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CAPÍTULO 2 – UM ESCRITOR E SUA BIBLIOTECA

2.3 A biblioteca de Condé

2.3.5 Curiosidades

Alguns livros chamam a atenção, dentre os encontrados na biblioteca particular de José Condé, por diversas e inusitadas razões. Localizamos, por exemplo, duas obras que abordam uma das paixões de Condé, já aqui relatadas: o Segundo Império brasileiro. A primeira, um velho exemplar de História da Polícia do Rio de Janeiro – Aspectos da cidade e da vida carioca (1831-1870), escrito por Mello Barreto Filho e Hermeto Lima, com prefácio de Felisberto Batista Teixeira, publicado pela Editora A Noite, em data não sabida; o livro é recheado com quadros e desenhos referentes ao II Império. A outra obra é a junção, por R. Magalhães Júnior, de três textos a respeito do segundo reinado: “Libelo do Povo”, de Francisco de Sales Torres Homem; “Ação, Reação, Transação”, de Justiniano José da Rocha; e “A Conferência dos Divinos”, de Antonio Ferreira Vianna; reunidos sob o título Três panfletários do Segundo Império, uma publicação de 1956, da Cia. Editora Nacional, de São Paulo – apesar de oferecido por Magalhães a Condé, as folhas encontram-se coladas.

Encontramos também o livro Irmão juazeiro, do advogado incentivador e organizador das Ligas Camponesas pernambucanas Francisco Julião; trata-se de um romance publicado

de 1961, Julião fala do Nordeste como um “pedaço de chão angustiado mas bom”. O romance mostra-se menos panfletário do que se poderia julgar, tratando-se de uma obra produzida por uma das figuras mais emblemáticas da luta camponesa em Pernambuco. Traz um enredo especificamente de caráter rural, traçando uma espécie de painel sensitivo da vida do campo, com suas alegrias e misérias, em que, os episódios ligados e armados entre si funcionam como um conjunto, no qual os conflitos pela terra não se constituem a espinha dorsal da narrativa, mas aparecem como apenas mais um aspecto desse viver angustiado.

O trato bastante específico que o autor dá à linguagem do campônio pernambucano pode deixar o leitor de outras regiões em volta com algumas dificuldades de compreensão, pois há expressões cujo entendimento extrapola a consulta a dicionários, fazendo-se necessária a percepção da entonação para o entendimento de seu significado: “Arta, cachorro da grenguena...” (JULIÃO, 1960, p. 18); “Naninha fez uma careta de nojo e replicou: – Quero saber mais daquela peste.” (Idem, p. 129). No primeiro exemplo, trata-se de uma expressão de repulsa, espantando o animal de perto de si; embora a primeira palavra (“Arta”) não tenha um significado específico (corresponderia a uma interjeição de enxotamento), o epíteto relativo a uma doença, dado ao bicho (“da greguena”, forma popular de designar a gangrena), demonstra a raiva do personagem: na região, a maioria dos palavrões e expressões de insulto referem-se a nomes de doenças: “gota serena”, “boba do rato”, “bexiga lixa”, “febre tifo” etc. Já no segundo trecho, deduzindo a partir da introdução do narrador, o que poderia parecer uma incoerência na frase da personagem (se estava com nojo, por que quereria “saber mais” do outro?), torna-se evidente ao se conhecer a entonação que se dá à frase, significando exatamente o contrário, numa espécie de ironia apenas detectada pela oralidade.

Há também outra obra desse autor, Cachaça, um livro de contos publicado pela Editora Nordeste, de Recife, quase uma década antes do romance acima, em 1951. São sete histórias curtas, tendo por tema a aguardente e sua influência na vida dos camponeses nordestinos. Coincidentemente, todos os personagens enfocados nestas narrativas são negros e populares, marcados, de uma forma ou de outra, pela desgraça que a pinga faz brotar e alimenta na vida das pessoas. O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, em prefácio à obra, afirma que estes contos,

em vez de se conservarem à margem da literatura, penetram-na com um vigor às vezes surpreendentemente novo pelo que há neles de agreste e de tropical. De todos parece vir até nós a ardência da própria cachaça provocadora de dramas entre homens humildes: uma ardência com alguma

coisa de diabólico, de que esses homens simples do interior do Norte do Brasil nem sempre sabem fugir. (FREYRE, 2005, p. 14)

Em termos de divulgação, o romance recebeu algumas notas na Coluna “Escritores e

Livros”: uma em 20/09/1960, informando que estava para ser editado; outra em 16/10/1960, anunciando seu lançamento para o mês seguinte; uma terceira em 24/01/1961, em que Condé afirma que, apesar de estar apenas iniciando sua leitura, constata não se tratar “de um romance de tese, [pois] o autor não teve o intuito de divulgar suas ideias a respeito da Reforma Agrária” (CONDÉ, 1961, p. 2). Enquanto isso, o livro de contos recebeu divulgação mais modesta, sendo citado, por exemplo, no dia 16/10/1960.

