meio mais moderno para nos livrarmos da sexualidade59. (SCHNEIDER, 2007, p. 9, tradução minha)

59 L’homme est une femme comme les autres. Tel était le titre d’un film récent. Tel est le fantasme qui sous-tend les représentations et les pratiques sexuelles d’un nombre croissant d’hommes et de femmes. En même temps, on observe une tendance à en finir avec la sexualité, son trouble, sa passion, sa part de souffrance et son envers de mort. Sociologues et psychanalystes font le double constat d’un effacement de la différence entre hommes et femmes et d’une perte de l’attrait pour le sexe chez les jeunes générations. Mais aucun lien n’est fait entre ces évolutions. La thèse de ce livre ? L’indifférence au sexe est conséquence de l’indifférence entre les sexes, et le socialisme moral et politique est aujourd’hui le moyen le plus moderne pour nous délivrer de la sexualité.

“Socialismo moral e político” inclui, segundo o autor, aqueles que pensam o laço social e as questões da esfera privada como assuntos do Estado e que desejam acabar com a luta entre os sexos. Embora ele se refira à direita e à esquerda, sua crítica recai sobretudo sobre o Partido Socialista e as leis aprovadas a partir do governo de Lionel Jospin (de 1997 a 2002), com participação importante de Ségolène Royal, então ministra. Vale ressaltar que esse livro foi publicado em 2007, ano justamente no qual Ségolène concorria às eleições presidenciais francesas – que acabou perdendo no segundo turno para Nicolas Sarkozy. Schneider critica contundentemente o programa de campanha da candidata, que chama de “programa do socialismo assexualista” ou “programa maternalista do não-sexo”, assim como sua participação como deputada nos anos anteriores.

O psicanalista desenvolve sua crítica à contemporaneidade a partir da crítica a leis e projetos de lei qualificados por ele de socialistas e agrupados em dois conjuntos. O primeiro se refere ao grupo de leis que criminalizam práticas sexuais, como a prostituição, o abuso sexual e a pedofilia. O segundo diz respeito a leis que visam garantir direitos a minorias sexuais, como a união e a filiação homossexuais. Sua denúncia é a de que, em ambos os casos, se produz uma confusão dos sexos nas representações políticas e sociais, que conduz à abolição da sexualidade. O ideal coletivo inspirador dessas leis seria: “Libertem-nos da relação sexual! Instauremos uma sexualidade dessexualizada, liberada da diferença dos sexos!60” (SCHNEIDER, 2007, p. 13, tradução minha).

Antes de realizar a crítica separadamente a cada um dos conjuntos, Schneider explicita como entende a diferença sexual: “O que é a diferença dos sexos? Primeiramente um fato biológico e anatômico, um elemento do real. Não se escolhe o sexo, só há dois: se cai em um corpo de menino ou de menina61” (SCHNEIDER, 2007, p. 10, tradução minha). Para ele, se referindo a Lévi-Strauss e se aproximando também de Héritier, os indivíduos são divididos em homens e mulheres, e não há grau zero da diferença sexual, que é a diferença das diferenças. As reivindicações de minorias negariam a diferença dos sexos e pretenderiam instaurar a confusão ou indiferença dos sexos.

O erro do “socialismo contemporâneo” seria então acreditar ser possível pensar os sexos fora desse lugar, natural, biológico, estruturante, onde eles se definem um em relação ao 60 « Délivrez-nous du rapport sexuel ! Instaurons une sexualité désexualisée, libérée de la différence des

sexes ! »

61 Qu’est-ce que la différence des sexes ? D’abord un fait biologique et anatomique, un élément du réel. On ne choisit pas son sexe, et il n’y en a que deux : on tombe dans un corps de garçon ou de fille.

outro. Ao colocar em questão a diferença dos sexos, ele minaria a ordem simbólica que essa diferença funda. O declínio da diferença dos sexos viria acompanhado por uma dessimbolização generalizada (termo também usado por Théry e Lebrun, como vimos anteriormente).

Citando a teoria freudiana, mais especificamente o texto “O mal-estar na civilização”, Schneider argumenta que, se o sacrifício da sexualidade é condição da vida em sociedade e se é a civilização que torna o desejo possível, o apagamento do recalque na contemporaneidade, resultado da liberação sexual, coloca a questão de o que o sexo se torna. Segundo ele, ainda que a cultura não se construa mais sobre o recalque do sexo e sim sobre a sua promoção, a sexualidade não se tornou hoje mais livre e feliz; ao contrário, continua sendo fonte de mal-estar, mas agora ele se expressa na forma da perda do desejo. A sexualidade liberada da diferença dos sexos é uma “sexualidade dessexualizada”.

