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Multidões queer e resistência contrassexual

CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

5.1 Subversões do binarismo

5.1.3 Multidões queer e resistência contrassexual

Essas ideias de subversão interna e multiplicação do binário de que fala Butler na última citação também estão presentes nos textos de Beatriz Preciado, embora sob outros termos. Em “Multidões queer: notas para uma política dos anormais”, ela defende a reapropriação pelas minorias sexuais do conjunto de dispositivos de produção da subjetividade sexual, que chama de sexopolíticos. Tomando Foucault como ponto de partida, a autora propõe que compreendamos os corpos e as identidades dos anormais, não apenas como efeitos dos discursos sobre o sexo, mas como potências políticas.

As multidões queer são constituídas por minorias sexuais – feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais – e têm por estratégia política a resistência à normalização e à universalização das identidades e dos corpos. Trata-se de uma estratégia ao mesmo tempo hiperidentitária e pós-identitária. Hiperidentitária porque faz um uso máximo da posição de

identidade desviante e com conotação pejorativa como instrumento de resistência ao ponto de vista universal e straight. É o caso do termo gouine, gíria francesa para lésbica com conotação homofóbica que foi reapropriada e ressignificada pelo movimento feminista e gay francês FHAR (Front homosexuel d’action revolutionnaire). Trata-se, na definição de Preciado, de uma identificação estratégica, onde uma identificação negativa é transformada em uma identificação resistente à norma. Pós-identitária porque denuncia os efeitos normalizantes e disciplinares de toda formação identitária e acredita que não há uma base natural (“mulher”, “gay”, etc.) que possa legitimar a ação política.

A multidão queer não tem relação com um “terceiro sexo” ou com um “além dos gêneros”. Ela se faz na apropriação das disciplinas de saber/poder sobre os sexos, na rearticulação e no desvio das tecnologias sexopolíticas específicas de produção dos corpos “normais” e “desviantes”. Por oposição às políticas “feministas” ou “homossexuais”, a política da multidão queer não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”: são os drag kings, as gouines garous, as mulheres de barba, os transbichas sem paus, os deficientes-ciborgues... O que está em jogo é como resistir ou como desviar das formas de subjetivação sexopolíticas. (PRECIADO, 2011, p. 16)

Preciado afirma que a noção de multidão queer se opõe decididamente à de diferença sexual. “Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida” (Preciado, 2011, p. 18). A multidão queer consiste em “recitações subversivas de um código sexual transcendental falso”, como afirma Preciado em seu “Manifiesto contra-sexual”, ou seja, ela denuncia que a diferença sexual e a heterossexualidade são tecnologias sociais, sexopolíticas, e não uma origem natural fundadora, revelando, portanto, que é possível inverter e modificar suas práticas de produção da identidade sexual.

No “Manifiesto contra-sexual”, Preciado realiza um trabalho de desconstrução contrassexual que rompe com uma série de binômios oposicionais: homem/mulher, homossexualidade/heterossexualidade, masculino/feminino, natureza/tecnologia. Na definição da autora, contrassexualidade não é a criação de uma nova natureza, e sim o fim da natureza como ordem que legitima a sujeição de uns corpos a outros. Esse nome vem, segundo ela, indiretamente de Foucault, para quem a forma mais eficaz de resistência à produção da sexualidade não é a luta contra a proibição, na forma de reinvindicação da liberação sexual, e sim a contraprodução, isto é, a produção de formas de contradisciplina sexual, de práticas contrassexuais, de formas de prazer alternativas.

Desse modo, o manifesto contrassexual é uma análise crítica da diferença de gênero e de sexo que propõe substituir o contrato social tido como natural por um contrato

contrassexual, em que os corpos não se reconhecem mais, nem a si mesmos nem aos outros, como homens ou mulheres, mas como sujeitos que podem aceder a todas as posições de enunciação, que a história determinou como masculinas ou femininas. Esse contrato contrassexual cria, assim, a sociedade contrassexual, que se dedica à desconstrução da naturalização das práticas sexuais e do sistema de gênero, e que proclama a equivalência (e não a igualdade) de todos os corpos-sujeitos que se comprometem com os termos do contrato. A contrassexualidade se situa fora das oposições homem/mulher, masculino/ feminino, heterossexualidade/homossexualidade. Como ela pretende desnaturalizar e desmistificar as noções tradicionais de sexo e de gênero, uma de suas tarefas é estudar instrumentos, aparatos e práticas sexuais que contribuem para a contraprodução de prazer no corpo, corpo tido aqui como espaço político, centro de resistência. No começo do manifesto a autora diz mesmo que “este é um livro sobre dildos, sobre sexos de plásticos e sobre a plasticidade dos sexos76” (PRECIADO, 2002, p. 18, tradução minha).