Não deixa de causar espanto, ou ao menos estranheza, encontrarmos um livro publicado pelo Ministério do Exército, no complicado ano de 1968, sobre a Medalhística militar brasileira, produzido pelo Serviço Geográfico do Exército. Está sem dedicatória, mas com as folhas descoladas, sinal de que foi pelo menos folheado. Sabemos que Condé, apesar de discreto e de se denominar apolítico, tinha seus ares esquerdistas, e, como afirma Vera Condé (informação verbal)72, chegou a entrar em depressão quando ela começou a namorar um rapaz que era militar, confidenciando, meio dramático, a Maria Luiza: “é a maior decepção da minha vida, saber que uma filha minha está namorando um militar”. Então, o que faria um livro de cunho eminentemente militar, e publicado em ano tão sintomático, na biblioteca particular de José Condé? Teria sido enviado ao escritor por alguma instituição militar, já que era rotina do Exército, naqueles anos pesados, derramar desmesuradamente suas publicações sobre a imprensa, escolas, igrejas e outros considerados aparelhos ideológicos, na ânsia de, através da propaganda compulsiva, promover uma verdadeira

lavagem cerebral à distância? Pertenceria ao escritor ou faria parte do material de trabalho da

professora Luiza Condé? Fora lido por ele? São questões que jamais poderemos responder satisfatoriamente, ante a ausência perpétua dos únicos capazes de fazê-lo.

Demonstrando a cotidianidade de um escritor, em dois dos livros de sua biblioteca encontramos anotações domésticas. Em A herdeira, um dos quatro de Henry James localizados no acervo, à guisa de marcador de leitura (ou seria mera e aleatória disposição de um papel dentro de um livro?), uma nota de compras de um supermercado: estaria sendo lido este romance do escritor norte-americano naturalizado britânico, enquanto Condé ou alguém fazia compras? Ou a nota fora aí colocada já em casa, na falta de lugar mais apropriado? Enquanto isso, no livro Pigmaleão, a mais conhecida peça teatral de Bernard Shaw, traduzida

por Miroel Silveira, e publicada pela Melhoramentos, de São Paulo, em 1951, encontramos uma lista de despesas de casa, com luz, água, telefone, empregadas (no plural), lavadeira, comida, prestações, costureira; no verso, carne, Toddy, leite, pão e jornal. Trata-se, naturalmente, de um rascunho de orçamento doméstico diário e mensal. Vale ressaltar também que, num livro de Ernest Hemingway (Uma aventura na Martinica), encontramos um volante da Loteria Esportiva, concurso 21, de 1970. Naturalmente, tais objetos não se prestam a maiores elucubrações dado seu prosaísmo e praticamente nenhuma importância histórica ou literária em relação ao escritor José Condé, razão por que estão aqui somente a título de curiosidade.

Outro fato interessante, que detectamos, nesse bisbilhotar do acervo particular de José Condé: cerca de 20 livros (1,1%), a julgar por alguns detalhes da folha de rosto, não pertenciam efetivamente a Condé, sendo desconhecido o motivo pelo qual se encontravam em sua biblioteca. Dentre eles:

a) O livro argentino La asociacion paraguaya em la guerra de la triple alianza, de

Juan Bautista Gill Aguinaga, editado pelo autor, foi por este ofertado ao Correio da Manhã, onde Condé trabalhava.

b) O livro Poemas, de Jorge de Lima, publicado em 1927, pela Editora Trigueiros, de

Maceió-AL, foi pelo poeta ofertado a Valdemar Cavalcanti, no ano seguinte ao da publicação. Outra obra oferecida pelo autor a esse escritor, colega, amigo e biógrafo de Condé, foi O Rio no tempo do “Onça”, de Alexandre Passos, publicado pela Livraria São José, em 1965, mas estão com as folhas coladas. Um terceiro livro que provavelmente pertencia a Valdemar Cavalcanti é Electra, de Sófocles, editado pela Editora Civilização Brasileira, em 1958, traduzido por Mário da Gama Kury, que o ofereceu ao amigo de Condé.

