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CAPÍTULO 2 – UM ESCRITOR E SUA BIBLIOTECA

2.3 A biblioteca de Condé

2.3.8 Danificados

Sempre ecoou um triste lamento entre os pesquisadores deste país, no que concerne à falta de cuidado, tanto do poder público quanto de detentores particulares, em relação a objetos riquíssimos de histórias, de testemunhos, de representação de um tempo, de uma sociedade. Afirma Oliveira (1991, p. 41): “O Brasil está correndo o perigo de transformar-se em nação historicamente desmemoriada”. E acrescenta: “se considerarmos que grandíssima parte do que constitui o patrimônio artístico e histórico [do país] é bem intrinsecamente perecível, teremos noção precisa do gigantesco esforço que demandam a conservação e preservação das relíquias que nos foram legadas” (op. cit., p. 46), vaticinando que “ou o Brasil se lança a uma cruzada pela defesa e proteção do que ainda lhe resta do seu passado e das fontes de sua vida nacional, ou em breve será uma nação sem o álbum de retratos de sua infância e de sua adolescência” (IDEM, idem).

Prédios históricos são sumariamente derrubados, sem qualquer preocupação com a preservação da História neles contidos; relíquias são roubadas para serem destruídas e transformadas em dinheiro, ou ainda vendidas a colecionadores, que as isolam do grande público, como se fossem os donos únicos de um passado que permanece em tais peças; familiares de grandes formadores de um patrimônio cultural, estes agora falecidos, fecham a sete chaves o que poderia se tornar rico corpus para pesquisas diversas; documentos e objetos perecíveis são guardados sem a menor atenção, à mercê de umidade, de fungos, de água, poeira e outros elementos, que os corroem, por vezes irremediavelmente. O que poderia – e, principalmente, deveria – servir de objeto de pesquisa, para a socialização e efetiva preservação de um passado ilustre, destroi-se pela irreversível ação do tempo, como

sem memória”; mas não completamente verdadeira: existe memória, sim, mas fica muitas vezes escondida sob camadas de descaso, de falta de cuidado, de ausência de circulação dos materiais que a transportam.

Com relação à biblioteca de um escritor, a situação é ainda mais crítica: com a morte deste, o oceano de informações importantes que pode trazer o acervo acumulado ao longo de uma vida de produção literária é invariavelmente despedaçado. Na dor da recente perda, geralmente os familiares não tomam os cuidados necessários e acabam dilapidando esse verdadeiro patrimônio cultural, seja entre si, seja doando a instituições que, a princípio, deveriam ter o dever de preservar, e que não o fazem, deixando se perder, para sempre, tesouro de tão inestimável valor. Cornelius Walford (apud BAÉZ, 2006, p. 222), em 1880, no prefácio do folheto intitulado The destruction of libraries by fire considered practically and historically, afirmava:

A destruição de bibliotecas, grandes ou pequenas, públicas ou particulares, sempre é um acontecimento que deve ser deplorado; e não apenas no âmbito do valor intrínseco dos objetos consumidos, e sim porque, amiúde, os tesouros não podem ser substituídos unicamente por desembolsos pecuniários, e com frequência de nenhuma maneira.

Jobim (2001, p. 11) afirma que o acervo da biblioteca particular de Machado de Assis, catalogado inicialmente por Jean-Michel Massa,

necessita de cuidados urgentes, para que parte substancial dele não se perca definitivamente. Esta seria a hora de os responsáveis pela alocação de verbas públicas ou privadas fornecerem meios necessários para que as próximas gerações ainda possam usufruir do que restou da biblioteca de Machado.

Não é muito diferente a situação da biblioteca particular do escritor José Condé, doada pela família à Casa de Cultura que traz seu nome, em Caruaru-PE. Depois do natural período de exibição (diria melhor exibicionismo) promovido pelos gestores, o material foi, gradativamente, sendo esquecido, ao ponto de ser descoberto jogado no chão, à mercê de fungos e insetos próprios de ambientes úmidos. Resgatado o acervo (ou parte do que foi doado – jamais saberemos quantos exemplares podem ter sido extraviados, ao longo dos anos, até porque não existe catalogação ou qualquer registro da época da doação) –, foi colocado numa sala da Biblioteca Pública Municipal, quando esta ocupou o antigo prédio da Estação Ferroviária, cujo teto assemelhava-se a uma peneira, dada a quantidade de buracos existentes.

Em junho de 2009, como já dito, conhecemos o acervo, que, depois de maculado por inúmeras goteiras, foi coberto com uma lona; a sala, sem ventilação alguma, com iluminação precária, ficava fechada o tempo todo, e as obras, dispostas aleatoriamente em estantes de ferro (algumas prestes a desabar), guardavam grossas camadas de poeira e mofo, e serviam de banquete às traças. A situação do acervo condeano assemelhava-se à relatada por Cincius Romanus (apud BAÉZ, 2006, p. 307), referindo-se a uma visita que fizera a um mosteiro de São Gall (Alemanha), em cuja torre da igreja encontrou “incontáveis livros mantidos como prisioneiros e a biblioteca descuidada e infestada de poeira, vermes, fuligem, e todas as coisas relacionadas com a destruição de livros”.