O contrato contrassexual é apresentado na forma de artigos, que expõem os princípios e as demandas da sociedade contrassexual e os deveres dos contratantes. Como vimos, um desses princípios é a equivalência, e não a igualdade, entre os indivíduos em suas relações. Isso implica na reversibilidade e nas mudanças de papeis, modo de evitar que o contrato contrassexual desemboque em relações de poder assimétricas e naturalizadas.

Outros princípios são a separação absoluta das atividades sexuais das atividades reprodutivas e a queerização da natureza, que significa considerar os órgãos genitais, os hormônios e as reações físicas ligadas ao sexo, como a ereção e o orgasmo, como metáforas políticas, que não devem mais ser definidas e controladas pelo Estado ou pela medicina heteronormativa. No que diz respeito às cirurgias de mudança de sexo, a autora questiona por que ela está sob o controle do Estado enquanto outras não o estão, como a plástica de nariz, por exemplo. Ela também se posiciona contra a exigência de que se mude o sexo para se poder mudar o gênero e o nome. Sua proposta é a de que essas cirurgias não sirvam para que os corpos se adequem a uma coerência masculina ou feminina, mas justamente para que saiam do sistema binário, dos modelos anatômico-políticos fixos de masculinidade e feminilidade.

Nesse contexto, uma das demandas da sociedade contrassexual é o apagamento das denominações masculino e feminino relativas ao sexo dos documentos de identidade e de todos os formulários administrativos e legais. Os códigos da masculinidade e da feminilidade

devem se converter em registros abertos à disposição dos indivíduos, que têm como dever, inclusive, escolher um novo nome que escape às normas de gênero. Em um primeiro momento, pode-se usar um nome do sexo oposto ou um nome feminino e um masculino juntos, como a própria autora parece ter feito, ao se denominar Paul B. Preciado desde janeiro de 2015. O objetivo é desestabilizar a apropriação dos corpos como femininos ou masculinos pelo sistema heterocentrado.

Como esse mesmo objetivo de invalidar o sistema de reprodução heterocentrado, Preciado se posiciona a favor da abolição da família nuclear como modelo reprodutivo e de todo contrato matrimonial, inclusive do PaCS na França, porque, segundo ela, contribui para perpetuar a naturalização dos papeis sexuais. Preciado parece apresentar uma posição mais radical que a de Butler, que, apesar de denunciar os efeitos problemáticos da demanda por direitos dos movimentos gay e feminista, reconhece que há aí um dilema complicado.

No texto “O parentesco é sempre tido como homossexual?”, Butler critica a relação necessária que se estabelece ainda hoje entre casamento e parentesco, e afirma que o apelo dos gays ao casamento (como condição necessária à adoção futura de uma criança) tem o efeito negativo de reforçar a normalização pelo Estado das relações de parentesco reconhecíveis. O reconhecimento do casamento gay estende os direitos do contrato, mas não rompe com as suposições patrilineares do parentesco, tornando mais difícil a defesa da viabilidade de arranjos alternativos de parentesco, que se afastem de formas diádicas de família heterossexual.

Além disso, demandar o reconhecimento do Estado equivale a afirmar que determinadas sexualidades e arranjos sexuais são ilegítimos e irreais sem o reconhecimento dele. Desse modo, se reforça a separação entre casais homossexuais legítimos, que têm direito ao casamento, e os ilegítimos, ou seja, surgem novas hierarquias. Ocorre a transformação de uma deslegitimação coletiva (da comunidade gay como um todo) em uma deslegitimação seletiva (dos gays com alianças sexuais fora do casamento).

Por outro lado, porém, Butler entende que viver sem normas de reconhecimento provoca sofrimento e contribui para o “desempoderamento” das reivindicações dos gays, o que configura o dilema pró ou contra o reconhecimento do casamento gay. Esse dilema se torna ainda mais complicado quando se levam em conta os argumentos conservadores usados contra a união homossexual ou a adoção de crianças por esses casais, amparados pelas teorias de Lacan e Héritier, por exemplo, autores citados pela própria Butler.

O argumento principal desses autores, como também exploramos no capítulo anterior, é o de que a diferença sexual é fundamental à cultura e à sua transmissão, ou seja, a cultura

exige um homem e uma mulher, o papel masculino, paterno, e o feminino, materno, para que uma criança seja gerada e iniciada na “ordem simbólica”. Logo, a formação de famílias por homossexuais vai contra essa “ordem simbólica” e é um risco para a cultura. A reprodução deve permanecer prerrogativa do casamento heterossexual e devem ser impostos limites às formas reconhecíveis de arranjos de parentesco não-heterossexual.

Como já foi exposto anteriormente, Butler critica a ideia de uma heterossexualidade primária como fundadora da cultura, premissa estruturalista introduzida por Lévi-Strauss a partir da proibição do incesto como precondição de entrada na cultura e sustentada por Lacan ao remodelar o Édipo freudiano enquanto estrutura inaugural do sujeito, na qual ele alcança a heterossexualidade normativa. A autora defende que o Édipo não é condição normativa para a cultura e que ele seja pensado em sentido amplo, como modo de nomear a triangularidade do desejo, que pode assumir diversas formas, sem pressupor a heterossexualidade.

