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CAPÍTULO 2 – UM ESCRITOR E SUA BIBLIOTECA

2.3 A biblioteca de Condé

2.3.6 Livros estrangeiros

A biblioteca particular de José Condé contém uma considerável quantidade de livros estrangeiros (41 = 2,3%) ou de autores estrangeiros traduzidos (613 = 34,6%), o que demonstra que seu interesse de leitor não se restringia às obras publicadas no Brasil, embora as brasileiras ocupem a maior parte de seu acervo. Dos livros estrangeiros, a maioria (21) é em língua espanhola; 10 são em francês, 5, em inglês, e 5, em alemão. Os assuntos são os mais variados: Literatura, História,

Geografia, crítica literária, dança, cinema, biografia e teatro. Sobre o fato de Condé dominar esses idiomas, em carta enviada por este à sobrinha da esposa, também chamada Maria Luiza, afirma, bem-humorado: “Estou frustradíssimo. Falo alemão, falo inglês, falo francês, falo espanhol – E NINGUÉM ME ENTENDE”. (Figura 15).

A respeito do tema “teatro”, entre os livros estrangeiros, merecem destaque: a obra Théâtre complet, de Bertold Brecht, em francês, publicada em 1955, pela Editora L’Arche, de Paris, com três peças do grande dramaturgo alemão: “Le cercle de craie caucasien” (“O círculo de giz caucasiano”, Der kaukasische Kreidekreis, no original), “Homme pour homme” (“O homem é um homem”, em alemão Mann ist Mann), e “L’exception et la regle” (“A

74 João Guilherme de Pontes era filho de Irineu Francisco de Pontes e de Ignez Guilherme de Azevedo Pontes, esta filha de João Guilherme de Azevedo e Maria Guilhermina de Azevedo; Maria Guilhermina, por sua vez, era irmã de Rita Assunção d’Azevedo e Silva, conhecida por Dondon, ambas filhas (com mais seis irmãos e irmãs) do Cel. Manuel d’Assunção Azevedo e Silva e de Rita Francisca d’Assunção. (BARBALHO, 1981b, p. 173-4).

Figura 15 – Bilhete manuscrito de José Condé à sobrinha de sua esposa Maria Luiza Condé, que também se chama Luiza. Acervo da família de José Condé.

exceção e a regra”, Die Ausnahme und die Regel, em alemão); e a peça em três atos Frankel, do brasileiro Antonio Callado, publicado em inglês pelo Ministério da Educação, em 1955.

Dos 41 livros encontrados, em língua estrangeira, além do já citado de Callado, encontramos um de Guilherme de Figueiredo (La zorra y las uvas), uma comédia em três atos, em espanhol, publicada em 1955, na Argentina, pela Losange de Buenos Aires; e um de Raimundo de Magalhães Júnior (La chanson dans le pain), também uma peça em três atos, publicada em 1956 pelo Ministério da Educação, em francês. Isso demonstra não apenas o gosto de Condé pelo teatro, mas também a incidência de autores brasileiros publicando em outros idiomas, alguns deles sob a chancela do governo federal.

O (ao que aqui chamamos de) cânone universal está bem representado na biblioteca particular do escritor José Condé: apontamos pelo menos 125 títulos (exatos 7%) nesta listagem, que, como as demais que possam existir, não é a definitiva – trata-se, neste caso, de uma opinião pessoal nossa. Citando alguns, traduzidos:

a) dois livros Odes, de Anacreonte (1966), com tradução de Almeida Cousin, que

ofereceu um deles a Condé;

b) duas obras de Aristóteles, A ética e Poética, a primeira traduzida por Cássio M.

Fonseca e publicada em 1965, e a segunda, em espanhol, traduzida por Eilhard Schlesinger, de 1947;

c) As flores do mal, de Baudelaire (1958), traduzido e prefaciado por Jamil Almansur

Haddad;

d) catorze volumes (do IV ao XVII) da Comédia humana, de Balzac, publicados entre

1949 e 1955, sob a coordenação de Paulo Rónai – à exceção do volume IV, todos os demais estão com as folhas coladas, o que demonstra que sequer foram folheados;

e) de Charles Dickens, além do famoso David Copperfield, dois (repetidos) de A casa

soturna, estes com as folhas coladas;

f) Os irmãos Karamazov, de Dostoiesvski;

g) Os três mosqueteiros, de Dumas;

de Sade, Molière, Montesquieu, Nietzsche, Oscar Wilde, Platão, Proust, Racine, Rousseau, Sartre, Schiller, Sêneca, Shakespeare (uma dúzia de obras do teatrólogo inglês), Sófocles, Stendhal, Terêncio, Thomas Mann, Thomas Morus, Tolstoi, Trotsky, Victor Hugo, Virgínia Woolf e Voltaire.

Notamos que a cultura de Condé, a julgar pelo que encontramos em sua biblioteca, é consideravelmente alimentada por autores que podem ser considerados canônicos universais. Sua preferência por clássicos75, aliás, é reforçada por depoimento, já aqui mostrado anteriormente, de sua esposa Maria Luiza, ao falar do cotidiano do marido: “ouvia Mozart, Haendel, Bach, Haydin, Beethoven, Schubert, Brahms, Vivaldi, Scarlati, Tchaikowsky, Liszt e Rimsky-Korsakow” (CAVALCANTI, M. L. G., 1981, p. 2); como se vê, também em termos musicais, Condé levava em conta o cânone, na sua preferência de audição.

