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CAPÍTULO 1 – NOTÍCIA BIOGRÁFICA DE JOSÉ CONDÉ

1.2 Um escritor, por seus contemporâneos

1.2.6 Nos livros de Condé

Como de hábito, a obra do escritor é espaço para que colegas escritores e críticos literários exponham sua opinião acerca do autor. Obviamente, como o objetivo de tais textos é ligado à divulgação, à propaganda do livro, procurando iscar o leitor, reúnem-se tão somente os comentários abonadores. Mas é claro também que os que concordaram em expor sua opinião sobre o escritor caruaruense tinham um nome, uma reputação literária a zelar, e não escreveriam leviandades ou elogios ocos. Assim sendo, percorramos a obra condeana, anotando alguns depoimentos que ajudarão os que ainda não conhecem o estilo e o talento

literário de José Condé a compor uma ideia do romancista de Caruaru, a partir do que sobre ele depõem alguns literatos e críticos. Formar-se-á, provavelmente, uma leve ideia sobre o autor, que apenas se solidificará com a efetiva leitura das narrativas condeanas.

Inicialmente, atentemos à apresentação do estreante escritor, em texto produzido pela José Olympio Editora, quando da publicação do seu primeiro livro, Caminhos na Sombra (1945), aposto na orelha da primeira capa:

[...] as nossas letras de ficção ganharam agora um elemento novo, dotado de apreciáveis qualidades e capaz de enriquecê-las com obras de mérito indiscutível. [...] As novelas deste volume dizem muito das verdadeiras possibilidades literárias de José Condé: revelam nitidamente o início de uma carreira de escritor, sob as melhores condições de êxito. [...] É surpreendente a acuidade psicológica de José Condé: ele consegue apreender a face dramática da vida dos seus personagens com uma precisão e uma firmeza que seriam louváveis num novelista de maior experiência.

Efetivamente, qual oráculo grego, o articulista do trecho acima prevê algo que se concretizará, com o passar dos anos e a sucessão de títulos publicados: essa “acuidade psicológica” se desenvolverá de forma nítida, levando o leitor à inquietude, diante dos mergulhos que o autor/narrador promove em seus personagens, dos mais simples aos mais complexos. Aliás, personagem que prima pela simplicidade de comportamento não é isento de conflitos interiores. Condé sempre soube disso, e explorou esses interiores tumultuados em suas narrativas, o que, invariavelmente, rendeu bons frutos literários.

Esse esmiuçar psicológico dos personagens chama a atenção em outras obras, como é lembrado na “Notícia biográfica de José Condé”, presente no livro Santa Rita, um texto presumivelmente escrito por Renard Perez:

A ficção de José Condé é marcada por uma constante: a preocupação com os problemas existenciais do homem. Esta característica pode ser notada tanto na sua literatura urbana quanto na picaresca, ou, ainda, na que se enraíza no chão do agreste. [...] As inquietações, frustrações e contradições do ser humano dominam o seu espírito criador. Solidão, saudade, nostalgia, melancolia, são mesmo alguns traços essenciais de suas letras. (CONDÉ, 1977, p. 290)

Esse angustiar-se pela angústia dos personagens, lembrado no primeiro livro, estende- se por toda a sua obra, tornando-se cada vez mais intenso com o passar do tempo; suas criaturas vão ficando densas e portadoras de um forte sentimento de desespero interior. Condé “não se conforma em apenas explorar as possibilidades narrativas e invade a intimidade” de

seus personagens, chegando “aos subterrâneos de sua psique, [...] arrastando o leitor numa investigação que nunca entedia mas que com frequência emociona”; é o que diz a nota da editora para o livro Noite contra Noite (CONDÉ, 1987a).

Aliás, essa ausência de tédio na leitura de José Condé torna sua obra atraente ao leitor, independente da idade e formação ou experiência leitora, o que leva Jorge Amado (CONDÉ, 1987c) a desabafar: Um Ramo para Luisa é uma “novela para grande público e não para um grupelho de subliteratos esteticistas posando de gênios.” O que o escritor baiano afirma sobre essa singular obra condeana pode ser aplicado, sem temeridade de equívoco, às demais. Narrativas inteligentes, simples – mas não simplistas –, são a receita ideal para se fazer aceito pelo grande público, mesmo que os críticos torçam o nariz e esnobem, solenemente, a força narrativa desse autor; essa atitude da crítica, provavelmente, terá contribuído para o marasmo em que se encontra sua obra e seu próprio nome, hoje.