No processo de catalogação dos livros, removemos cada exemplar, limpamos como possível, e recolocamos nas prateleiras, ainda sem a distribuição ideal, uma vez que o trabalho foi realizado aos sábados e domingos, em situação pouquíssimo confortável, tendo ao lado todo o barulho e agitação das festas juninas, que aconteciam na rua em que ficava o referido prédio. Algum tempo depois, a Biblioteca Pública foi transferida para outro edifício – na verdade, uma residência adaptada –, na Rua Coronel Limeira, centro da cidade, ao qual fizemos algumas visitas recentemente, acima descritas.

Quando realizamos a pesquisa, anotamos os dez livros que representavam os casos mais graves de danificação.

a) Faltando partes:

1) Tormenta, de Coelho Neto (faltando a capa);

2) Josefina, o grande amor de Napoleão, de F. W. Kenyon, traduzido por Agenor Soares Santos e publicado pela Editora O Cruzeiro (dos dois volumes, o primeiro está desfalcado da capa e das primeiras 96 páginas);

3) A sociedade rural, seus problemas e sua educação, de A. Carneiro Leão, com prefácio de Artur Neiva, editado pela Editora A Noite (faltam as páginas a partir da 81);

4) Ana Karenina, de Tolstoi, traduzido por Lúcio Cardoso e prefaciado por Otto Maria Carpeaux (faltam as primeiras páginas).

1) Théâtre complet, de Bertold Brecht, contendo as peças “Le cercle de craie caucasien”, “Homme por homme” e “L’exception et la regle”, publicado em 1965, pela Editora L’Arche, de Paris: está completamente deteriorado pela umidade e pelos fungos;

2) A comédia em 4 atos Metamorfose, de Paulo Coelho Neto, publicação de 1959, pela Editora Simões, do Rio de Janeiro;

3) Outras duas comédias, na obra A vida de Esopo e Guerras do Alecrim e da Manjerona, de Antonio José, com prefácio de R. Magalhães Júnior, publicada em 1957, pela Editora Civilização Brasileira;

4) A peça em três atos Ciméria, de Oswaldino Marques, publicada pelo Serviço Nacional de Teatro, em 1951;

5) A peça teatral A donzela do gave, de Carmen Mello, livro publicado em 1960, pela Editora Itatiaia, de Belo Horizonte;

6) As “Cartas Chilenas” – Um problema histórico e filológico, de M. Rodrigues Lapa, com prefácio de Afonso Pena Júnior, publicado pelo MEC/INL, em 1958.

Neste lamento, registramos a atividade daquele beija-flor no incêndio da floresta, que, pelos decisivos e enfáticos posicionamentos diante de situações como as aqui relatadas, está se transformando em águia, elefante, quiçá em pouco tempo adquira ares de carro-tanque, a debelar as chamas da ignorância, que se debruçam sobre relíquias do passado, necessitadas de conservação: o Instituto

Histórico de Caruaru, criado em 2008, a partir

da iniciativa do ex-prefeito Anastácio Rodrigues da Silva (Figura 16), e cujo objetivo é zelar pela preservação da história e cultura da Capital do Agreste pernambucano. Sempre atentos aos desmandos e lapsos que redundam em graves prejuízos à cultura da região, os escudeiros da preservação histórica caruaruense são responsáveis pelo despertar da consciência e da

Figura 16 – Anastácio Rodrigues, em entrevista concedida para este trabalho. Foto: Edson Tavares.

sensibilidade histórica de autoridades, instituições e do povo, através das denúncias feitas e das sugestões apresentadas, com o intuito de salvar o pouco que resta da Caruaru do passado.

Aliás, é preciso que salientemos a importância que teve Anastácio Rodrigues, cuja biografia está sendo preparada pelo jornalista Fernandino Neto, para a afirmação do nome e de instituições culturais e artísticas de Caruaru, enquanto prefeito do município, como raciocina o historiador Veridiano Santos:

A administração Anastácio Rodrigues (1969-1972) é bastante elucidativa para se pensar a preservação da memória de Vitalino, dos Condés e outros personagens, como também para se pensar como muitas das imagens de Caruaru desenhadas nos anos anteriores foram se fixando no imaginário social. Uma série de medidas oficiais dessa administração culminou na construção de Mausoléus de Vitalino e [do Padre] Zacarias Tavares; Casa Museu Mestre Vitalino; Colégio Municipal Álvaro Lins, Casa de Cultura José Condé. Além disso, a Administração Municipal oficializou o Hino e a Bandeira da cidade, como ainda financiou (...) a viagem da Banda de Pífanos de Caruaru ao Rio de Janeiro. (SANTOS, 2006, p. 74)

Assim, é compreensível a preocupação de Rodrigues, junto ao IHC, nessa espécie de tentativa de tombamento do patrimônio cultural de Caruaru, e esperamos o efetivo posicionamento do poder público, diante de tamanha falta de cuidado com marcos históricos que merecem ser tratados com mais atenção. A demolição de prédios históricos, a ausência de verbas para restaurar e cuidar melhor de nossa memória cultural, a falta de sensibilidade para com as manifestações populares e para com tudo aquilo que não signifique lucro imediato e projeção midiática, tudo isso são exemplos terríveis de como se sepultam, impiedosamente, elementos importantes para o registro de nossa história. E a cultura, como afirma Williams (2011, p. 182), é “uma seleção e organização, de passado e presente, necessariamente provendo seus próprios tipos de continuidade”. O resto, afirmamos nós, é troco pequeno de mercadoria barata.