• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – UM ESCRITOR E SUA BIBLIOTECA

2.1 Bisbilhotar bibliotecas

Campo físico de trabalho do escritor, sua biblioteca representa importante depositário de pistas, que podem recompor certos caminhos por ele trilhados, na elaboração de suas obras

ou no destino dado a elas. Quem tem o hábito de produzir em tais espaços sabe, e pode confirmar o que afirmamos, que os textos que vão nascendo, literários ou não, recebem constantes interrupções em sua produção, para eventuais consultas às obras que compõem o acervo que cerca o escritor. Tais consultas resultam, na maioria das vezes, em influências na escritura da obra em construção. Daí que uma das formas de perscrutar a produção literária de um escritor é, em havendo oportunidade, verificando sua biblioteca particular.

Através dessa observação ao acervo do escritor, podemos perceber, pelos livros que o compõem, os autores que contribuíram na formação, ou a rede de leituras do escritor estudado; num estudo posterior mais aprofundado, temos como verificar as influências dos autores presentes no acervo, na obra do escritor, através de citações, paráfrases, até mesmo como respaldo científico para a elaboração de determinadas produções, como observamos no interessante trabalho de Barbieri (2001), em que, analisando a biblioteca de Machado de Assis, encontrou livros de Psiquiatria, que podem ter sido utilizados pelo “bruxo do Cosme Velho” para subsidiar a narrativa de contos conhecidos, como “O Alienista” ou “O lapso”, que abordam assuntos ligados a essa ciência.

Mas, muito mais que perceber tais influências, a biblioteca particular de um escritor pode fornecer várias outras informações preciosas, que nos serão de uma utilidade considerável na (re)composição de seu cotidiano, tanto pessoal quanto literário. Um levantamento do acervo pode informar, em geral, a preferência leitora do proprietário da biblioteca, uma vez que os livros que trazem carimbo ou alguma identificação de livraria sugerem ter passado por um processo de escolha, para ser adquirido, o que denuncia o interesse particular do leitor; igualmente, os compêndios recebidos de presente informam, entre outros aspectos, sobre as relações estabelecidas entre o dono do acervo e os escritores ou os doadores, bem como estabelece o interesse destes ao oferecer o volume, notadamente quando há uma dedicatória, o que possibilita criar um raio considerável de autores que mantêm entre si um intercâmbio literário; as condições físicas dos livros – manchas, rasgões ou amassões denunciando leituras e releituras, ou folhas coladas mostrando que não foram lidos – podem também dizer da relação do leitor com aquela obra. Jobim (2001, p. 12) chama a atenção, em relação ao levantamento dos livros da biblioteca particular de Machado de Assis, para, entre outras coisas, “ver quais teriam sido lidos e quais não, por estarem uns mais desgastados e outros com as páginas ainda coladas”.

Por outro lado, rabiscos, grifos, anotações feitas nas margens das páginas são fundamentais para acompanhar, tanto tempo depois, o percurso mental feito pelo leitor, sua reação ao ler aquele trecho, o foco de interesse; cartões, fotos, pedaços de papel, a servir de marcadores de leitura podem mostrar, além do óbvio – até onde o livro pode ter sido lido –, outros dados interessantes do dia-a-dia do leitor-escritor... Enfim, um mar de informações pertinentes a um estudo de determinado autor pode se originar das observações contidas em seu gabinete particular de leitura.

Souza e Miranda (2003, p. 12) chamam a atenção para o fato de que “o material paraliterário existente nos acervos do escritor, como a correspondência entre colegas, depoimentos, material iconográfico, entrevistas, documentos de natureza privada, assim como

sua biblioteca e seus objetos pessoais” (grifo nosso) são elementos dignos de nota num “esboço de biografia intelectual”. Claro que não se trata de um leviano recolhimento de

souvenirs, com o único e superficial intuito de ter em mãos uma régua ou um prendedor de

papeis, usados pelo biografado; o levantamento dos objetos prende-se ao fato de representarem elementos que podem explicar ou fornecer indícios relativos a comportamentos do escritor na elaboração de determinados textos, marcas estilísticas percebidas na obra etc. Ou seja, urge uma triagem nos papeis ou objetos encontrados na biblioteca particular de um autor, porque somente os que podem trazer informações pertinentes à pesquisa que estamos fazendo, são dignos de registro. Um mero guardanapo sujo de mostarda, encontrado no interior de um livro do acervo analisado, não nos tem muita serventia, a não ser que nele haja algum tipo de anotação de dados importantes para elucidar algum detalhe carente de explicação, na obra do escritor, ou, trechos inéditos de criação literária, ou, ainda pistas de relações estabelecidas com outrem.

Diante de um tesouro dessa magnitude, o competente pesquisador há de, como ensina Massa (2001, p. 25), “em primeiro lugar, olhar com cuidado os volumes, auscultá-los à procura de eventuais notas manuscritas [...], de impressões de leituras rabiscadas às margens das obras que compunham sua biblioteca”, para, desta maneira, formar um juízo adequado desse material e compreender sua importância para a pesquisa realizada. Ou, como diz Vianna (2001, p. 104), “‘auscultar’ cada volume, ‘ouvir seus ruídos’, a fim de colher o maior número possível de informações sobre o acervo”. É, pois, um minucioso trabalho, cujos resultados, entretanto, hão de redundar em seguro alicerce de qualquer pesquisa que se pretenda séria.