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CAPÍTULO 2 – UM ESCRITOR E SUA BIBLIOTECA

2.3 A biblioteca de Condé

2.3.3 Marcas de leitura

O historiador francês Roger Chartier (1998, p. 88) fala das “intervenções do leitor, necessariamente indicadas nas margens [do texto], como um lugar periférico com relação à autoridade”. A palavra autor remete irremediavelmente para “essa figura que lhe é [ao texto] exterior e anterior, pelo menos em aparência” (FOUCAULT, 1992, p. 34), e que, por essas aparentes exterioridade e anterioridade, tem a autoridade de criador primeiro do texto. Fica evidente então algo como se fosse total respeito à letra impressa, garantindo ao produtor do texto uma espécie de autorização que o faz porta-voz da Verdade, e restando aos leitores, figuras menores, tão somente engolir o escrito ou, no máximo, grifar, circular, escrevinhar sua

humilde opinião nas margens da página, que é lugar não utilizado pela mancha tipográfica. Na

verdade, corresponde ao espaço das táticas de leitura, a que se refere Michel de Certeau (2011), e, por isso mesmo, campo de batalha privilegiado do leitor, que, ao invés de apenas

deglutir o texto, na verdade promove uma reescritura, uma reconstrução, assumindo, assim,

uma condição de co-autor. Chartier (2001, p. 20) afirma que

todo autor, todo escrito impõe uma ordem, uma postura, uma atitude de leitura. Que seja explicitamente afirmada pelo escritor ou produzida mecanicamente pela maquinaria do texto, inscrita na letra da obra como também nos dispositivos de sua impressão, o protocolo da leitura define quais devem ser a interpretação correta e o uso adequado do texto, ao mesmo tempo em que esboça seu leitor ideal. [...] cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado, aos textos de que se apropria.

Isso porque, de acordo com Goulemot (2001, p. 108), “ler é dar um sentido de conjunto, uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequências. Não é encontrar o sentido desejado pelo autor”. Desta forma, falamos em “constituir e não reconstituir um sentido. A leitura é uma revelação pontual de uma polissemia do texto literário” (grifo do autor). A ação do leitor como um comportamento ativo em relação ao texto pode ocorrer silenciosamente, no oculto de suas resistências interiores ao lido, nas concordâncias, denunciadas por quase imperceptíveis mover de olhos, lábios ou gestos mais ou menos discretos; mas também pode se evidenciar explicitamente, através dessas anotações marginais ao texto, demonstrando sua reação de leitor à obra lida.

Daí porque se faz importante a observação dessas anotações e de grifos presentes em textos lidos por outrem. No caso de Condé, não há muita incidência desse procedimento: são relativamente poucos os livros encontrados em sua biblioteca que trazem anotações. E ainda trabalhamos no campo das hipóteses, já que não podemos ter certeza de que os apontamentos

detectados em alguns volumes tenham sido feitos realmente pelo escritor. De qualquer forma, apresentamos as obras que trazem algum tipo de rabisco do leitor. São apenas oito livros (0,4%) que receberam marcas de leitura:

a) O livro de James Baldwin Numa terra estranha, traduzido por Gilberto Miranda e

publicado em 1965 pela Editora Globo, de Porto Alegre, traz alguns poucos grifos, sem comentários.

b) Também sem comentários, há dez marcas de leitura na obra Interpretação do

Brasil, de Gilberto Freyre, que, curiosamente, traz a informação de que foi traduzida por Olívio Montenegro, sem que se faça menção sobre a língua em que foi escrito; o prefácio é de José Lins do Rego e foi publicado em 1941, pela José Olympio Editora.

c) Igualmente sem mais comentários, apenas algumas marcas de leitura encontram-se

na obra Os Azevedos do poço, do escritor pernambucano Mário Sette, publicado em 1938, também pela José Olympio.

d) O romance O fiel e a pedra, de Osman Lins, editado pela Civilização Brasileira, em

1961, parece ter sido lido com bastante atenção, pois em toda sua extensão encontram-se muitas marcas (grifos) feitas a lápis. O detalhe dessa obra é que, em seu interior, encontramos um cartão assinado pelo autor, com a mensagem datilografada: “Ao caruaruense José Condé, o vitoriense Osman Lins. Recife, setembro de 1961”. Lins é pernambucano da cidade de Vitória de Santo Antão.