c) Renato Carneiro Campos escreveu e publicou pelo MEC/INEP, em 1959, Ideologia

dos poetas populares do Nordeste. O exemplar encontrado na biblioteca de Condé tem um oferecimento ao também poeta Carlos Drummond de Andrade.

d) O livro A rajada, de Amadeu de Queiroz, um compêndio publicado pela Saraiva,

foi oferecido pelo autor ao crítico literário Brito Broca, em junho de 1954.

e) A obra Ernesto Nazareth na música brasileira, publicada em 1967, às custas do

musical da Comissão Artístico-cultural do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, da Academia Brasileira de Música e do Conselho Federal de Cultura.

f) É de 1939 a publicação da História de dois golpes de Estado, de Octavio Tarquínio

de Sousa, oferecida pelo autor a certa D. Fernandina, embora haja mais oito livros desse autor na biblioteca condeana, todos da década de 1950, e apenas um autografado a Condé.

g) Cabral e as origens do Brasil é o título do ensaio de topografia histórica de Jaime

Cortesão, publicado em 1944, em cuja primeira página há a assinatura de Antonio de Almeida Souza, informando ter sido um presente de certo Rômulo, em 15/06/1949.

h) O inventor de Deus, de Nelson Coelho; Espantalho na feira, de Clóvis Moura; e À

margem do cinema brasileiro, de F. Silva Nobre; esses três livros foram dedicados, por seus autores, a José Condé. Entretanto, trazem a assinatura do poeta Lycio Neves, na segunda página, todas datadas de 1963, alguns meses depois de serem oferecidos a Condé. Ressaltamos que Lycio Neves era pernambucano, como Condé, tendo vivido boa parte de sua vida em Caruaru; os dois eram bastante amigos, e, seja no Rio de Janeiro, seja em Pernambuco, encontravam-se sempre que possível, para beber e conversar.

i) E o que parece um “feitiço contra o feiticeiro”: é bastante conhecida a mania que

tinha João Condé, o “gari da literatura”, de surrupiar de escritores, seus amigos, qualquer papel que julgasse importante guardar; “Se não consigo por bem, consigo por... ligeireza”, afirmava (RODRIGUES, 2006, p. 150). Pois bem, encontramos na biblioteca de José Condé o livro de Aristides Villas-Boas As três solteironas, publicado provavelmente em 1958, pela Editora Livraria São José, do Rio de Janeiro, só que com dedicatória ao irmão, João Condé.

j) A Poética, de Aristóteles, em espanhol, publicado em 1947, pela Editora Emece, de

Buenos Aires, numa tradução de Eilhard Schlesinger, tem o nome de Henrique de Araújo Mesquita na primeira página.

k) O livro Major Sinval, de Nelson Barbalho, publicado pela Editora Vanguarda, de

Caruaru-PE, em 1968, traz o nome de Mário Vasconcelos como suposto proprietário do exemplar.

l) O livro avariado (sem capa e faltando as primeiras folhas) A tormenta, de Coelho

m) A obra El renacimiento, de Walter Pater, traduzida para o espanhol por Eduardo

Pons Peña e publicada na Argentina pela Editora Interamericana, em 1944, traz a assinatura na primeira página de José Paulo Moreira, e a data junho de 1946.

É possível, também, que tais volumes tenham sido adquiridos em sebos, ambiente de há muito frequentado pelos amantes da literatura que não dispõem de muita verba para comprar livros novos, ou não conseguem encontrar obras que procuram em livrarias – naturalmente, a considerarmos esta possibilidade, a segunda razão é que moveria Condé, pois, como já percebemos, este não teve muitos problemas de ordem financeira em sua vida. Além do mais, o escritor mantinha amistosa relação com sebistas, como poderemos ver adiante. Várias outras hipóteses podem ser levantadas, para justificar a presença de livros potencialmente de outras pessoas em sua biblioteca: como viajava para o Nordeste, e tinha contato com muitos escritores no Rio, poderia se fazer portador de obras oferecidas pelos autores a esses escritores, e que nunca foram entregues; poderia Condé, ou alguém da família, ter por hábito esquecer de devolver os livros que tomavam por empréstimo, como, aliás, Maria Luiza Condé comenta, de próprio punho, no livro Água-Mãe, de José Lins do Rego, como veremos adiante. A propósito, essa preocupação com a devolução de livros é antiga: segundo Manguel (1997, p. 276), no século XVIII havia sonoras ameaças aos que se apropriavam dos livros alheios, sem devolvê-los, como esta, aposta na biblioteca do Mosteiro de São Pedro, na cidade espanhola de Barcelona:

