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CAPÍTULO 1 – NOTÍCIA BIOGRÁFICA DE JOSÉ CONDÉ

1.1 Histórias de uma vida

1.1.10 Doença e morte

Há quem remonte a origem da doença que vitimou José Condé aos longínquos banhos infantis no rio Ipojuca, em que teria sido contaminado pela esquistossomose, doença transmitida pelo caramujo, muito frequente em regiões alagadas, e cujos parasitas, depois de penetrar na corrente sanguínea através da pele em contato com a água, chegam ao fígado,

35 Entrevista concedida no Rio de Janeiro-RJ, em 11/04/2011. 36 Entrevista concedida no Rio de Janeiro-RJ, em 11/04/2011. 37 Entrevista concedida no Rio de Janeiro-RJ, em 11/04/2011.

onde maturam as formas adultas, deixando o órgão fragilizado e suscetível a enfermidades futuras, principalmente quando o fígado é posto em situações de intensa exposição ao álcool, por exemplo.

O médico gastroenterologista e especialista em doenças do fígado, Josenildo Correia (informação verbal)38 afirma:

se ele [José Condé] teve esquistossomose, sem dúvida que teria uma predisposição maior à cirrose, em associação com o álcool. A esquistossomose, por si só, não levaria à cirrose, e sim apenas à fibrose. Mas, com o álcool, esse fígado pode sofrer transformação para cirrose. [...] O paciente que tem esquistossomose com fibrose hepática, evolui para uma cirrose quando existe uma interação com álcool ou vírus.

A morte, que aparece tantas vezes, nas mais diversas situações, ao longo da obra condeana, é uma das lembranças mais antigas do escritor. Por volta dos três ou quatro anos de idade, Condé a conhecera quando do falecimento de seu irmão Inácio, então com oito meses:

Foi a primeira vez que tive contato com a morte. Recordo que havia na minha casa uma empregadinha, neta de uma escrava de meu avô materno. Perguntei-lhe o que era a morte. E ela respondeu mais ou menos assim: morte é um lugar onde a gente vai, debaixo da terra, não pode ver nem respirar. Isso me deu um grande desespero. Depois, o enterro: lembro seu caixãozinho azul, as crianças levando capelas de flores naturais e o sino da matriz tocando o repique fino que queria dizer “enterro de anjo”. (ENEIDA, 1962, p. 80)

Qual sinistra figura da imaginária velha desdentada, presente no conto “Noite de Temporal”, de seu livro póstumo As Chuvas (CONDÉ, 1972, p. 1-33), a morte começou a se fazer anunciar quando Condé encontrava-se em Paris, com a esposa Maria Luiza, em 1970. Fora assistir ao lançamento da segunda edição de Pensão Riso da Noite: Rua das Mágoas (Cerveja, Sanfona e Amor), na Alemanha, e bebera muito vinho. À noite, no hotel, passou mal, como relata Maria Luiza, em carta a Selita Dalmas:

Estávamos em Paris. Era a noite de 24 para 25 de maio de 1970. Tínhamos ido cedo para o hotel, pois dia 25 havia muito que fazer e dia 26 embarcaríamos para a Itália. Ele não se sentia bem. Achava-se indisposto, cansado. Contou-me depois que escondera de mim, mas que vomitara durante todo o dia. Vomitava sangue, julgando estar vomitando vinho. Pensava que era vinho tinto, resultado de uma noitada que fizéramos na véspera, em Montmartre. Naquela noite, acordei ouvindo-o vomitar no banheiro. Corri para lá e vi o quadro mais dantesco da minha vida, que jamais esquecerei, mesmo que viva cem anos. Ele, lívido, vomitando

torrentes de sangue. As paredes, a privada, o bidê, a pia, a banheira pareciam pintados de sangue. Uma coisa horrível. (DALMAS, 1972, p. 27).

Sofrera uma forte hemorragia esofageana e foi hospitalizado às pressas, em estado grave, na Clínica Beau Séjour, em Montrouge, onde ficou internado por 15 dias. De volta ao Brasil, apresentava-se bastante frágil, como atesta Elysio Condé: “fui recebê-lo no aeroporto, indo com o carro até junto do avião, pois ele não podia se locomover. Ao vê-lo, senti que não tinha existência para muito tempo” (CONDÉ, E., 1981, 2). Ficou dois dias internado no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, iniciando, então, um longo tratamento, que parecia recuperar-lhe as forças (Figura 9).

Queria fazer muita coisa ainda Condé. Sentindo a vida se esvair, apressou-se em adiantar seus projetos. Apoiado numa tábua, conseguiu escrever dois livros, no leito a que a enfermidade o prostrara. Em junho de 1970, lançou Tempo Vida Solidão. Pretendia passar uma temporada no Nordeste, mais especificamente em Barra de São Miguel, terra natal de Maria Luiza, e em Maceió. Este último plano, infelizmente, não conseguiu realizar, em função da fragilidade na saúde, com que atravessou todo o ano posterior ao da sua volta da França. Comovido, o escritor Afrânio Melo escreveu: “Condé morreu porque não podia mais viver a vida que tivera, nem ser o que sempre foi: um homem, um grande homem, que via o mundo em família, em parceria, e só o compreendia junto dos amigos” (MELO, A., 1971, p. 5).

