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CAPÍTULO 1 – NOTÍCIA BIOGRÁFICA DE JOSÉ CONDÉ

1.2 Um escritor, por seus contemporâneos

1.2.5 José Condé em artigos

Como já tantas vezes enfatizamos, não havia, até agora, uma análise crítica de fôlego em relação à obra de José Condé, nem à sua atuação como jornalista literário. O que sabemos dele deve-se a depoimentos de amigos, contemporâneos, textos esparsos em livros e periódicos. Registramos, agora, a título de exemplo, alguns desses artigos, garimpados em diversos lugares e datas, que tiveram por foco o estilo literário do escritor caruaruense.

Mencionamos, acima, a ausência de comentários críticos de sua obra, por parte do reverenciado crítico literário Álvaro Lins, bem como a justificativa do próprio Lins pelo seu silêncio. Isto se deu num capítulo de um dos oito livros da série Jornal de Crítica, lançados pelo também caruaruense, entre 1941 e 1963, mais especificamente o sétimo volume. No texto intitulado “Visões da cidade morta” – uma referência à obra que analisaria, Histórias da Cidade Morta –, e após evidenciar seu parecer a respeito de sua relação com Condé, Lins

56 Ata da ABL, de 23/04/1970, p. 47.

57 Informações colhidas em http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=763&sid=150, acesso em 22/11/2012.

(1963a, p. 91) anuncia existirem duas espécies de escritores: os que demonstram todo seu talento já no primeiro livro, e aqueles que “avançam lentamente, seguramente, com um progresso de livro para livro, fazendo de cada obra um degrau de subida para a obra seguinte”, não havendo, entretanto, entre os dois tipos de autores, “diferença de grau quanto ao valor”, apenas de “natureza ou temperamento, no processo de conceber e realizar literariamente”.

Condé é incluído por Álvaro Lins entre os escritores que se vão crescendo “numa continuidade de trabalhos e aquisições” (op. cit., p. 92), e a obra em evidência “não é uma coleção de contos; é, sim, um conjunto orgânico de várias histórias, entrecruzadas algumas, convergentes outras”. Alega que o leitor desatento não perceberá que a leitura isolada de alguns desses contos fará se perder “bastante dos seus efeitos”, em função dessa intertextualidade, opinião com a qual concordamos, sem, no entanto, deixar de frisar que os textos condeanos mantêm-se, ainda assim, autônomos, garantindo-lhes a denominação de contos, e não de capítulos de um romance fragmentado. A fragmentação existe – ainda concordando com a afirmação de Lins (op. cit., p. 93) – no “núcleo para a unidade das histórias”, para que resultassem “como faces variadas de uma só fisionomia”.

Fazendo uma avaliação da qualidade literária dos treze contos que compõem o livro, Lins elege a maioria, nove, como “os mais valiosos, no equilíbrio entre forma e substância”, e apenas quatro como inferiores, ressaltando nestes a inverossimilhança (“A cidade”) e a pobreza do enredo, da matéria de ficção (“Desamparo”, “O apelo” e “Solidão”).

A última parte do texto de Lins (op. cit., p. 94) procura dar conta do autor no conjunto da obra, enfatizando que “nos planos da imaginação e da invenção dramática, é que o Sr. José Condé mais precisa desenvolver os seus valores de trabalho literário, os seus recursos de aperfeiçoamento tanto humano quanto estético”. Isso porque, segundo ainda o crítico caruaruense, “a sua preocupação parece ter sido, de início, a conquista de um estilo seguro, elegante e flexível”, o que, sem dúvida, já conseguira: “bem poucos, na sua geração e na sua idade [Condé tinha 35 anos à época deste texto (1952)], podem contar com uma igual expressão em prosa”. Refere-se Lins à contenção estilística de Condé, que faz este produzir suas narrativas numa forma concisa e breve, fruto “de uma espécie de timidez, de pudor ante o que possa parecer desejo de brilhar ou expandir-se com mais desenvoltura”. É provável que Lins tivesse razão em querer instigar no conterrâneo a possibilidade de maiores ousadias

que se tratasse, essa contenção estilística, de característica própria do autor, por este buscada com minucioso, insistente afinco, na “raspagem”, do texto, de tudo que lhe pudesse ser supérfluo. Enfim, são visões várias sobre um mesmo tema – que nos permite o fenômeno literário, especialmente o condeano.