Haveria hoje um mal-estar sem civilização, a assexualidade, o desejo de não ter mais desejo. No nível individual e no coletivo estariam sendo inventados obstáculos e defesas para o indivíduo fugir ao apelo do outro e não ter relações sexuais, para se libertar do sexo e da diferença sexual que o constitui. Como exemplo do nível individual, ele cita as telas do computador, a televisão, os animais domésticos, as imagens pornográficas, os esportes, as drogas, as festas rave e os sex toys. Do nível coletivo, as leis e projetos de leis já mencionados e cuja crítica será analisada a seguir.

O primeiro conjunto de leis criticado pelo autor diz respeito a novas medidas penais contra crimes sexuais na França. Alguns comportamentos sexuais até então não considerados crimes passam a sê-lo, como a prostituição (punição dos clientes) e o estupro dentro do casamento (relações sexuais que o marido impõe à mulher, sem o seu consentimento) ou têm suas definições alargadas, como o abuso sexual em ambientes de trabalho, que passa a incluir, além das ordens e ameaças graves que a lei já previa, outras atitudes como comentários sexuais e proposições sexuais não desejadas. Além disso, passa-se a valorizar mais o relato da vítima que, do mesmo modo como na pedofilia, ganha presunção de verdade.

Retomando a afirmação de Philippe Muray de que “a inveja do pênis deu lugar à inveja do penal”, o argumento de Schneider é o de que essas novas sanções repressivas pretendem interditar certos excessos da sexualidade genital adulta e limitar as formas autorizadas do desejo, sobretudo do desejo heterossexual masculino. “Uma inversão completa foi feita: o Código Napoleão punia as mulheres de vida inadequada ou adúlteras: a sexualidade inadequada estava do lado feminino. O atual Código penal sanciona como

sexualidade inadequada a do homem, presumida violenta, patológica62” (SCHNEIDER, 2007, p. 65, tradução minha).

O psicanalista diz que, embora as leis sobre o abuso e a repressão dos clientes da prostituição não estabeleçam distinção entre atos hétero e homossexuais, elas visam a sexualidade majoritária, centrada no desejo do homem pela mulher. Desse modo, segundo ele, a consequência da criação de leis que “penalizam” o desejo sexual é o seu apagamento.

Se as políticas continuarem a seguir certas promessas feministas, sem dúvida a etapa seguinte será estender um delito, até aqui limitado ao lugar do trabalho, a todos os lugares públicos, como para o tabagismo. Depois as empresas, os cafés, os restaurantes, as ruas e as praias serão proibidos à paquera. Trata-se de higienizar as relações sexuais. Como de costume com nossa Big Mother estatal, vejo daqui o cartaz anunciando o interdito sob a forma de uma adocicada incitação: “Você entra em um espaço de não-desejo63. (SCHNEIDER, 2007, p. 47, tradução minha)

As duas citações são reveladoras da posição veementemente contrária de Schneider às leis que punem a prostituição e o abuso em ambientes de trabalho, leis que visam proteger a mulher e seu corpo e são considerados por muitas feministas na França como avanços nesse sentido. A comparação entre abuso sexual e tabagismo revela a atenuação da própria noção de abuso sexual, como se fosse um hábito a ser escolhido pelo indivíduo, como o de fumar ou não, e que não deveria ser, portanto, controlado e punido pelo Estado. O autor defende inclusive, se apoiando na psicanálise, que o desejo sexual é sempre violento e pode ser unilateral e abusivo, e que o desejo da mulher em particular está associado à fantasia de não-consentimento, tornando-se assim complicado e difícil definir o limiar do abuso. Desse modo, além de ele sustentar estereótipos sexistas que a lei busca combater, ele se coloca em uma posição paradoxal: por um lado critica um liberalismo que chama de socialismo moral e político, mas por outro defende um liberalismo no que tange à violência masculina.