Embora levando em conta que “a crítica [...] louvou-lhe, unanimemente, o colorido, a graça, o pitoresco, a humanidade, a fabulação original e o ágil desenvolvimento das absorventes narrativas”, como diz Mário da Silva Brito, na orelha de Como uma Tarde em Dezembro (CONDÉ, 1969), percebemos, pelo pouquíssimo que encontramos de reflexão crítica sobre sua obra, que essa mesma casta literária vai se desinteressando dele, com o passar do tempo, e principalmente após a sua morte – talvez porque, morto, seja impossível continuar a fazer seu papel de divulgador dos próprios compêndios críticos, nos quais, diga-se de passagem, Condé não consta.

Ainda assim, José Condé é equiparado, frequentemente, aos maiores nomes da ficção, como podemos perceber nos dois depoimentos que se seguem. Renard Perez, na orelha de Santa Rita (CONDÉ, 1977), comenta sobre os dois livros que compõem este volume (Histórias da Cidade Morta e Os Dias Antigos), dizendo-os fundamentais para a compreensão do mundo ficcional condeano, e chama a atenção para o fato de que,

com eles, repete José Condé o ocorrido com John Steinbeck em relação às

Pastagens do Céu, onde se encontram as principais raízes do mundo

steinbequeano. Também como o novelista norte-americano, já nos havia José Condé oferecido outras obras, antes de nos apresentar Histórias da Cidade

Morta. Mas foi aí [...] que o autor se encontrou e apresentou as diretrizes que

continuaria em sua carreira e que iriam cristalizar-se em seu recente Terra

Terra de Caruaru, aliás, é um divisor de águas importante na carreira literária de José Condé, como já podemos perceber. Aqui, a equiparação se dá no texto promocional da edição de 1987, ao afirmar que “o autor de Terra de Caruaru, como José Américo de Almeida em A bagaceira, como José Lins do Rego em Fogo morto, como Graciliano Ramos em Vidas secas, como Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, dá ao regionalismo a dimensão existencial”. Igualmente àqueles a quem é comparado, José Condé não é um mero escritor regionalista, cujo assunto único seja a miséria do clima e das gentes nordestinas. Na verdade, afirma Fausto Cunha, em “Um condado imaginário”, presente na abertura de Vento do Amanhecer em Macambira (CONDÉ, 1987d, p. 5), “seu Nordeste é mais um condado imaginário do que uma região. Sua literatura está presa à terra, mas não quer ser descritiva nem documental”. Ao contrário, como afirma Adonias Filho, na orelha do último livro de Condé, publicado em vida,

[...] porque em seu realismo impõe espaço, tempo e existência, José Condé não configura literariamente apenas uma série de imagens. Visualiza uma realidade. E uma realidade que apesar de restrita [...] de tal modo se hipertrofia humanamente que se converte na mais autêntica e poderosa novelística. Há, pois, o que compreender. Há, porém, e sobretudo, o que sentir. (CONDÉ, 1971)

Não há como esquecer aqui, o conselho de Fernando Pessoa (1987, p. 165), a respeito do imaginário poético: “Sentir? Sinta quem lê!” José Condé consegue, na prosa, o que o vate lusitano alcança na poesia: provocar intensamente a imaginação de seus leitores, que se veem, através da leitura de suas narrativas, arremessado a mundos ao mesmo tempo familiares e estranhos, graças a um “estilo despido de ornamentos, simples, direito, enxuto e atraente”, como afirma Carlos Menezes, no posfácio de Santa Rita (CONDÉ, 1977, p. 285), mas também incisivo, com aquele realismo esbofeteador, que produz no leitor saudáveis sensações de incômodo, como as de que fala o Pe. Antonio Vieira, no Sermão da Sexagésima (VIEIRA, 1945, p. 35): “não que os homens saiam contentes de nós [pregadores], senão que saiam muito descontentes de si”.

O método de trabalho de José Condé, seu cotidiano de produtor de narrativas plenas dos elementos que as singularizam, e que apontamos, através dos depoimentos acima, já o sabemos, através de sua companheira Maria Luiza Condé, quando esta pormenorizou o cotidiano do escritor. Parece-nos oportuno, agora, transcrever o depoimento de um de seus amigos mais próximos, revisor e parceiro de infindas discussões a respeito de como encontrar

o ponto exato da narrativa, Valdemar Cavalcanti, em texto intitulado “Caruaru: a face humana”, publicado na edição de 1987 de Terra de Caruaru:

[...] ele tinha do ofício literário uma noção extremamente rigorosa; [...] queria sempre para sua escrita um apuro de expressão cada vez maior; [...] não se dava por satisfeito com o que lhe parecia realizado com facilidade ou com qualquer eiva de concessão; [...] não se deixava levar pelo improviso, cuidando de dar à sua obra condições de densidade e consciência, para que viesse a resistir ao tempo. [...] Trabalho seu não era de ficar no borrão: tinha que ser cuidadosamente passado a limpo, não uma nem duas vezes: mais vezes, quase sempre. Com um capricho fora do comum, como cobrindo com tinta o que antes a bem dizer rabiscara a lápis. E importante: mais cortando que acrescentando coisas. (CONDÉ, 1987b, p. 7-8)