Fevereiro de 1971. José Condé foi internado mais uma vez, no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, em função de algumas complicações no seu estado de saúde. Retornou para casa, onde procurou seguir rigoroso tratamento, mas com a doença deixando-o cada vez mais abalado, mais frágil. Por outro lado, jamais abriu mão do álcool, como confirma Leopoldo Teixeira (informação verbal)39, ressaltando que, mesmo rigorosamente proibido pelos médicos, Condé não se furtava a tomar seu cálice de conhaque, para desespero dos amigos, e do próprio Leopoldo, que fazia de tudo para impedir o gesto, embora infrutiferamente. O escritor prosseguiu na faina ansiosa e angustiante de produção de algumas novelas, que comporiam sua obra póstuma As Chuvas.

39 Entrevista concedida no Rio de Janeiro-RJ, em 12/04/2011.

Figura 9 – José Condé, já doente, tendo ao lado a esposa Maria Luiza. Foto: Acervo da família de José Condé.

Embora com a saúde bastante abalada, José Condé, “cuja vontade de viver prorrogou uma condenação trágica, que há um ano e meio lhe havia sido imposta” (FIGUEIREDO, 1971, p. 6), não se entregava, e ainda fazia planos para o futuro, como se pode perceber nesta nota, publicada no Correio da Manhã, em abril desse ano:

Para transformar o comércio de arte numa “atividade mais séria como merece ser”, um grupo de artistas resolveu abrir a Bolsa de Arte na Praça General Osório, em Ipanema. Entre os nomes que lideram o movimento estão José Condé, Gilberto Chateaubriand, Flexa Ribeiro e Fernando Portela. Para o primeiro pregão já se tem cerca de 10 peças. (BOLSA..., 1971, p. 4) No dia 19 de junho, o Correio da Manhã (AS SONORAS, 1971a, p. 7) anunciava para o dia 24, dia de São João, na Livraria Ruba-jyát, o lançamento de Tempo Vida Solidão, o que de fato aconteceu, como noticiaria este jornal, de forma bem-humorada, na edição de 25/06/1971: “José Condé cansou a mão (direita) de tanto assinar autógrafos de seu livro Vida, Tempo e Solidão [sic] anteontem40 na livraria Rubayat em Ipanema” (AS SONORAS, 1971b, p. 7).

Em 18 de setembro desse ano, foi internado, pela terceira vez, no Hospital da Lagoa, em estado lastimável. Após alguns dias bastante apreensivos para a equipe médica, família e amigos, que acompanhavam, angustiados, o quadro clínico do escritor, uma boa notícia amenizava a tensão: na tarde do dia 27, o hospital emitiu um boletim médico que dava conta da considerável melhora em seu estado clínico, sendo, inclusive, transferido do Centro de Tratamento Intensivo para o quarto 404, e liberadas as visitas.

Caiu a noite. Com ela, aquela velha desdentada rondava, lúgubre, o leito em que repousava o criador de mundos imaginários. Ela estava disfarçada de cirrose hepática. Acercou-se de José e o abraçou finalmente. Na parede do quarto, um quarto para as onze da noite marcava o relógio. O pequeno grupo que o assistia, assistiu-lhe ao cruel desfecho de meses de sofrimento: Maria Anália (a primeira esposa, mãe de seus filhos), Maria Luiza (sua segunda esposa), os filhos Maria Regina, Vera e Fernando, o irmão Elysio (João se encontrava na Europa), além de alguns amigos mais íntimos. José Condé já não existia mais.

Um dos presentes era Leopoldo Teixeira Leite (informação verbal)41, que assim relata o momento final de José Condé:

Eu sou arquiteto, [...] e fui designado a examinar um prédio que tinha perto do hospital da Lagoa; eu fui com um calculista do Instituto [de Aposentadorias e Pensões dos Industriários – IAPI]. E eu disse: “Eu estou com um amigo meu aí...” Ele disse: “Leopoldo, você pare e vamos lá em cima que esse teu amigo está muito mal”. “Ué, você sabe?” “Sei.” Ele [o amigo calculista de Leopoldo] era espírita. Saltamos, fomos. E ele, quando chegou, entrou e foi falar com Zé, na cama. Estava Vera, todo mundo estava na porta, assim; quando ele voltou, disse: “Ele vai embora agora.” Morreu. Eu assisti à morte dele.

Espocaram choros, lamentos e manifestações de todo país, em ondas intensas. Principalmente no Rio de Janeiro, cuja atuação jornalística e literária de Condé fê-lo conhecidíssimo e bastante respeitado, e em Pernambuco, seu estado natal, pelos fortes laços de parentesco e de amizade que José Condé soube alimentar durante toda a vida.

