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CAPÍTULO 2 – UM ESCRITOR E SUA BIBLIOTECA

2.3 A biblioteca de Condé

2.3.2 Livros virgens

Como já tratamos anteriormente, no início da década de 1950, levado por Álvaro Lins, responsável pelo suplemento literário do Correio da Manhã, Condé foi trabalhar no jornal carioca, “onde passa a fazer uma seção – ‘Vida Literária’. [...] Mantém José Condé, desde 1952, a seção diária ‘Escritores e Livros’ no Correio da Manhã, do qual é redator e onde faz noticiarismo literário” (PEREZ, 1970, p. 221-222). Sua estreia deu-se na edição de 30 de setembro de 1952, na página 10 do 1º caderno; em 29 de junho de 1968, por conta de uma reformulação na diagramação do jornal, a seção, agora intitulada apenas “Livros”, vai para a página 2 do 2º caderno, alternando-se, nos dias subsequentes, entre as páginas 3 e 4; em 28 de junho de 1969, nova alteração, e a seção passa a ser denominada “Artes”, na qual Condé continua assinando a parte de Literatura; nos dias 16 e 17 de novembro desse ano, o escritor publica fragmentos de Como uma Tarde em Dezembro, recentemente lançado; no dia

seguinte, mais uma alteração visual, e a seção recebe o título de “Anexo”; Condé publica-a pela última vez em 26 deste novembro de 1969, e “fica licenciado da folha” (PEREZ, 1973, p. 17). É curioso perceber, no entanto, que Condé enviou material para o jornal entre os dias 26 e 31 de março de 1970, conforme originais que encontramos em seu acervo particular, carimbados como recebidos pela portaria do Correio da Manhã, mas que não foram publicados na seção de Livros, agora assinada por Edilberto Coutinho, do aludido “Anexo”, título que foi expandido para todo o segundo caderno do jornal carioca.

Havemos de constatar que a posição de jornalista responsável por uma das mais lidas (e cobiçadas) colunas literárias do Rio de Janeiro, no Correio da Manhã, combativo jornal de características independentes, que circulou por 73 anos, de 1901 a 1974, fazia com que José Condé recebesse cotidianamente livros para divulgação, muitos dos quais encontramos em sua biblioteca particular.

Quanto à leitura desses livros, podemos notar algo interessante. Desde os primórdios da imprensa, os livros “são objetos compostos de folhas dobradas um certo número de vezes, o que determina o formato do livro e a sucessão dos cadernos. Estes cadernos são montados, costurados uns aos outros e protegidos por uma encadernação”, como afirma Chartier (1998, p. 7). Durante muito tempo, e até recentemente, os livros saíam da gráfica com as páginas ainda unidas na dobra, “as guilhotinas eram precárias e não cortavam o livro direito. Como eram cortados vários livros de uma vez só, alguns pegavam o corte e outros não”67, ficando os

blocos de páginas coladas na parte superior, sendo necessário, para sua leitura, separar as folhas, o que era feito com uma espátula, uma faca, tesoura ou outro objeto cortante. Desta forma, o livro que tivesse ainda as folhas coladas era sinal de que não fora folheado e/ou lido. É considerável a quantidade de compêndios com as páginas ainda coladas, que encontramos na biblioteca de José Condé: nada menos que 247, ou seja, 13,9%.

Dos mais diversos temas, autores, independentemente dos pedidos de leitura, foram solenemente ignorados, como podemos ver nos exemplos aleatórios:

a) Accioly Neto enviou, em 1956, o livro 3 máscaras, com um contundente elogio: “A José Condé, a quem tanto deve a literatura brasileira por seus belos livros e por uma ação tenaz na imprensa”.

67 Magno Nicolau. Uma pergunta.[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <edsontavares5@ hotmail.com> em 15/02/2012.

b) Ceciliano Abel de Almeida, capixaba, publicou, em 1959, “O desbravamento das selvas do Rio Doce”, enviando um exemplar “ao eminente crítico José Condé com os cumprimentos” do autor.

c) Gilberto Amado escreveu, em 1970, Depois da política, depois enviou para Condé,

com um oferecimento enfático: “Para José Condé, romancista, intérprete da vida que contemplou criança e de que se reflete na sua alma visionária”.

d) Jorge Amado, grande amigo de Condé, enviou-lhe Seara Vermelha, em 1960, com

reclamos de afetuosidade.

e) Oswald de Andrade, um dos participantes mais ativos da Semana de Arte Moderna,

de 1922, escreveu “ao brilhante José Condé” na folha de rosto de seu Um homem sem profissão, de 1954.

f) Três livros de Lúcio Cardoso: O escravo, Maleita e Diário I, respectivamente de

1945, 1953 e 1960.

g) Quatro obras do português Joaquim Paços d’Arcos: Tons verdes e fundo escuro

(1946), O navio dos mortos e outras novelas (1952), Memórias duma nota de banco (1962) e Novelas pouco exemplares (1967).

h) A amiga de muitas noitadas Eneida de Moraes reservou um dos vinte exemplares

“fora de comércio” de Aruanda, para o qual pediu a Condé “carinho e amor”, no Natal de 1957.

i) Dos 23 livros do “Mestre” Gilberto Freyre “de Apipucos”, encontrados na biblioteca do amigo Condé, oito estavam com as folhas coladas: Quase política (1950), Sobrados e mocambos – Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano – 2º vol (1951) (há dois exemplares desse livro, somente um “colado”), Aventura e rotina – sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e ação (1953), Sociologia – 1 Introdução ao estudo dos seus princípios – 1º e 2º tomos (1957), Problemas brasileiros de Antropologia (1959), e Ordem e progresso – Processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime do trabalho livre – 1º e 2º tomos (1959).