Outro dado interessante é a presença forte das literaturas norte-americana e britânica na biblioteca de Condé. Além dos já citados compêndios de História, encontramos vários de ficção. Destacamos três autores, inclusive pelo quantitativo:

a) Ernest Hemingway, prêmio Nobel de Literatura em 1954, aparece em nove livros

da biblioteca condeana, embora não tenhamos encontrado dois de seus mais famosos romances: Por quem os sinos dobram (1940) e O velho e o mar (1952). Uma das obras encontradas, entretanto, As verdes colinas de África, traduzida por Guilherme de Castilho, publicada pela Editora Livros do Brasil, de Lisboa, demonstra ter sido lida atenciosamente, uma vez que há marcas de leitura – foram grifados cinco trechos, ao longo do livro, dos quais destacamos dois (HEMINGWAY, s.d.):

“O verdadeiro processo de caçar é perseguir um animal enquanto ele existe, assim como a verdadeira maneira de pintar é insistir enquanto houver pintor, pincéis, telas e tintas, e a de escrever, enquanto houver escritor, papel e

lápis ou qualquer coisa que permita escrever, enquanto houver assunto e a consciência da tolice que representa seguir outro caminho que não seja este.” (p. 21) (Grifo nosso)

“Alguns escritores nasceram apenas para ajudar outro escritor a escrever uma única frase.” (p. 29-30)

Claro que os trechos, descontextualizados, não podem nos informar muito de seu significado, mas oferecem uma importante pista: a de que Condé refletia, nas leituras que realizava, sobre a função do escritor; no primeiro excerto, a insistência de escrever sempre,

75 Aqui não no sentido que lhe dá a periodização da literatura, de obras greco-latinas da Antiguidade, mas no sentido informal de obras respeitadas e sedimentadas pelo cânone artístico, de um modo geral, e literário especificamente.

enquanto houver o quê e como dizer, até o esgotamento total de todas as forças – na verdade, foi o que aconteceu com ele próprio, ao produzir dois livros no período mais crítico da doença que o vitimou. Essa preocupação está no nascedouro da escrita, como afirma Chartier (2007, p. 9): “O medo do esquecimento obcecou as sociedades europeias da primeira fase da modernidade. Para dominar sua inquietação, elas fixaram, por meio da escrita, os traços do passado, a lembrança dos mortos ou a glória dos vivos e todos os textos que não deveriam desaparecer”.

A segunda frase destacada diz da necessária e saudável influência de leituras na produção de novos textos: é como se existissem escritores que escreveram para ajudar outros escritores a escrever, constituindo-se numa interessante quase-inversão do que afirmava Jorge Luis Borges (apud PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 33): “a existência do posterior, para Borges, não é consequência, mas pode ser até mesmo condição de ‘existência’ do anterior, já que o posterior permite a leitura de aspectos anteriormente invisíveis do anterior”. Ou, como lembra Manguel (1997, p. 37), “a história de leitura de um determinado autor encontra muitas vezes um começo não com o primeiro livro desse autor, mas com um dos futuros leitores dele”. Então, quer nos parecer, o que de fato existe é uma espécie de reciprocidade criativa: um escritor inspira outro escritor, que, por sua vez, visibiliza o primeiro, através da retomada de seu texto.

b) O irreverente e polêmico autor irlandês Bernard Shaw, prêmio Nobel de Literatura

(recusado) de 1925, aparece na biblioteca de Condé com uma dezena de compêndios, dos quais a maioria são peças de teatro, excetuando-se o romance As aventuras de uma negrinha que procurava Deus, tradução de Moacyr Werneck de Castro, publicado pela Globo, em 1949, e a autobiografia Quem sou e o que penso, traduzida por Oscar Mendes. Destacamos O dilema do médico, publicado em 1953, pela Melhoramentos, com tradução de R. Magalhães Júnior, em que o autor utiliza um longo prefácio, dividido em vários itens, para analisar a função do médico na sociedade, artigo cujas folhas encontram-se coladas, denotando, assim, sua não-leitura.

c) Localizamos também nada menos que dezenove livros do romancista e dramaturgo britânico William Somerset Maugham, praticamente uma máquina literária, dada a sua vasta produção de quase 80 títulos. É um exemplo de escritor que conseguiu se realizar financeiramente como literato, ficando famoso e rico, ao longo dos 65 anos em que produziu e obra, “no entanto, apesar de seus trunfos [comerciais], jamais conseguiu um

elevado respeito por parte dos críticos e companheiros escritores”, que lhes apontavam “uma carência de lirismo, além de criticarem o reduzido vocabulário e um uso pobre da metáfora”76.

Seu livro que alcançou mais sucesso foi Servidão Humana, uma espécie de autobiografia ficcionalizada, mas que não localizamos na biblioteca de Condé; encontramos, entretanto, O pecado de Liza, de 1897, sua primeira obra literária, em edição de 1956, com tradução de Leonel Vallandro, e publicada pela Globo, editora, aliás, responsável pela publicação de todos os livros de Maugham que encontramos na biblioteca condeana, o que nos leva a pensar na possibilidade de tantos títulos desse autor estarem presentes no acervo de Condé por conta do sistemático envio pela editora ao jornalista, para divulgação em sua seção literária do Correio

da Manhã.

Ao perceber as datas de publicação dos livros, encontrados no acervo de Condé, podemos identificá-lo como alguém antenado com o que se produzia no país, em termos de literatura estrangeira, em língua nativa ou traduzido. Aliás, não poderia ser de outra forma, já que estamos tratando de um conceituado jornalista literário; era de se esperar, portanto, que sua biblioteca estivesse recheada de tais obras, embora – como já frisamos – muitas delas sem sinal de leitura, do que se deduz que eram presentes recebidos de autores, tradutores, editores, por conta de sua função de divulgador. Ainda assim, cremos que aquele leitor, despertado na adolescência solitária do Colégio Plínio Lemos, em Petrópolis, perdurou pela vida inteira, e sua biblioteca particular bem poderia se constituir nesse ansiado espaço de contato com autores de todo o mundo, através de suas obras.