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CAPÍTULO 2 – UM ESCRITOR E SUA BIBLIOTECA

2.2 Duas bibliotecas, os mesmos problemas

Entre julho e setembro de 1960, o professor e pesquisador francês Jean-Michel Massa realizou um pioneiro trabalho de pesquisa e organização do acervo pertencente ao escritor Machado de Assis, tendo como objetivo, segundo relatou, “submeter ‘sob uma forma menos esquemática’ uma lista, que se pretende exaustiva, do que resta dessa biblioteca”. Para tanto, contou com o apoio da herdeira do acervo do “bruxo de Cosme Velho”, a esposa do Gen. Leitão de Carvalho (Massa não a cita nominalmente), sobrinha de Carolina Augusta Xavier de Novais, esposa de Machado, que guardava o acervo em sua residência, na Tijuca, Rio de Janeiro. Mas, como afirma o pesquisador,

Infelizmente esta biblioteca está incompleta, já que por duas vezes foi amputada. Uma parte, que devia contar com cerca de duzentos volumes, foi doada no dia seguinte à morte do autor e, até o momento [1960] não foi possível reencontrá-la. Por outro lado, durante a última guerra, os livros em brochura dessa biblioteca, guardados em uma garagem durante a ausência dos herdeiros, se deterioraram e foram destruídos sem que fosse feito um levantamento. (MASSA, 2001, p. 23)

A segunda perda, a que se refere Massa, foi ocasionada pela inundação do depósito onde se encontravam os livros, sendo destruídos pela ação da água. Milhares de potenciais informações basilares para o estudo do fenômeno machadiano podem ter ido, literalmente, por água abaixo.

No nosso caso, para subsidiar o trabalho de pesquisa que empreendemos, fizemos, em junho de 2009, a catalogação dos livros pertencentes ao escritor José Condé, cuja biblioteca particular foi, em parte, doada à Casa de Cultura José Condé, em Caruaru, após a morte do escritor. Esses livros encontravam-se, nessa época (2009), amontoados em um depósito, sem que o público tivesse acesso, numa dependência da Biblioteca Pública Municipal, que funcionava no prédio da antiga estação ferroviária. Com o telhado minado de goteiras e as paredes de infiltrações, o acervo encontrava-se à mercê das intempéries do tempo e das pragas próprias de ambientes insalubres. Antes de serem cobertos com um grande plástico, os livros receberam água de goteiras, tendo alguns mofado e mesmo se desintegrado; além disso, a ação de traças, cupins e outros insetos fazia-se perceber nos livros. Estes estavam dispostos em prateleiras de ferro – algumas, enferrujadas, apresentavam perigo de virem abaixo –, sem qualquer ordem ou catalogação.

Inicialmente, a Biblioteca Municipal de Caruaru funcionava nas dependências da Casa de Cultura dessa cidade; com o passar do tempo e a natural deterioração e falta de cuidados das administrações, os livros foram sendo colocados em locais que facilitavam sua danificação. Junte-se a isso a ocorrência das várias mudanças de local de condicionamento do acervo e a consequente perda de exemplares em tais movimentos. O que conseguimos catalogar resume-se a menos de 1800 livros.

Em 2011, revisitando essa Biblioteca Pública, agora funcionando em outro local – uma residência adaptada, um resumido espaço para receber seu acervo –, constatamos que um número ínfimo de volumes ainda se encontrava em local específico (identificado, apenas oralmente, pelos funcionários, como a “biblioteca particular de José Condé”), mas uma parte achava-se espalhada por outras seções, enquanto outro quantitativo – a maior parte –, como nos foi informado, estava em um depósito da Secretaria de Educação do Município de Caruaru, que coordena a Biblioteca Pública Municipal; ainda segundo informações dos funcionários, parte dos livros estava esperando para ser restaurada e limpa, embora não soubessem dizer quantos livros, nem o prazo previsto para seu retorno à instituição. Essa situação faz lembrar o ataque dos revolucionários franceses às bibliotecas dos nobres e do clero, as quais “acabaram em enormes depósitos em várias cidades francesas [...], onde esperavam, sob o ataque da umidade, da poeira, de insetos e outras pragas, que as autoridades revolucionárias decidissem seus destinos” (MANGUEL, 1997, p. 271).