O segundo conjunto de leis analisado e criticado por Schneider concerne às reinvindicações e às conquistas dos movimentos gay e feminista. Ele se posiciona contra a homoparentalidade porque nela a diferença dos sexos estaria apagada e a filiação não seria sexuada, já que não articulada à união de duas pessoas de sexos diferentes. Delineia-se mais uma vez o argumento, o mesmo de Irène Théry, de que a homoparentalidade nega a diferença

62 Un renversement complet s’est fait : le Code Napoléon punissait les femmes de mauvaise vie ou adultères : la mauvaise sexualité était du côté du féminin. L’actuel Code pénal sanctionne comme sexualité mauvaise celle de l’homme, présumée toujours violente, pathologique.

63 Si les politiques continuent de suivre certaines surenchères féministes, nul doute que l’étape suivante sera d’étendre un délit, jusqu’ici cantonné au lieu de travail, à tous les lieux publics, comme pour le tabagisme. Après les entreprises, les cafés, les restaurants, les rues et les plages seront interdits à la drague. Il s’agit d’hygiéniser les rapports sexuels. Comme d’ordinaire avec notre Big Mother étatique, je vois d’ici l’affichette énonçant l’interdit sous la forme d’une doucereuse incitation : « Vous entrez dans un espace non-désir ».

dos sexos, elemento constituinte da ordem simbólica junto com a diferença das gerações. E o de que o resultado disso é indeterminação, confusão, ininteligibilidade.

Essa indeterminação generalizada dos fatos e dos conceitos torna o real simplesmente impensável e ilustra a concepção perversa da lógica e do pensamento confundindo várias oposições: entre o homem e a mulher, entre o masculino e o feminino, entre a atividade e a passividade, entre a heterossexualidade e a homossexualidade, sem falar daquelas entre fantasias e atos, ou entre práticas sexuais e estrutura do desejo64. (SCHNEIDER, 2007, p. 74, tradução minha)

O autor cita alguns argumentos dos defensores da homoparentalidade, como o que recusa as oposições binárias e defende que não há uma diferença dos sexos, e sim diferenças sexuais, mas se opõe veementemente a eles. Afirma que há uma pluralidade de sexualidades, mas não uma pluralidade de sexos. A diferença dos sexos é, segundo ele, a “Lei”, com letra maiúscula, que estrutura simbolicamente a ordem social.

O psicanalista também sustenta a articulação entre complexo de Édipo e identificações heterossexuais, ao dizer que o complexo de Édipo funda a sexualidade sobre a atração pelo genitor do outro sexo e que o interdito instituído pelo pai leva a criança a desejar um outro que não é nem da família nem do mesmo sexo que ela. O sujeito só se definiria em referência a essa ordem simbólica. A questão que a homoparentalidade então coloca é que, em vez do esquema edipiano, ela realizaria a fantasia de fundar sozinho a sua própria origem. Estaria em jogo aí uma sexualidade que a diferença dos sexos não estrutura mais, uma sexualidade sem alteridade. Ele chega a se perguntar de que sexo seriam os filhos das famílias homoparentais e a defini-los como “indivíduos simbolicamente modificados” (p. 79), em um jogo de palavras com os organismos geneticamente modificados, alvo dos debates ambientalistas.

Outra medida à qual Schneider se opõe é o fim da transmissão automática à criança do nome (sobrenome65) do pai e sua substituição pelo nome de família, instituídas por lei na França no início da década de 2000, como vimos no capítulo anterior. Isso significa que os pais podem escolher se colocarão no seu filho o sobrenome do pai, o da mãe ou os dois, e, nesse caso, na ordem que eles preferirem. Segundo o autor, se trata aí da questão de transmissão do nome, que é a transmissão do estatuto mesmo de sujeito, que nada tem a ver com diretos iguais entre homens e mulheres. Ao contrário, a transmissão pressupõe uma

64 Cette indétermination généralisée des faits et des concepts rend le réel tout simplement impensable et illustre la conception perverse de la logique et de la pensée confondant plusieurs oppositions : entre l’homme et la femme, entre le masculin et le féminin, entre l’activité et la passivité, entre l’hétérosexualité et l’homosexualité, sans parler de celles entre fantasmes et actes, ou entre pratiques sexuelles et structure du désir.

65 Em francês, sobrenome é nom e nome, primeiro nome, é prénom. Aqui, porém, utilizarei em alguns momentos nome como tradução para nom e prenome, para prénom, para facilitar a compreensão da associação no texto de Schneider entre o sobrenome do pai, nom du père, e o Nome-do-Pai, Nom-du-Père, termos que têm a mesma pronúncia na língua francesa.

dissimetria entre os pais e a criança, e entre o pai e a mãe. Fica claro que ele está fazendo alusão aqui à transmissão do Nome-do-Pai.