e) A. da Silva Mello enviou seu livro O que devemos comer, publicado em 1964 pela

Civilização Brasileira, à época editora também dos livros de Condé, que era tratado pelo autor, em autógrafo, como “sábio em comidas gástricas e intelectuais”. O compêndio está assinalado, à caneta, com discretos grifos, setas e “x”.

f) O livro História da Inglaterra, ao qual já nos referimos anteriormente, escrito por

Andre Maurois e traduzido por Carlos Domingues, publicado pela editora Irmãos Pongetti, em 1959, traz as seguintes anotações, na última página: “Resgates 96”; “Repartição do corpo 97”; e “Igreja Medieval 151” – nas respectivas páginas, estão grifados os trechos correspondentes. Existe uma possibilidade considerável de esse livro ter sido anotado pela professora Maria Luiza Condé, uma vez que os tópicos parecem dizer mais respeito à leitura de uma historiadora.

g) Uma coletânea de contos de Knut Hamsun, contendo as narrativas Fome – Pan –

Um vagabundo toca em surdina – A rainha de Sabá, editado em 1957, pela Editora Martins, recebeu atenção mais detida do leitor: há quinze marcas de leitura, a última na página 267 (o livro tem 436). Além de marcar, com um traço, o trecho destacado, faz uma listagem, na última folha do livro, das páginas que assinalou, o que denota a preocupação com uma possível volta ao livro, para retomar algum dos trechos grifados. É importante ressaltar, no entanto, que as últimas folhas da obra estão coladas, o que demonstra ter se desinteressado pela leitura antes de seu término.

h) Finalmente, o caso de dois livros do

amigo escritor e seu biógrafo Renard Perez (Figura 13). Em abril de 1954, Condé recebeu Os Sinos, um volume de contos publicado naquele ano pelo Jornal de Letras, como nos confirmou pessoalmente Perez (informação verbal)69: “Eu não tinha editora nenhuma, o Zé era meu amigo, disse: ‘Eu publico, vamos publicar.’ Então publicou.” No autógrafo, o agradecimento: “Para José Condé, com os

agradecimentos do colega, amigo e profundo admirador Renard”. Em dezembro de 2000, Souza Pepeu, editor da Revista Caruaru Hoje, publicou, na página 35, uma foto de Renard, informando ter sido encontrada dentro desse livro. O volume, no entanto, encontra-se até hoje com as folhas coladas, sinal de que não foi lido por Condé. Dezesseis anos depois da primeira edição dessa obra, Perez fez a segunda, acrescentando a narrativa O Tombadilho, desta vez pela Civilização Brasileira, e, em outubro de 1970, presenteou o amigo e sua esposa, autografando: “Para José Condé – velho companheiro – e para Maria Luiza, com todo o carinho do Renard Perez”. Este livro, recebido durante o período da doença, que obrigava Condé a guardar leito quase que permanentemente, ao que tudo indica, recebeu mais atenção; provavelmente foi lido, pois há algumas anotações, na última página, como, por exemplo, “Expressões antigas – regionais – 117”. Refere-se à frase “Ergueu-se rápido e abalou na

carreira”, o que demonstra uma preocupação em anotar expressões que poderiam ser utilizadas em alguma história dele próprio.

69 Em entrevista concedida no Rio de Janeiro-RJ, em 30/05/2011.

Figura 13 – Renard Perez em seu apartamento, no Rio de Janeiro, em 2011, quando concedeu entrevista para esta pesquisa. Foto: Edson Tavares.

O estilo marcadamente hipotético deste tópico revela o quanto trabalhamos no campo das probabilidades, na identificação das marcações de leitura dos poucos livros encontrados na biblioteca particular de José Condé, pelos motivos já anteriormente aludidos, quais sejam:

a) a impossibilidade de detectar a quem de fato pertenciam alguns livros, se a José ou a Maria Luiza;

b) quem efetivamente teria lido tais obras, e com que objetivos teria realizado as anotações;

c) a nossa decisão de não-aprofundamento na questão da possível presença dessas anotações nas obras condeanas, por se tratar de um minucioso trabalho, que demandaria tempo e espaço de que não dispomos aqui, além de fugir do nosso foco nesta pesquisa. Entretanto, fica a ponta do fio guardada para possíveis e futuros desfiares.