Deparamo-nos com um escritor cônscio de seu trabalho e da necessidade de sua história fincar no leitor suas afiadas garras de verossimilhança e estranhamento, de originalidade e familiaridade, o que, naturalmente, só conseguiria com o esforço próprio de quem persegue à exaustão a forma mais exata possível de dizê-lo, entregando-se por inteiro à árdua, porém compensadora, batalha de construção da narrativa. Podemos recorrer novamente ao poeta modernista português (PESSOA, 1987, p. 289), agora travestido de Ricardo Reis, ao afirmar: “Para ser grande, sê inteiro: [...]. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes.” Foi assim que, como afirma Carlos Menezes no Posfácio de Santa Rita, Condé “fixou em seus livros as faces pitorescas, humorísticas, sofredoras e angustiantes de uma pequena humanidade que ele conheceu e da qual participou nas suas terras de Caruaru, seu berço natal” (CONDÉ, 1977, p. 285).

Esse detalhismo de que fala Valdemar Cavalcanti, acima, foi se intensificando com o passar do tempo, alcançando níveis acentuadíssimos nos dois livros que produziu no leito, enfermo. Como afirma Mário da Silva Brito, em As Chuvas (CONDÉ, 1972), José Condé “chegou a dizer a alguns companheiros que, ao trabalhar assim no leito [...] tinha vagar e paciência para melhor elaborar as histórias, cuidadosamente revê-las, polindo-as, desbastando a forma de ornamentos que empetecassem a narrativa”. O que de fato queria o escritor é que suas histórias fossem, acima de tudo, sóbrias. O próprio Condé comentou com Tânia Goes, sobre Tempo Vida Solidão: “Pela primeira vez escrevi um livro usando o processo diferente: todo escrito à mão. Os outros foram todos à máquina. De qualquer forma, eu considero, do ponto de vista literário, a melhor coisa que já fiz até hoje” (GOES, 1971, p. 7).

O resultado de seu empenho em construir um texto literário de qualidade reconhecida, podemos aquilatar nas palavras de Lima (1965, p. 133), ao ressaltar que suas paisagens e seus

personagens são mais insinuados que definidos, ou nas de Raul Xavier, dando conta de que a leitura de seus livros

revela o escritor comprometido com a estrutura da narrativa, a qual se processa segundo um método, que se poderia dizer racional, quanto à disposição dos eventos, à situação e à maneira de agir dos figurantes em suas estórias.

Assim, em nenhuma dessas narrativas ocorrem desajustes formais. A estruturação contextual na ficção de José Condé apresenta validez incontestável, ainda mais evidente quando se considera o relacionamento entre a matéria da narrativa e o processo linguístico de que se utiliza o ficcionista. (XAVIER, 1971, p. 4).

Outros depoimentos poderiam ser evidenciados, dando conta dos predicados literários de José Condé. Seria cansativo reproduzi-los aqui, pela apenas variação de uma mesma temática: a singularidade de um escritor que se fez, a duras penas, inicialmente desacreditado de si mesmo, mas aos poucos galgando espaços destinados àqueles que conduzem com maestria a pena. Isso para não falar no quanto se enfatizou sua posição de jornalista literário, seu compromisso pessoal com a disseminação da cultura literária brasileira.

Basta, porém. Fica evidente, pela amostra que apresentamos, a receptividade que José Condé gozava entre seus contemporâneos, dos quais escolhemos aquela que julgamos a mais completa definição desse escritor pernambucano do mundo: “um escritor autêntico, é o que ele foi, a vida toda. E que outra coisa não quis ser, senão escritor, para bem cumprir sua missão” (CAVALCANTI, 1971, p. 4).

Nunca é pouco ressaltar as instâncias de publicação dos depoimentos aqui apresentados: as páginas, capa, contracapa ou orelhas dos livros do próprio Condé, ou, ainda, as páginas do Jornal de Letras, fundado por ele e os irmãos, e algumas dessas opiniões emitidas após sua morte, o que, sabemos bem, faz relativizar e amenizar muita coisa. Entretanto, dois pontos precisam ser pensados: primeiro, o leitor consciente deve levar em consideração que a isenção nos textos é algo questionável, e não absolutizar, a partir desses depoimentos, uma opinião sobre José Condé – é preciso haver sobriedade no julgamento do que foi escrito nesses espaços, notadamente destinados a elogios; e, por outro lado, reforçar o que dissemos antes, a respeito da seriedade que caracterizam esses críticos literários e escritores, que provavelmente não arriscariam essa deferência a eles dedicada, acendendo vela

a defunto ruim, como popularmente se diz, ou seja, elogiando o autor gratuitamente, apenas