Como Lebrun, Schneider defende a hierarquia entre os sexos e sua tradução em uma dissimetria entre as funções paterna e materna como necessárias, citando Lévi-Strauss, segundo o qual todo regime de filiação é desarmônico e se inscreve sempre na diferença dos sexos. A assimetria na transmissão do nome do pai responderia a uma outra, o fato de que o primeiro objeto sexual e amoroso da criança, menino ou menina, é a mãe. Desse modo, a transmissão obrigatória do nome do pai protegeria a criança da incorporação materna. O nome é uma marca que o pai transmite para que a mãe não seja tudo, significando que a criança não é um bem, uma possessão da mãe. Ele é um traço no sujeito de um outro, porque é o traço na mãe do desejo paterno. Aqui vale lembrar o exemplo dado por Lebrun sobre a atribuição de um sobrenome qualquer a uma criança “sem pai” no Marrocos como modo, considerado legítimo e mesmo necessário pelo autor, de retirá-la da prevalência materna.

Schneider diferencia a doação do prenome da transmissão do nome. Enquanto o primeiro é um mecanismo imaginário, o segundo é simbólico, pois concerne o lugar do sujeito na filiação simbólica, garante sua inscrição na ordem das gerações. E, de acordo com o psicanalista, em um sistema simbólico, os laços não resultam da ação voluntária dos indivíduos, há algo imposto, que não se pode escolher ou mudar, como o nome, as regras de filiação, a língua e suas regras, o lugar na diferença dos sexos. As coisas que não escolhemos nos protegem de nossas pulsões e pensamentos mais primitivos. E essa restrição da liberdade de escolha é compensada pela “verdadeira liberdade que é o desejo” (idem, p. 121). Há algo de servidão no simbólico. A ordem simbólica assujeita o indivíduo, no duplo sentido de limitar seu querer e de permitir que diga “eu”.

Já a transmissão do nome de família, como prevê a nova lei, não garantiria que a criança inscrevesse sua história e seu desejo sob o Nome-do-Pai, que é a separação do corpo da mãe. “A função paterna permite à criança adquirir sua identidade de sujeito por essa nominação não escolhida. Ela não a garante. Mas com a transmissão de um nome da mãe, essa inscrição corre o risco de se tornar impossível66” (SCHNEIDER, 2007, p. 86, tradução minha). A reforma do nome teria por efeito aproximar o nome do prenome, o reduzindo a uma espécie de atributo, que designa uma propriedade do sujeito, e não mais o pertencimento

66 La fonction paternelle permet à l’enfant d’acquérir son identité de sujet par cette nomination non choisie. Elle ne la garantit pas. Mais avec la transmission d’un matronyme, cette inscription risque de devenir impossible.

a uma família. Ela se inscreveria na preferência contemporânea do horizontal ao vertical, do pacto à lei, do escolhido ao transmitido.

Outra medida que, para o autor, apaga a diferença sexual e contribui para a dessimbolização das relações sociais é a feminização dos nomes de profissões, funções e títulos, proposta por lei com o objetivo de corrigir desigualdades gramaticais. Segundo ele, essa lei reflete os ideais sexuais de algumas feministas na atualidade, que correspondem a teorias sexuais infantis, tais como descritas por Freud. Vale lembrar que a primeira delas nega a diferença dos sexos, ao atribuir um pênis a todos os indivíduos, homens e mulheres. Hoje essa negação da diferença sexual teria o sentido inverso: atribuiria a todas as mulheres uma aversão ao pênis e recomendaria aos homens um comportamento amoroso feminino. “Há sempre algum perigo em uma fantasia ou sintoma se tornar o fundamento de um laço social. Transcrita em relações jurídicas, a negação da diferença dos sexos traduz um desejo inconsciente de dessexualização política da sociedade67” (idem, p. 104, tradução minha).

Sua crítica é a de que haveria na atualidade um duplo movimento de dessexualização das instituições (casamento, procriação) e de sexualização da linguagem. A feminização das palavras conduziria, na sua opinião, à maternização da sociedade, a um maternalismo dessexualizante. Mãe nesse contexto é definida por ele como quem, por não se aceitar como insuficiente e faltante, quer que o filho não deseje deixá-la e, em última instância, que o filho não seja sexuado, não deseje.