Para aquele que rouba ou toma emprestado e não devolve um livro de seu dono, que o livro se transforme em serpente em suas mãos e o envenene, que seja atingido por paralisia e todos os seus membros murchem. Que definhe de dor, chorando alto por clemência, e que não haja descanso em sua agonia até que mergulhe na desintegração. Que as traças corroam suas entranhas como sinal do Verme que não morreu. E quando finalmente for ao julgamento final, que as chamas do Inferno o consumam para sempre. Provavelmente, tamanha fúria verbal não contém completamente a ação “daqueles leitores que, como amantes enlouquecidos, estão decididos a se apropriar de certo livro” (op.

cit., p. 276). Pode ter sido (por que não?) esta compulsão bibliocleptomaníaca a razão dos

vários livros alheios na biblioteca de José Condé.

Outro aspecto que julgamos interessante, no acervo de Condé, é a presença de nada menos que 111 obras biográficas (6,2% do total). Segundo Borges (2006, p. 205), desde Life of Samuel Johnson LL.D, de James Boswell, de 1791, “tido por muitos como o marco inicial do que hoje chamamos biografia”, tem-se multiplicado a publicação da vida de personalidades

e parece que “a razão mais evidente para se ler uma biografia é saber sobre uma pessoa, mas também sobre a época, sobre a sociedade em que ela viveu.” (BORGES, p. 215). A julgar pelo quantitativo de obras desse gênero, presentes na biblioteca particular de Condé, podemos considerá-lo um ávido leitor de biografias. Os biografados são dos mais variados matizes, campos e estilos, como podemos perceber, numa rápida seleção:

a) Brasileiros – Alberto de Oliveira, Álvares de Azevedo, Câmara Cascudo, Carlos Gomes, Castro Alves, Euclides da Cunha, Fagundes Varela, Gonçalves Dias, Graça Aranha, Guimarães Rosa, João Ribeiro, Jorge de Lima, José de Alencar, Lima Barreto, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Olavo Bilac, Raul Pompéia, Ruy Barbosa, Tobias Barreto, nas artes; Anita Garibaldi, Barão do Rio Branco, Candido Rondon, Getúlio Vargas, Ganga- Zumba, Lampião, Padre Cícero Romão Batista, Princesa Isabel, na História.

b) Estrangeiros – Bernard Shaw, Charles Dickens, Ernest Hemingway, Garcia Lorca, Guy de Maupassant, Henry Miller, Horácio, Shakespeare, nas artes; Abraham Lincoln, Lênin, Lucrécia Borgia, Maria Antonieta, Napoleão Bonaparte, Richelieu, na História.

Teriam essas histórias de vida de alguma forma influenciado José Condé, esse criador de vidas? Afinal, existe um parentesco intrínseco entre as biografias e a literatura; são ambas narrativas da vida de pessoas, e o que poderia, a princípio – e inadvertidamente – separá-las, o grau de veracidade nelas contidas, podem ser apuradas num aspecto único: a verossimilhança, como lembra Borges (2006). O relato de vida de uma pessoa de existência, digamos,

fisicamente real, em pouco se diferencia do de um personagem criado; tanto porque aquele

tem a história composta a partir de escolhas do biógrafo, que passam pelos mais diversos caminhos (formação, interesse e objetivo do escritor, relação com o biografado, autorização ou não da biografia etc.), quanto, no caso do personagem literário, a composição de sua vida faz-se de retalhos de diferentes vidas fisicamente reais.

José Condé, segundo sua filha Vera (informação verbal)73, corroborando o que já afirmara Maria Luiza (F., C. A. 1986, p. 2), colocava nos personagens de suas obras nomes e características de pessoas da família da sua esposa: “Papai punha os nomes das putas todas as irmãs dela”. Por outro lado, o próprio Condé afirmou, em uma de suas últimas entrevistas (JOSÉ..., 1971, p. 7), que seus personagens “são formados de pedaços de pessoas, lembranças de experiências, sentimentos.” A título de curiosidade, em Terra de Caruaru, uma das personagens mais significativas é a amante do Cel. Ulisses Ribas, este geralmente associado

ao Cel. João Guilherme de Pontes, líder político caruaruense na época em que se passa a história; o apelido da amásia do coronel Ribas é Dondon, o mesmo cognome de uma tia-avó do Cel. João Guilherme74.