• Nenhum resultado encontrado

12 MUDANÇAS NA NARRATIVA

12.2 Caminhos trilhados

A história de Morris Lessmore consegue se mostrar impressionante nos três suportes em que se apresenta – se é que as versões animadas não superam a impressa. Em geral, quando se pensa em adaptações para o cinema, há quase sempre o consenso de que o livro é melhor que a versão cinematográfica, mais resumida e com roteiro modificado. Nem sempre é assim, claro, mas na maioria das vezes esta é a sensação do público e da crítica. Recentemente, por exemplo, a série televisiva do canal HBO Game of Thrones, baseada na saga As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin, foi criticada por muitos espectadores que haviam lido a saga por não ser fiel aos acontecimentos. O fato é que, em alguns momentos da história, o roteiro da TV já chegou ao mesmo ponto em que está a saga em papel – já foram escritos e lançados cinco livros impressos, de um total de sete previstos. Alguns personagens, por exemplo, já morreram na tela, só que continuam vivos no papel. O                                                                                                                

jeito é adotar a postura que alguns fãs já estão adotando: entender que se trata de duas experiências diferentes para um mesmo enredo.

Por que citar aqui Game of Thrones? Exatamente para buscar o mesmo mecanismo e raciocínio que deve ser aplicado aos livros digitais, especialmente os que são apresentados em mais de um suporte ou são adaptações de obras impressas: trata-se da mesma história, mas que se constitui por experiências diferentes, que podem ser todas agradáveis e, dependendo dos itens a serem avaliados, uma superar as outras.

Efetivamente, as obras que já existem em papel foram as preferidas das editoras brasileiras para criar seus livros digitais. No caso da Companhia das Letrinhas, a editora quis apostar em um livro de sucesso, porém, não foi apenas isso que motivou a escolha de Quem

Soltou o Pum? como o seu primeiro enhanced e-book, explica a editora de infantis, Julia

Schwarcz:

Queríamos fazer um livro digital como teste, para ter a experiência e poder entrar em contato com todas as questões envolvidas no processo. Escolhemos o Pum porque era o nosso maior sucesso em livraria e também porque o Lollo tinha experiência com animação por conta do seu trabalho com publicidade, o que ajudaria na elaboração dos novos desenhos que teriam movimento. E ainda porque achamos que a história dava margem para boas interações e pequenas ações acontecendo no pano de fundo.98

A escolha de A Menina do Narizinho Arrebitado pela Globo Livros tinha a ver com as comemorações de 90 anos da obra de Monteiro Lobato, uma vez que este era o primeiro livro infantil do autor. Talvez tenha sido escolhido também por ser um clássico, com história consagrada, pois já se sabe que dela o público gosta – esse raciocínio faz sentido, uma vez que o livro seguinte a ser foi uma história em quadrinho com as aventuras do Menino Maluquinho, sucesso entre as crianças. Não é a primeira vez na história do livro infantil que isso acontece. Quando a literatura infantil surgiu, não veio com criações novas, mas histórias já conhecidas, adaptadas para as especificidades das crianças. É o que conta Marisa Lajolo: “Pesquisas históricas parecem apontar que os pioneiros livros para crianças resultaram de re-

escritura, de re-criação. A hipótese é válida tanto para as antigas fábulas de Esopo, quanto

para as atuais adaptações e re-escrituras de clássicos”.99

A Melhoramentos, que estreou no mundo digital infantil com outro sucesso de Ziraldo, Os Dez Amigos, só lançou depois para tablet as aventuras do Peixonauta, personagem                                                                                                                

98  SCHWARCZ, Julia. Entrevista recebida por aryane.cararo@gmail.com em jul. 2014   99  LAJOLO, Revista Emília, ago. 2013  

de desenho animado que também tem muita audiência entre as crianças – e que tem livros impressos. Analisando, também, as adaptações para o meio digital que a editora Moderna fez, percebe-se que igualmente ela deu preferência a livros clássicos de seu catálogo, como Felpo

Filva, de Eva Furnari, O Grande Rabanete, de Tatiana Belinky, Por Enquanto Eu Sou Pequeno, de Pedro Bandeira e O Elefantinho Malcriado, de Ana Maria Machado – porém,

seu catálogo digital mais se parece com um ePub simples.