Um segundo artigo que destacamos trata-se de uma curiosa análise do historiador e crítico musical José Ramos Tinhorão, acerca de elementos de musicalidade presentes em algumas obras de José Condé. O capítulo “A música popular nos romances de Caruaru de José Condé”, que compõe o terceiro volume do livro A música popular no romance brasileiro (TINHORÃO, 2002) discute as referências musicais feitas pelo autor, na composição de algumas de suas obras.

Como boa parte das obras de Condé utiliza cenários e personagens cuja composição implica, necessariamente, questões ligadas à música, como cabarés, seresteiros, festas, bandas de música etc., a referência a canções da época enfocada é uma constante. E, tirando um ou outro deslize informativo, provavelmente traído pela memória ou “falha de atenção” como alega Tinhorão, já que os acontecimentos musicais a que se refere se deram na infância do autor (anos 1920), este se mostra “tão seguro que, quase certamente, não se terá amparado apenas na memória, mas devia estar transcrevendo os versos conforme publicados em alguma das edições da citada coletânea [Modinhas] organizada por Guimarães Martins” (op. cit., p. 151). Trata o pesquisador do fato de Condé utilizar principalmente modinhas de Catulo da Paixão Cearense59, assessorado por publicações da época em que escrevia, como a aludida por Tinhorão, ou ainda outras relacionadas a diversos intérpretes e compositores presentes em suas narrativas. Isso demonstra a preocupação de José Condé em realizar pesquisas para compor suas histórias, a fim de lhes garantir certa verossimilhança, não obstante algumas delas fossem, como ele mesmo dizia, “a lembrança do que minha cidade era para mim” (ENEIDA, 1962, p. 82). No restante do texto, Tinhorão aborda algumas questões ligadas ao estilo condeano de compor suas narrativas, realizando um passeio pelas principais obras do escritor caruaruense.

Tomaremos, agora, o artigo escrito por Gilberto Freyre, acerca do livro de José Condé Os Dias Antigos, lançado em 1955, em que o sociólogo pernambucano reflete sobre especificidades da novela enquanto gênero literário, citando Julián Marias Aguilera (1914-

59 A propósito, encontramos na biblioteca particular de José Condé um livro intitulado Modinhas, de Catulo da Paixão Cearense, embora sem sinal de ter sido lido, pois ainda estava com as folhas coladas.

2005) e apoiando-se no conceito de intra-história desenvolvido pelo escritor, poeta e filósofo espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936), para afirmar que “a novela obriga a uma maior fidelidade ao real, ainda que isto pareça paradoxal, do que a história convencional, cronológica”, ou seja, “sendo novela é só indiretamente história” (FREYRE, 1956).

Aproximando-se do objeto de análise, Freyre afirma:

realmente assim acontece quando a novela busca fazer ressurgir de uma época desfeita o seu espírito, a sua realidade ao mesmo tempo essencial e existencial, sem resvalar, é claro, no horrível da história ou da biografia romanceada. Sem procurar competir de modo intelectualmente desleal com o historiador ou o biógrafo. (FREYRE, 1956)

Reconhecendo o talento, nesse aspecto, de seu conterrâneo, Freyre conclui que José Condé consegue “evocar aspectos dramáticos de um trecho do passado brasileiro, através de uma arte que não se desvia do seu objetivo artístico ou literário para tornar-se sub-sociologia ou sub-história” (FREYRE, 1956).

Unamuno (1952, p. 28) utiliza a denominação “intra-história”, para se referir a aspectos menores, “não-oficiais” da vida convencional, que servem de referencial ou motivo arquetípico para as narrativas:

Sobre o silêncio [...] se apoia e vive o som; sobre a imensa humanidade silenciosa se levantam os que gritam na história. Essa vida intra-histórica, silenciosa e contínua como o fundo mesmo do mar, é a substância do progresso, a verdadeira tradição, a tradição eterna, não a tradição falsa que normalmente se vai buscar no passado enterrado em livros e papeis e monumentos e pedras.60