O dia 28 de setembro amanheceu triste, pesado, escuro, chuvoso. Coroas de flores, mensagens de condolência, luto, lágrimas, pesar deram a tônica daquela terça-feira setembrina. Grande número de amigos, colegas e admiradores compareceram ao seu velório, quando puderam externar seu adeus ao escritor caruaruense que fazia questão de se mostrar pernambucano, não apenas através da obra que publicou e das constantes declarações de amor à terra, mas simbolicamente pela bandeira de Pernambuco, na qual pedira (e fora atendido) para ser envolvido, no ataúde.

O jornal Correio da Manhã, no qual trabalhara por mais de duas décadas, trouxe a seguinte nota, na seção “Coluna Três”:

CONDÉ – O escritor José Condé, autor de Um Ramo para Luísa, Terra de

Caruaru e outras obras, morreu às 22h45min de ontem no Hospital da

Lagoa, onde sua mulher Maria Luisa Condé, seus filhos e seu irmão Elísio Condé o assistiam. Todos os esforços foram feitos para salvá-lo, pelos médicos Davi Geremberg e Edgar Faust, mas o escritor, que estava internado há uma semana não resistiu às complicações hepáticas de que sofria.

O corpo de José Condé, que foi um dos fundadores do Jornal de Letras, está sendo velado na Capela Real Grandeza do Cemitério de São João Batista, onde será sepultado. No ano passado, o próprio Condé escreveu o enredo da Escola de Samba Unidos de São Carlos42, que apresentou o enredo

Terra de Caruaru. Uma representação da escola estará presente no

sepultamento. José Condé, durante muito tempo, foi o crítico literário do CORREIO DA MANHÃ. (COLUNA..., 1971, p. 3)

Eram dezessete horas quando o caixão com o corpo do romancista baixou à sepultura nº 3091, na quadra 41, do Cemitério São João Batista, ao lado de Anna Ferreira Condé, sua mãe, que falecera alguns meses antes, mais precisamente, no dia 16 de fevereiro. Chovia

42 Na verdade, o samba-enredo é de autoria dos carnavalescos Sidney da Conceição e Antonio Curvina, como já salientamos anteriormente.

torrencialmente naquela tarde, como a marcar o derradeiro ato de uma vida inteira dedicada à literatura, ao jornalismo, à família, aos amigos.

O Correio da Manhã desta forma noticiou o fato:

Sob forte chuva, o escritor José Condé foi sepultado às 17h de ontem, no Cemitério São João Batista. Seu caixão foi coberto com as bandeiras de Pernambuco, seu Estado natal, e do Colégio Plínio Leite, de Petrópolis, onde ele cursou o ciclo colegial. Sua mulher, Maria Luísa, e os filhos, Fernando Antonio, Maria Regina e Vera, caminharam à frente, desde a capela até o jazigo, com as rosas que depositaram na sepultura de José Condé, ao contrário da tradição da cal. Seus amigos mais íntimos e parentes, como seu irmão Elísio, repetiram o gesto, inclusive o Sr. Arnauld Pedroso, representante do Governo de Pernambuco, no sepultamento do autor de Terra de Caruaru. O Padre Araújo encomendou o corpo de José Condé, com uma oração simples e singela, e nenhum dos escritores ou amigos do morto discursou, por solicitação da família. José Condé foi, por muitos anos, cronista do CORREIO DA MANHÃ. (COBERTO..., 1971, p. 5)

Convenhamos, tímidas notas do jornal carioca, para a importância da perda de alguém, que, não obstante sua capacidade literária e sua persistência em divulgar a literatura deste país, foi um dos mais lidos jornalistas desse órgão de imprensa, responsável, durante muitos anos, pelo seu caderno literário. Maior espaço fora concedido no dia anterior (27/09/1971), pelo Jornal do Brasil, que noticiara a morte em notícia de duas colunas (“José Condé morre aos 52 anos no Hospital da Lagoa e deixa livro sem título”), acrescendo um texto analítico de suas obras e com a opinião de alguns escritores (“Um escritor de transição”).

Não por acaso, o leitor Sebastião Fernandes, do Rio de Janeiro, lastima a pouca atenção dada ao escritor de Caruaru: “Ainda virão muitos estudos e ensaios sobre o escritor pernambucano, mas as notícias do seu falecimento foram, desgraçadamente, anêmicas e sem repercussão para o jornalista que sabia alimentar a chama de outros escritores e tinha uma seção que vai desaparecendo: a da comunicação” (FERNANDES, 1971, p. 2). Lamentavelmente enganou-se o caro Sebastião Fernandes em sua primeira afirmativa: não foram tantos quanto os merecidos “os estudos e ensaios” sobre José Condé, após sua morte, tão anêmicos e sem repercussão quanto “as notícias de seu falecimento”. Aliás, escreveu-se abundantemente, após seu desaparecimento, como podemos ver no próximo item, mas as páginas que tratavam do “escritor de Caruaru” foram, gradativamente, rareando, ao ponto de este ter se tornado praticamente um desconhecido.