Podemos dizer então que por um lado Butler reconhece as dificuldades de se negar a união a casais homossexuais, pois isso corresponderia a enfraquecer o movimento gay e seus direitos, e reforçaria o argumento conservador de defesa da diferença sexual e da heterossexualidade como alicerces simbólicos da cultura e da filiação. Por outro, a autora se aproxima de Preciado, ao defender uma transformação social mais radical, que rompa com as reduções do parentesco à família heterossexual e do campo da sexualidade ao casamento.

Pois tão certo quanto o fato de que os direitos ao casamento e à adoção e, de fato, à tecnologia reprodutiva, devam ser assegurados a indivíduos – bem como sua aliança – fora da moldura do casamento, seria uma drástica privação da política sexual progressiva permitir que o casamento e a família, ou mesmo o parentesco, fossem os parâmetros exclusivos dentro dos quais se pode pensar a vida sexual. (BUTLER, 2003, p. 260)

Mas voltemos a Preciado e ao manifesto contrassexual. A autora faz uma crítica a Butler: ao focar nas performances e paródias de gênero, ela teria deixado de lado o corpo e a sexualidade, isto é, as práticas sexuais e as tecnologias que incidem sobre o corpo. A proposta subversiva de Preciado se dá no próprio corpo, por meio de práticas contrassexuais que o ressignifiquem e apontem o caráter construído da heterossexualidade e do binarismo entre corpo masculino e corpo feminino. Aqui, o corpo é o espaço de paródia. A subversão da normalização sexual é ao mesmo tempo qualitativa (hétero) e quantitativa (dois) das relações corporais.

Enquanto Butler fala da performance da drag queen, que, ao imitar a feminilidade, mostra que a feminilidade e a masculinidade não são dados naturais e oposicionais, Preciado cita as transformações que se dão nos corpos dos transexuais ou a utilização de dildos (pênis de plástico) nas relações sexuais. As cirurgias a que se submetem os transexuais indicam que

os dois órgãos que interpretamos como naturais, masculino ou feminino, também sofreram um processo semelhante de transformação plástica.

Vaginoplastia (reconstrução da vagina), faloplastia (construção do pênis), modificações ou aumento do clitóris, mastectomia (retirada dos seios), histerectomia (retirada do útero), aparentemente lugares de renegociação, de resolução de “discordâncias” entre sexo, gênero e orientação sexual, tornam evidente, segundo a autora, a construção tecnológica e teatral da verdade natural dos sexos. “O conjunto destes processos de ‘re-atribuição’ é o segundo recorte, a segunda fragmentação do corpo. Esta não é mais violenta que a primeira, é simplesmente mais gore [sangrenta], e sobretudo mais cara77” (PRECIADO, 2002, p. 104, tradução minha). Assim, somos todos “pos-op78”, ou seja, já fomos operados por tecnologias sociais, não havendo corpos livres para a transexualização.

Já a utilização do dildo revela que o pênis não está na origem da diferença sexual, não é o órgão que institui o corpo como naturalmente masculino, e desconstrói a heterossexualidade como natureza. Ela mostra que tanto a masculinidade como a feminilidade foram submetidos às tecnologias sociais e políticas de construção e de controle. “O dildo é a verdade da heterossexualidade como paródia. A lógica do dildo prova que os próprios termos do sistema heterossexual masculino/feminino, ativo/passivo, são elementos entre outros muitos em um sistema de significação arbitrário79” (PRECIADO, 2002, p. 68, tradução minha).

Assim, a resistência contrassexual consiste em difundir, pôr em circulação práticas sexuais subversivas de ressignificação e desconstrução dos códigos binários e das categorias naturalizadas do sistema heterocentrado. Além do uso de dildos, a autora cita a sexualidade anal como outra prática contrassexual com grande potencial subversivo, porque o ânus é uma parte do corpo designada como não-sexual, excluída das práticas reprodutivas, e, além disso, vai além dos limites anatômicos impostos pela diferença sexual (todos têm anus) e pelo pensamento binário genital (pênis/vagina).

77 El conjunto de estos procesos de «reasignación» no son sino el segundo recorte, la segunda fragmentación del cuerpo. Esta no es más violenta que la primera, es simplemente más gore, y sobre todo más cara.

78 Pos-op é abreviação de Post operatório, termo do vocabulário médico que designa o status do transexual que já passou por uma cirurgia de mudança de sexo.

79 El dildo es la verdad de la heterosexualidad como parodia. La lógica del dildo prueba que los términos mismos del sistema heterosexual masculino/femenino, activo/pasivo, no son sino elementos entre otros muchos en un sistema de significación arbitrario.