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5 UM LIVRO É DEFINIDO POR UM FORMATO?

Livro. Substantivo masculino. Definido pelo dicionário Caldas Aulete como:

1. Reunião de cadernos manuscritos ou impressos, cosidos ou colados por uma das extremidades e brochados ou encadernados.

2. Obra literária, artística ou científica reunida em um ou mais volumes. 3. Essa obra em qualquer suporte (disquete, CD etc.).

4. Cada uma das partes em que se divide uma obra de grandes proporções. 5. Tudo que ensina ou instrui como se fosse um livro.25

É ideia ou suporte? É conceito, obra inspirada da imaginação ou papel? Nem mesmo a definição de livro no dicionário – neste caso, o Aulete, mas qualquer outro vai trazer as mesmas idiossincrasias – chega a um veredito. Embora sua primeira definição seja a clássica, os significados apresentados abrem espaço para o entendimento do livro como obra que ultrapassa a plataforma em que está inserido, podendo estar em um disquete, um CD – ou um tablet, por que não? No entanto, no imaginário popular, impera ainda a figura do livro como aquele objeto de capas que encerram em seu miolo folhas escritas, às vezes acompanhadas de fotos e, se for dirigido à crianças, de ilustrações.

Mas, se um livro é definido por um formato, que formato exatamente é este? Retangular? Mas retangular com que lado maior, o vertical ou o horizontal? Poderia ser quadrado? Será que existiriam livros redondos? Sim, todos eles existem e consistem em interessantes experimentações com o “formato”, revelando que os livros não seguem um padrão estritamente definido. E, mais, a cada mudança de formato revelam um diálogo ainda mais próximo e diferente da obra com o leitor.

Não apenas a história dos livros pop-up nos mostra isso, como a dos livros ilustrados tidos como “normais” ou tradicionais. Entre um dos exemplos mais representativos, está O

Livro Inclinado (1910), de Peter Newell (1862-1924), que, como o próprio título alerta, tem

formato inclinado – em seu enredo, um carrinho de bebê desgovernado desce a ladeira, passando por cima de muitos personagens e provocando muita confusão. É de Newell também

O Livro do Foguete (1912), com a aventura de um menino que acende um morteiro no porão

do prédio e acaba perfurando todos os andares do edifício com o projétil – o próprio livro vem com um furo da capa ao fim. Não é por acaso que Newell entrou para a história como

                                                                                                               

precursor do livro-objeto, uma categoria chamada assim por romper com as barreiras tradicionais do formato de um livro.

O italiano Bruno Munari levou esta discussão sobre o formato de um livro ainda mais a fundo. Sua obra Livros Ilegíveis (1955) discute não só a aparência – afinal, fechada, ela não é tão diferente assim dos demais que seguem o códex –, mas põe foco na essência do que seja um livro. Com dobras diametralmente opostas entre si, espessuras diversas e páginas coloridas, cada página tem um sentido de leitura diferente. Contudo, não há o que ser lido. Pode um livro não ter palavras nem imagens? Existe leitura onde não existe nem texto nem ilustração? Munari mostrou que sim, há ali uma leitura a ser feita, uma terceira linguagem que ultrapassa o objeto. Uma linguagem que advém do suporte. Posto isso, é preciso dizer que o suporte também comunica. E que a experiência com o livro não vem apenas da visão. Tocar, tatear, apertar, apontar, todas essas ações fazem parte dessa experiência de leitura, ou seja, o movimento do leitor também é intrínseco ao ato de ler – porém, apenas alguns autores usam essa linguagem na confecção de suas obras de papel.

Munari também deixou outra lição: não há linguagem mais importante que outra. Para a criança, muitas vezes, a ilustração será mais importante que o texto. Em outras, a experiência de virar as páginas, mexer e movimentar alavancas, nos casos de livros pop-up, talvez venham antes que a própria história ali contida.

Entre livros contemporâneos de formato diferenciado bem-sucedidos, pode-se citar O

Povo das Sardinhas (de 2004, publicado no Brasil em 2007 pela Cosac Naify), da francesa

Delphine Perret, que reproduz a embalagem de uma lata de sardinha no papel, a envelopar o livro de dimensões reduzidas – e brinca com a ideia dizendo neste invólucro frases como “Consumir de preferência numa poltrona” e “Ideia fresca da melhor qualidade como ingrediente”.