j) Três dos oito livros que encontramos de Alceu Amoroso Lima: Primeiros estudos Contribuição à história do modernismo literário (1948), Mensagem de Roma (1950), e O

k) O Diário Crítico, de Sérgio Milliet, em seu 5º volume, de 1947; o 7º volume, de

1953, em que o autor faz um comentário, às páginas 71-72, sobre o conto “Ravina” (de Histórias da Cidade Morta); e o 10º volume, de 1959, no qual Milliet faz uma crítica, às páginas 133-134, ao livro Dias Antigos, de Condé.

l) Quatro dos dez encontrados de Cassiano Ricardo: A face perdida, de 1950, Poemas

murais, de 1950, O arranhacéu de vidro, de 1956, e Marcha para o Oeste (A influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil), de 1959.

Não são apenas os livros oferecidos explicitamente a Condé que dormem o sono da virgindade leitora, mas obras de inúmeros outros e conhecidos autores apresentam-se “colados”: Castro Alves (Gonzaga ou a Revolução de Minas), Mário de Andrade (Aspectos da Literatura Brasileira), Adolfo Caminha (Bom Crioulo), Catulo da Paixão Cearense (Modinhas), Coelho Neto (Fogo Fátuo e A capital federal – impressões de um sertanejo), Descartes (Discurso do método), Anatole France (O lírio vermelho), Goethe (Afinidades eletivas), Bernardo Guimarães (O garimpeiro), Aldous Huxley (Ronda grotesca e Duas ou três graças), Federico Garcia Lorca (Bodas de sangue), Antonio de Alcântara Machado (Novelas paulistanas), George Orwell (1984), Martins Pena (Dramas e O namorador ou A noite de São João), Marcel Proust (A prisioneira, Sodoma e Gomorra e À sombra das raparigas em flor), Rousseau (Obras de Rousseau), Bernard Shaw (Quem sou e o que penso, Casa de orates e O discípulo do diabo), Miguel Torga (Contos da montanha e Diário), Érico Veríssimo (O resto é silêncio), Voltaire (O pensamento vivo de Voltaire e Contos e novelas), Oscar Wilde (Salomé), William Faulkner (Oração para uma negra, O som e a fúria, Luz de agosto e O mundo não perdoa); dois exemplares de A casa soturna, de Charles Dickens, dois de Um discurso em mangas de camisa, de Tobias Barreto (em um dos exemplares foram descoladas apenas as primeiras folhas), dois exemplares de Ensaios, de Montaigne, três de “Verdes mares bravios...”, de Assis Brasil, além de onze exemplares d’A Comédia Humana, de Honoré de Balzac. A lista de exemplos pode ficar bem maior; paremos por aqui.

Qual seria a razão de tantos livros virgens na biblioteca de José Condé? O homem que dizia aos filhos ser mais importante ler que mesmo estudar (informação verbal)68 guardava tamanha quantidade de livros sem ler? Parece-nos que não se trata de outro motivo senão o alegado por Bloom (1995, p. 23), sobre a questão do cânone: “Quem lê tem de escolher, pois não há, literalmente, tempo suficiente para ler tudo, mesmo que não se faça mais nada além

disso”. E não nos esqueçamos de que Condé viveu apenas 54 anos. Além do quê, como afirma Barthes (1988, p. 46), “a liberdade de leitura, qualquer que seja o preço a pagar, é

também a liberdade de não ler” (Grifo do autor). Estamos, pois, diante da forma mais simples de cânone, o individual, a relação de livros lidos por uma pessoa, seja por quais razões forem: tempo, disponibilidade, afinidade. E, como vimos, toda escolha, afirma Martinho (2001, p. 15) implica expurgos, aqui materializados nas folhas coladas dos livros virgens, que compõem a biblioteca particular de José Condé.

Outro ponto precisa ser discutido, ainda que voltemos a ele adiante: sua função de jornalista literário. Provavelmente, muitos dos livros encontrados em sua biblioteca eram enviados pelos autores ou divulgadores das editoras, com o fito de serem divulgados na coluna do Correio da Manhã. Sua não-leitura implicaria sua não-divulgação, ou, pelo contrário, não impossibilitaria o comentário sobre a obra? Afinal, como já afirmava Romero (1909, p. 52), sobre outro crítico/jornalista literário, José Veríssimo “fala d’um [livro] de trezentas ou quatrocentas páginas, oito dias depois de outro de quinhentas, na semana seguinte de cambulhada de quatro ou cinco, e às vezes mais, de igual número... Leu-os com atenção critério? Impossível”. No entanto, levando em consideração Bayard (2007, p. 31), “não ter lido este ou aquele livro não tem importância para a pessoa culta, pois mesmo que não esteja informada com precisão sobre seu conteúdo, frequentemente ela é capaz de conhecer sua

situação, ou seja, a maneira como ele está disposto em relação aos outros livros” (Grifos do autor). Assim, Condé poderia emitir o comentário esperado pelo escritor, sobre sua obra, mesmo sem a ter sequer folheado.

Finalmente, com a palavra, o próprio Condé, que assim se explicou: “Aumenta dia a dia o número de lançamentos. Ao noticiarista, portanto, seria impossível examinar

detidamente cada volume recebido. Daí o registro que se segue, o mais rápido possível,

relacionando obras aparecidas nos últimos meses” (CONDÉ, 1960h, p. 2) (Grifo nosso). A título de amostra, cotejaremos, adiante, livros oferecidos a Condé, encontrados em sua biblioteca, com a efetiva divulgação em sua coluna, em um dos anos de publicação.