Provavelmente impulsionado pela recente revigoração do nome de José Condé, em Caruaru, efetivada pela reedição de Terra de Caruaru, pela realização de minicursos, palestras, produção e publicação de textos, além da realização de pelo menos três pesquisas em andamento, em nível de mestrado e doutorado, começou a se ter uma preocupação maior com o acervo bibliográfico do escritor. Em 2012, entrevistamos Welba Sionara Soares da Silva (informação verbal)62, Atendente da Biblioteca, que, devidamente autorizada pela Secretaria de Educação, informou sobre alguns cuidados e providências que estão sendo tomados pelo Poder Público Municipal, no tocante à preservação e exposição do acervo da biblioteca particular de José Condé. Segundo Welba Sionara, a Prefeitura de Caruaru realizou um curso exclusivo para os funcionários da BPM, tendo como objeto de estudo modernas técnicas de preservação de livros: “nós recebemos um pequeno treinamento de limpeza e de recuperação de acervo. Mas foi só um workshop, bem rápido, foi mais para prevenção”,

salientou a funcionária. Além disso, informou, o acervo condeano, que se encontrava em um depósito da Secretaria de Educação, retornou à Biblioteca Pública, e, juntamente com os livros de Álvaro Lins, também doados à instituição, estão condicionados em uma sala específica, com o acesso dos leitores.

Na realidade, concernente ao acervo do crítico literário Álvaro Lins, os livros, muitos em péssimas condições de conservação, encontravam-se, em 17/08/2012 – data de mais uma visita nossa à BPM –, em parte, espremidos em estantes insuficientes, numa sala minúscula, inviável para circulação de leitores/pesquisadores; outra parte, em caixas de papelão, e uma terceira quantidade, amarrados em fardos, com barbantes, numa espécie de porão do prédio, ignorando-se flagrantemente o princípio da conservação, já defendido pelo bibliotecário Demétrio, de Alexandria, que, em exposição escrita ao rei grego Ptolomeu, reafirmava seu propósito “de restaurar adequadamente os [livros] defeituosos”, para o que “dediquei grande cuidado” (apud CANFORA, 2001, p. 24).

Enquanto isso, a biblioteca particular de José Condé encontrava-se com os volumes igualmente apertados numa saleta, desprovida de condições de locomoção em seu interior (Figura 12), o que dificulta o acesso do público ao local. Estranhando o quantitativo exposto, promovemos, em 13 e 15/03/2013, um segundo levantamento dos livros, constatando a ausência de 434 livros presentes à primeira catalogação (2009), podendo os referidos volumes estarem espalhados em outros setores da BPM, recolhidos para recuperação ou extraviados.

Arnoldo Jambo lamenta que “há um destino sempre triste para a grande maioria das bibliotecas demasiadamente enriquecidas. Quando não lhes acontece a ventura de serem

passadas a instituições ou entidades públicas, são vendidas, em geral a retalho, por preços

vis e desrespeitosos” (JAMBO, 1971, p. 4) (Grifo nosso). Como podemos perceber, dependendo da instituição que recebe o acervo, não se pode considerar isso tamanha “ventura”, e a dilapidação desse patrimônio cultural dá-se, irremediavelmente, seja pela venda

Figura 12 – Aspecto do acervo da biblioteca de José Condé, hoje.

no varejo, tornando impossível a integralidade do acervo, seja pela falta de tratamento adequado dos órgãos públicos, que o recebem sob seus cuidados.

O que Jobim (2001, p. 11) afirma sobre a impotência dos pesquisadores ante o descaso das autoridades, no caso do acervo da biblioteca machadiana, pode igualmente ser aplicado à situação dos livros pertencentes ao escritor José Condé: “o máximo que podemos fazer é esperar que a falta de interesse (e verbas) das instâncias que poderiam e deveriam zelar pela conservação de nosso patrimônio cultural não condene esta coleção à deterioração completa”.

Irreparáveis danos como estes ao patrimônio cultural de uma nação, tanto no exemplo da biblioteca de Machado de Assis ou na de José Condé, quanto nos incontáveis descasos, a destruir nossa memória histórica – segundo Báez (2006, p. 24), “o livro não é destruído como objeto físico, e sim como vínculo de memória” –, fazem-nos relembrar, com certa inveja, os preocupados sábios de Alexandria, a cuidar de reunir em lugar seguro todo o saber de um tempo; mas também rememorar, com revolta, o desastre provocado pelo imperador romano César, que, ateando fogo aos seus próprios navios, numa estratégia bélica, acabou por incendiar boa parte da famosa biblioteca. Canfora contesta essa versão, afirmando que, nos “edifícios imediatamente vizinhos às instalações portuárias, encontravam-se ‘por acaso’, no momento do incêndio, cerca de 40 mil rolos de livros de ótima qualidade” (2001, p. 66), mas que “os rolos incendiados não tinham relação alguma com a biblioteca real” (2001, p. 68), a qual “permaneceu incólume durante o conflito, o primeiro que se consumou nas ruas da capital ptolomaica” (2001, p. 69). Entretanto, Báez (2006, p. 68) contesta Canfora, afirmando que “os quarenta mil livros estavam nesse depósito depois de chegar a Alexandria em barcos diferentes, isto é, eram aquisições recentes para a biblioteca do museu”. O fato é que anos de pesquisa e registro, traduzidos numa considerável quantidade de obras escritas, foram destruídos pelo fogo ateado por gananciosos conquistadores de terras, insensíveis ao imenso tesouro que destruíam.