Um bom exemplo da aplicação desse conceito podemos perceber em Ginzburg (1987), na obra O queijo e os vermes, ao aproveitar-se dos depoimentos de um moleiro medieval condenado pela Inquisição por heresia para reconstruir a história de vida de uma comunidade, a partir do cotidiano simples de um trabalhador. Igual percurso faz Condé, ao aproveitar-se do dia-a-dia modesto de seus personagens para compor profundas reflexões de vidas e conflitos psicológicos, inerentes à própria humanidade, como podemos perceber no conto “O Negro”, de Os Dias Antigos, em que a lúgubre cena de um cachorro cego, numa madrugada, em companhia de um carcereiro que guarda o cadáver de um colega de farda

60 “Sobre el silencio [...] se apoya y vive el sonido; sobre la inmensa humanidad silenciosa se levantan los que meten bulha en la historia. Esa vida intrahistórica, silenciosa y contínua como el fondo mismo del mar, es la sustancia del progreso, la verdadera tradición, la tradición eterna, no la tradición mentira que se suele ir a buscar

assassinado, é motivo para esse pensar sobre a inutilidade da vida e a equiparação entre o ser humano e o mais reles animal:

De repente [o cabo Jotinha] avista o cachorro. Era cego de um olho, magro e leprento, e costumava perambular dia e noite pelas ruas da cidade. Jotinha já o encontrara inúmeras vezes. Tinha um modo esquisito de andar, com a cabeça pendida para o lado do olho bom, dando a impressão de que ia cair a qualquer momento. Pára diante da cadeia e fuça o chão aqui e ali, indeciso, sem saber se entrava ou não. Acaba desistindo. Volta-se depois na direção da cadeira, e vem deitar-se na calçada, de cabeça erguida, encara, meditabundo, o soldado, que faz o mesmo [animal e homem se equiparam]: examina-lhe a cara magra, as orelhas murchas, o olho cego de onde escorriam água e remela, e o olho bom, pousado nele com uma expressão quase humana. (...) Súbito, o focinho do cachorro transforma-se na cara do morto; ali estavam o rosto ensanguentado do defunto, um olho apenas entreaberto, o outro muito arregalado, fixando obstinadamente o teto. Jotinha se ergue dominado pela raiva e chuta com violência o traseiro do animal. Este, com um uivo, dispara rua afora. (CONDÉ, 1977, p. 148-9).

No Jornal de Letras, Mário de Souza Chagas, um dos mais próximos amigos de José Condé, a quem este confiava a revisão final de seus livros, faz uma análise psicanalítica de Vento do Amanhecer em Macambira, em que o protagonista empreende um surpreendente retorno ao seu passado, personificado na mulher amada a quem pretende reencontrar: Lívia é, na concepção de Chagas, a “anima onírica e arquetipal, recriada pelo talento vigoroso de José Condé” (CHAGAS, 1987).

De fato, Vento do Amanhecer em Macambira é uma das obras mais rebuscadas, do ponto de vista de sua elaboração, em que “a poesia, o fantástico e a realidade estão unidos de modo indissolúvel [...]. As pedras, as árvores, os bichos, as pessoas, todos têm uma significação especial, emocional, anímica, simbólica, por assim dizer” (Idem, ibidem), ressalta o articulista. Exemplificando essa universalidade da narrativa de José Condé, Souza Chagas revela: “A nossa Lívia de Macambira é a mesma Andrômeda, é a mesma Eurídice, é a mesma Biatriz, anima de todos os tempos” (Idem, ibidem). Eis um palpitante tema, a nos convidar a futuras incursões na obra do escritor de Caruaru.

O professor e crítico literário Kermógenes Dias (1918-1992), de reconhecido valor intelectual na comunidade acadêmica caruaruense – embora tímido demais para se fazer conhecido fora de sua região – é outro que tem uma vasta obra inédita ou apenas publicada em jornais, a carecer de divulgação e estudo. No jornal Vanguarda, de Caruaru, pouco mais de três anos após o surgimento de Terra de Caruaru, o Prof. Kermógenes publicou um artigo, que passamos a comentar, de forma breve.