José Manuel Mateo e Margarita Sada fazem um bom trabalho em Tudo Depende (2007), um livro comprido com diálogos entre pai e filha sobre a relatividade das coisas, como um chiclete que é uma delícia na boca, mas um azar se estiver grudado no sapato. Nele, até a leitura é relativa: é preciso girá-lo para conseguir ler as frases e, ao mesmo tempo, visualizar como ficam as disposições dos desenhos quando se vira a página.

A visualização do que se trata o livro é ainda mais imediata em Futebol (2010), de Tim Hankey: em formato de bola, a obra não só é redonda como a capa é recoberta de um material semelhante ao usado na confecção de bolas de futebol efetivas, inclusive com o relevo dos gomos. Aliás, o formato redondo já havia sido explorado, por exemplo, por Caulos

em O Livro Redondo (2010), reunindo uma série de objetos redondos em seu interior. Caulos fez também O Livro Quadrado (2010), O Livro Comprido (2010) e O Livro Estreito (2010).

Do suíço Davide Cali e do francês Serge Bloch, há o sensível Fico à Espera (2007), que vem em formato de envelope, como se o livro fosse uma carta. Neste, ao contrário do livro de Delphine Perret, não há uma sobrecapa ou um invólucro, a própria capa é que tem formato e desenho de um envelope. A obra conta a trajetória da vida de um homem, da infância à velhice, como quem está à espera de uma carta chegar. O inglês Saki também transporta os leitores a uma história que se passa num vagão de trem durante a era vitoriana – e o próprio livro vem em formato de locomotiva, com uma sobrecapa de janelas vazadas, como se o movimento de retirá-lo deste “envelope” já desse movimento para a história começar.

Não faz muito tempo, a argentina Isol lançou um livro de formato muito peculiar: o de calendário. Montado de forma triangular, Nocturno: Recetario de Sueños (2011) tem amarração de arame na parte superior e, não bastasse a inovação no formato, Isol ainda fez o livro com uma tinta especial que é revelada no escuro, se exposta à luz de uma lanterna, por exemplo – a ilustração escondida mostra o mundo da fantasia, dos sonhos.

E não poderia ficar de fora desta lista a sul-coreana Suzy Lee, com os livros Espelho (2003), Onda (2008) e Sombra (2010), uma espécie de trilogia que, depois, foi amarrada em um livro da própria Suzy que explica os três anteriores: A Trilogia da Margem (2012). Nesta obra, Suzy conta como subverteu e ultrapassou a margem que divide as duas folhas do livro, brincando e experimentando em cada um dos três o mesmo formato, porém, em diferentes posições, disposição e fluxo de leitura – um é horizontal, outro vertical e o terceiro é horizontal, mas abre as páginas de baixo para cima, não do lado direito para o esquerdo. Em entrevista que ela concedeu a mim, Aryane Cararo, em 2012, para o jornal O Estado de

S.Paulo, Suzy explica:

Eu me interesso pelo formato do livro como meio de arte. Naturalmente, estou lidando com os elementos de um livro quando o faço: quatro cantos, capa grossa, linha de encadernação… Um livro tem muito mais de um "objeto" a ser pensado como uma tela que projeta uma história. Leitores tendem a ignorar a linha de encadernação. Mas, e se essa linha não fosse censurada, mas incorporada? E se os componentes físicos do livro se tornassem parte da história? E se o livro, por si só, se tornasse parte da experiência de leitura? Eram questões que eu queria responder.26

                                                                                                               

26  CARARO, A. Suzy Lee brinca com a linha que divide a fantasia da realidade. O Estado de S.Paulo, São

Dessa forma, fica claro que não há um formato único para a entidade livro. Ao longo dos anos, muitas experimentações foram feitas, de modo a brincar com a materialidade do suporte: suas bordas, sua linha divisória, seu formato. O tablet, em si, não permite um formato diferente do retangular a que o gadget impõe às obras, mas como plataforma, estabelece outras possiblidades de brincar com suas características intrínsecas, como o áudio, o vídeo e a sensibilidade ao toque. Afinal, se não há formato único e restrito para o livro, por que ele não pode ser eletrônico também? E se as especificidades do suporte podem emprestar elementos para a história e fazer parte da experiência de leitura, por que não usar as do tablet?