Tem sido nosso fado participar da permanente luta entre os ciosos protetores de bens culturais de inestimável valor de pesquisa, e os desastrados administradores de tal material, nem um pouco cônscios da sua importância (do material, claro!) para a evolução do saber humano. Não se há de esquecer a ordem dada pelo califa mouro Omar I, segundo sucessor de Maomé e conquistador de Alexandria, em 640, sobre os livros da famosa biblioteca (apud CANFORA, 2001, p. 92): “se seu conteúdo está de acordo com o livro de Alá, podemos dispensá-los, visto que, nesse caso, o livro de Alá é mais do que suficiente. Se, pelo contrário,

contêm algo que não está de acordo com o livro de Alá, não há nenhuma necessidade de conservá-los. Prossegue e os destroi”. A ordem foi cumprida por Amr ibn al-As, general árabe convertido ao Islamismo em 630, que conquistou o Egito, apoderando-se de Alexandria em 642 (op. cit., p. 93): “Distribuiu os livros entre todos os [4 mil] banhos de Alexandria, para que fossem usados como combustível das estufas que os tornavam tão confortáveis. ‘Conta- se, continua ele [Ibn al-Qifti, que escreveu sobre esse acontecimento], que foram necessários uns seis meses para queimar todo aquele material’”, do qual “foram poupados apenas os livros de Aristóteles”63. Tais fatos indignam o mais indiferente dos leitores.

Outra questão, levantada por Massa (2001, p. 32), sobre o acervo de Machado, pode igualmente ser colocada em relação à biblioteca de Condé: “a ausência de um livro nas prateleiras desta biblioteca não significa que Machado não o tenha lido e, mesmo, não o tenha possuído nas prateleiras de sua biblioteca quando esta estava completa”. Somos conscientes de que as informações captadas nos remanescentes da biblioteca tratam-se, na verdade, de indícios, que podem nos levar a suposições acerca do escritor, mas com a margem de probabilidade que qualquer conjectura apresenta, embora, salientemos, com o apoio de outros dados, captados alhures, e seu competente confronto, tenhamos essa margem de acerto maior. Sabemos que a leitura do autor não se resume aos livros de sua propriedade: pode haver leituras realizadas em bibliotecas públicas ou de instituições diversas, livros emprestados por amigos, ou ainda volumes da própria biblioteca particular que podem ter sido doados ou perdidos após a leitura. É possível também que nem todos os livros que compõem o acervo tenham sido lidos – de alguns temos certeza de sua não leitura integral, por acharem- se ainda coladas suas folhas. Além do mais, “nem todo livro lido é necessariamente possuído, e nem todo impresso mantido no foro privado é necessariamente um livro” (CHARTIER, 1999, p. 25). Ou, como afirma o mesmo Chartier, desta feita em entrevista a Claudete Maria Miranda Dias64, o levantamento de dados estatísticos dos livros de uma biblioteca não diz muito sobre como os leitores os utilizaram. “Eles [os dados] podem atestar que em uma determinada biblioteca encontramos preferencialmente mais livros de teologia do que de poesia. Mas não podemos saber como foi a leitura do leitor”, alerta o historiador francês.

63 Algumas dessas informações, entretanto, ainda estão no campo das especulações, como afirma Báez (2006, p. 70-1), questionando as fontes e algumas discrepâncias de tempo, a respeito dessas notas.

Tal qual Machado de Assis, cuja posição de jornalista, cronista e depois Presidente da Academia Brasileira de Letras fazia com que vários autores lhe oferecessem seus livros, talvez na esperança de merecerem uma atenção específica, materializada em comentário ou indicação de leitura, igualmente José Condé, jornalista literário, recebeu muitos livros de autores, que lhe ofereciam em interessantes dedicatórias, as quais serão comentadas adiante.

Da mesma forma que Massa (2001, p. 32-33) alerta para a fragilidade que pode representar esse levantamento do acervo particular de um autor como Machado, ao afirmar que “esta longa lista de livros, apesar de seu aspecto rígido e da impressão de segurança que ela proporciona, é apenas um frágil fio de Ariadne”, também podemos ter essa sensação em relação aos livros de Condé, aqui levantados. Entretanto, “é preferível à ignorância na qual nos encontrávamos até então para situar as leituras de Machado de Assis e suas possíveis influências em sua obra”. Encaremos, pois, este trabalho como mais uma das múltiplas formas de leitura e estudo de um escritor, a nos oferecer pistas que precisam ser cuidadosamente manejadas no labirinto em que se constitui a vida literária de qualquer escritor.