Ainda são raras as obras que nascem especificamente para tablet no Brasil. Depois que o boom da novidade e do encantamento passaram, as editoras que investiram rapidamente no novo suporte recuaram – ou, pelo menos, desaceleraram. Por serem caros de produzir e não existir um público ainda muito grande de usuários com aparelhos leitores digitais, os aplicativos de livros estão sendo feitos com muito mais cautela, em ritmo lento, para deixar que o mercado se estabeleça e possa aumentar o volume de venda – sem falar que a possibilidade de burlar o sistema e baixar os aplicativos sem pagar já é conhecida por uma parcela do público consumidor e desanima os atores literários, de autores a editores. Julia Schwarcz, por exemplo, explica que nunca houve a intenção de entrar, de fato, na produção de livros digitais, por isso não concorda que a Companhia das Letrinhas tenha “tirado o pé do freio” – ao menos não até agora.

O custo de produção desses livros ainda é muito alto no Brasil e as vendas são bem fracas, então fica inviável por enquanto. Estamos produzindo enhanced e-books de alguns dos títulos mais adotados da Letrinhas, para o uso em sala de aula. O governo alguma hora vai entrar nos digitais e precisamos estar preparados.100

O espaço deixado pelas editoras tradicionais acabou sendo ocupado por outras, quase desconhecidas e, em alguns casos, de qualidade duvidosa, que não preza pela leitura, a boa ilustração e o bom texto – e usa da interação apenas como, parafraseando Angela Lago, uns “sinozinhos que tocam”.

 

   

                                                                                                               

13 TENDÊNCIAS

Qual é, afinal, o caminho do livro digital? Que fórmula ele deve seguir?

Os caminhos são diversos, como já foi mostrado nesta dissertação. Este é um período para testar formas novas, já que não há um manual com receitas de sucesso. Com erros e acertos, livros mais ou menos vendidos, tentativas que se aproximam ora mais dos curtas animados, ora dos games e ora do livro de papel consolidado, as editoras vão tateando a escuridão que representa o futuro do livro digital interativo.

Elas já fizeram a opção de transposição do papel, apostando em obras clássicas ou sucessos editoriais, como as de Monteiro Lobato e Ziraldo, os contos de fadas e livros como o do cachorro Pum. Editoras foram criadas para o novo formato e lançaram até bons exemplos exclusivamente para o tablet. Outras foram formadas já com uma convergência total de mídias, como a Moonbot, que parece ser um caminho interessante de aproveitamento e divisão de linguagens entre os meios – e, mesmo assim, ela ainda está testando as possiblidades, a julgar por seu aplicativo Numberlys, que não segue a fórmula de The

Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore, usando muito mais animação automática e

interações pontuais com caráter muito acentuado de game, sendo menos livro do que animação interativa. E há quem preferiu a transposição de histórias e lendas para um formato mais próximo do curta animado, que tem como principal interação somente a passagem de páginas pelo leitor-espectador e a possibilidade de gravar com sua própria voz, como é o caso da editora Moving Tales – um desses exemplos é o aplicativo Unwanted Guest, uma adaptação de um conto folclórico judaico.

A verdade é que talvez esse seja o segredo do livro no tablet: não ter fórmula única. Ou seja, a possibilidade de ter muitos formatos possíveis, convergindo as linguagens de maneiras diferentes e agradando os mais variados consumidores. Que nome esses produtos diversificados e multifacetados vão ter? Talvez não seja possível classificá-los todos sob a classificação “livro”, pois algumas vezes eles estão mais para histórias animadas com legendas, como no caso de Unwanted Guest – mas, em muitos casos, são livros mesmo, como os apresentados nesta dissertação. Essa dificuldade em nomear os novos produtos que surgem com o tablet também passa pelos autores envolvidos nessa produção, como a escritora e ilustradora Angela Lago que, em entrevista concedida em 2013, expõe exatamente isso:

Também tenho minhas dúvidas do que vai ficar com o nome de livro ou não. Estamos num momento muito inovador, em que novas experiências estão sendo

feitas, mas não importa o nome, se vai ser chamado de livro ou de jogo ou de animação interativa. Eu não sei o que vai ser, mas gostaria que a criança tivesse chance de ter, em vez de uma, diversas experiências de leitura, uma delas sendo a da leitura aprofundada, com seu próprio ritmo, concentrada, sem nenhuma intervenção. Não importa o suporte.101

A dificuldade não está apenas no Brasil. Claire, da e-Toiles, comenta que, para ela, o

e-book não tem mais muito de um “livro” – considerando aqui que seus aplicativos são, de

fato, muito diferentes do formato tradicional de um livro. Em entrevista, ela diz que:

Deve-se cunhar um termo diferente, pois é, de fato, algo totalmente diferente! Nós o chamamos de livro porque ele ainda, no fundo, pretende ser “lido”, embora seja mais uma mistura híbrida de jogo e texto que definitivamente não, na minha opinião, fica no caminho do livro tradicional.102

Fato é que, independente da formalização do nome, esse é um formato que veio para ficar, e que tende a se tornar mais popular – muito embora, passada a euforia inicial, as editoras tradicionais de livros tenham desacelerado suas produções para caminhar com mais segurança. Apesar do grande avanço nas vendas de tablets e nos números de aplicativos, fazer um livro digital interativo continua um processo caro – em 2010 e 2011, um livro como A

Menina do Narizinho Arrebitado custava, em média, R$ 50 mil para ser produzido. Além do

preço, o desconhecimento e a base ainda baixa de consumidores, ainda que em crescimento, é um dos fatores apontados por Cardoso como motivos para essa desaceleração:

A editora [de livros tradicional] está tendo que lidar com essa demanda nova. Ela não tem um desenvolvedor interno, não conhece o desenvolvimento. Se fosse uma editora que já trabalhasse com multimídia... Poucas têm alguma coisa para audiobook, enciclopédia em CD-ROM... É um conteúdo caro e acho que ainda tem muito preconceito do mercado em relação a esse tipo de obra. O mercado ainda está entendendo como produzir e o público não conhece ainda, não está acostumado. Estamos vivendo uma mudança de hábito.103

Enquanto a literatura desacelera na busca de possibilidades mais vendáveis e de aumento da base consumidora, os livros didáticos avançam no uso dos recursos interativos como auxiliadores do ensino. Em vez de apenas ler uma letra de música do poeta Vinicius de Moraes, por exemplo, os estudantes poderão ouvir a música e assistir ao clipe.

                                                                                                               

101  Angela Lago em CARARO, 2013  

102  GERVAISE, 2014, por e-mail (tradução nossa)   103  CARDOSO, São Paulo, 2012  

Este avanço não é apenas com o ganho que se tem ao ter à disposição mais recursos para o ensino, mas na oferta de aplicativos para uso em sala de aula, que tende a aumentar muito com a decisão do governo brasileiro, através do Ministério da Educação (MEC), de comprar publicações multimídia a partir de 2015. Pelo edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), poderão ser inscritas obras que reúnam vídeos, áudios, infográficos, animações, mapas interativos, acesso à internet e, claro, texto escrito. Além disso, até fevereiro de 2013, o MEC já havia distribuído mais de 380 mil tablets nas escolas de ensino médio e pretendia atingir a marca de 600 mil até o fim daquele ano. O PNLD para 2016 já inclui os livros digitais para professores dos anos iniciais do ensino fundamental.

Enquanto isso, na rede de ensino privada, os tablets são apresentados aos pais como atrativos para a matrícula e os custos com os gadgets já são embutidos na mensalidade ou o equipamento é solicitado entre o material escolar. É, no mínimo, a base consumidora de produtos digitais aumentando – e as crianças, que já viam no tablet um artigo de desejo de consumo, cada vez mais familiarizadas com esse equipamento para leitura. As perspectivas para futuro são otimistas, se considerados os números de crescimento do mercado, seja de tablets, seja de aplicativos e livros digitais. O fato é que uma nova tecnologia demora anos para se estabelecer e popularizar – e esta não está tão ruim assim em meros quatro anos.