Inicialmente, o articulista destaca a função do crítico literário ou do leitor de uma obra, ressaltando que “não cabe a quem faz a apreciação de uma obra literária censurá-la porque não está de acordo com os seus gostos e preferências” (DIAS, 1964, p. 5), e que é em função do objetivo do autor, da obra em si e da história que a compõe que a comentará. Apresenta teoricamente – embora sem a profundidade requerida para melhor compreensão, em função, cremos, da exiguidade de espaço do suporte em que o artigo foi publicado – as três dimensões do tempo psicológico numa narrativa, quais sejam a memória estática, a memória dinâmica (que apresentaria traços evolutivos no enredo, uma clara sucessão de acontecimentos) e a

antevisão profética (sobre o que nada comenta), ressaltando que “a dimensão de José Condé em Terra de Caruaru é principalmente a dimensão psicológica do tempo como memória estática” (Idem, ibidem). Explica que esta obra condeana, “no seu todo é antes uma evocação poética imobilizada. Dir-se-ia uma visão de cemitério ao luar” (Idem, ibidem).

Dias compara o estilo de José Condé ao de Machado de Assis e Graciliano Ramos, em se tratando de precisão e sobriedade, embora “sem a obscuridade das entrelinhas” destes; na “clareza, espontaneidade e certos processos de repetição”, assemelha-se a José Lins do Rego; enquanto que, no “emprego de certos termos [e] expressões populares lembra Jorge Amado”, completa o crítico.

Ao tratar do que chama de “parte emocional da obra”, Dias afirma que Terra de Caruaru é polifônica: “uma das habilidades do artista consiste em reger esta orquestra afetiva, sem entrar em conflito com o ritmo emotivo dos leitores, mas, ao contrário, produzindo neles um bem-estar que Aristóteles chama de purificação das paixões”. José Condé, segundo o autor do artigo, apresenta esse dom de orquestração dos sentimentos e paixões humanas, “daí porque o leitor de Terra de Caruaru mantém o seu ritmo afetivo em sintonia com o ritmo da obra” (Idem, ibidem).

Encerrando o artigo, Kermógenes Dias afirma não ter gostado do final do romance condeano, sugerindo que este deveria terminar algumas cenas antes, mas reconhece a autoridade do autor em escolher, ele próprio, o final que mais lhe convier, como, aliás, o articulista defende, no preâmbulo do seu texto, já referido acima.

Finalmente, registramos a palestra de Olimpio Bonald, transformada em artigo publicado no Jornal Vanguarda, de Caruaru, por ocasião da recente morte de José Condé. Num texto que passeia entre o confessional e o informativo, o argumentativo e o analítico,

que sua obra projeta, no plano da cultura internacional, as verdades da vida do seu povo”, numa clara referência ao que tratará, ao abordar a obra condeana, ou seja, a estreita relação existente entre as características das pessoas com as quais o escritor conviveu e convive, e a criação dos personagens e situações presentes em sua narrativa; “de seus livros saltam e gritam os personagens vivos da sua vida”, assegura o palestrante-articulista. Personagens principalmente de Caruaru, que, ainda de acordo com Bonald, depois de Condé, “passou a ter existência própria no universo cultural brasileiro” (BONALD, 1971, p. 3).

Analisando seu estilo, Bonald ressalta a segurança literária, oriunda da maturidade experimentada com relativa precocidade:

Com determinação e segurança, José recriou o universo agreste, utilizando as formas, os sons, a ação e as cores do século passado. Com a reconstrução histórica da sua terra, e com suas novelas e contos pitorescos, ele – maduro plenamente, senhor da sua técnica e de seus artifícios literários, feitor de suas lembranças e de seus duendes particulares –, fez curtas as rédeas da imaginação, domou sua obra para, sem se perder nas trilhas do memorialismo regional, interpretar suas memórias nordestinas. (Idem, ibidem)

São, aliás, praticamente estas as palavras de Bandeira (1968, p. 73), ao lembrar a capacidade de Condé em “tornar-se ‘puro’ no ato criador, livre de lembranças de memorialista ou de intenções documentárias”, embora reconheça que “Terra de Caruaru está cheia de Caruaru. Era inevitável. Mas se atentarmos bem para a estrutura da obra, veremos que nela, literariamente, a cidade é um meio, jamais um fim”. Este livro, conclui Bandeira (op. cit., p. 77) é, todo ele, como os “Choros” de Villa-Lobos, “um painel da ‘alma brasileira’”.