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As obras móveis ganham novo público

4 OS LIVROS MÓVEIS E POP-UPS: AVÓS DOS TABLETS

4.1 As obras móveis ganham novo público

Até então, apenas os adultos se beneficiavam deste tipo de interatividade. Foi só no século seguinte que os livros pop-up dedicados às crianças apareceram, como uma forma de “brincar” com a leitura para este público. Não é de se espantar. Afinal, o livro voltado aos pequenos leitores, de modo geral, passa a “existir” para as editoras apenas nesta época, quando o avanço das técnicas de reprodução permitiu a profusão de edições e impressões, vendidos a um preço acessível, e um olhar mais cuidadoso para outros públicos, especialmente o infantil, que começava a ganhar relevância como mercado consumidor – em especial, o de brinquedos e diversão.

O primeiro livro infantil móvel, por assim dizer, foi produzido na Grã-Bretanha em 1766 por Robert Sayer (1725-1794), na Fleet Street, em Londres. Seus livros eram uma espécie de folha única de papel impressa, dobrada em quatro, com abas sobrepostas e, conforme as partes da imagem eram puxadas para cima ou para baixo (como se abrissem uma

“janela”), as ilustrações mudavam – algumas vezes, radicalmente. Por causa disso, Sayer chamou suas obras de “metamorfoses” – embora elas tenham ficado conhecidas hoje também como livros “turn-up” ou, mais comumente, “harlequinades”, tendo em vista que o Arlequim era o personagem central de uma série de histórias. Esses exemplares eram pequenos, quase como panfletos, vendidos a um módico valor e compostos de quatro partes ou seções e, cada uma tinha duas abas – fechadas, mediam 185 mm x 80 mm de área ilustrada e, abertas, ficavam com 185 mm x 325 mm.

Este tipo de interatividade fez tanto sucesso que várias editoras, não só da Inglaterra, copiaram a ideia, seja para contar histórias populares com lições de moral, como nas republicações de O Peregrino, do pastor londrino John Bunyan (1628-1688), ou mesmo para relatar as aventuras de Arlequim. Somente na Inglaterra, quase 50 títulos desse tipo foram produzidos nessa época, mas pouco permaneceu como registro. Sabe-se, no entanto, que eles atendiam a um mesmo propósito: instrução ou aperfeiçoamento moral. Não se destinavam, portanto, à diversão das crianças – não pelo menos até o começo do século XIX.

No contexto dos livros móveis, os harlequinades podem ser considerados como uma mídia de transição, já que sua funcionalidade dependia exclusivamente da interação com o leitor, que levantaria ou abaixaria suas abas – sempre, é claro, sob a sugestão do narrador que indicava a abertura ou não dessas partes inteiras.

Propostas diferentes deste tipo de interatividade começaram a aparecer nos anos 1790, com as bonecas de papel. Em geral, a “boneca” era impressa somente com as roupas de baixo e as articulações do corpo eram conectadas por fios. Várias opções de vestidos e chapéus vinham junto com cada uma. Em 1810, essas bonecas de papel e suas combinações de roupas e acessórios coloridos à mão começaram a vir em livros produzidos pela empresa londrina de brinquedos S. & J. Fuller. Cada pequeno livro deste contava uma história em versos referente à tal boneca, que deveria ser vestida de acordo com o que dizia o enredo – em geral, eram contos com lições de moral, sendo um dos mais conhecidos Little Fanny (1810). Diferentes das primeiras bonecas de papel, as de Fuller tinham somente cabeça e pescoço, e não o corpo inteiro. Porém, como eram caras, acabaram circunscritas a um círculo pequeno de leitores.

Isto não aconteceria com o tipo de livro que viria a seguir, e que teve muito sucesso na década de 1820: os “toilet books”. Eles apresentavam também outra forma de interação com o leitor que não era apenas a de levantar “páginas” inteiras de papel, mas lembravam muito o que era feito em tratados anatômicos dos séculos XVI e XVII: abas menores, restritas a uma parte apenas da ilustração, que revelavam detalhes internos de um único objeto. Um bom exemplo disso foram as obras do pintor inglês William Grimaldi (1751-1830) que, ao

perceber a grande quantidade de itens de toalete de sua filha, decidiu produzir The Toilet, publicado por seu filho Stacey em 1821. Esta publicação curiosa reproduzia itens de toalete feminina e, por trás de espelhos, perfumes, caixas de joias, rouges ou outros artigos de cuidados pessoais, havia palavras de virtudes e boa educação para as meninas e moças, como “humildade”, “atenção ou “recato” – bastava, para isso, apenas levantar a aba da ilustração de um objeto. Os “toilet books” foram tão populares que inspiraram muitos outros nesta linha de virtudes para o público feminino. Eram livros que continham lições de moral, claro, mas acabaram sendo limítrofes entre uma atitude puramente educativa e outra que pendia para o entretenimento.

A existência de abas e outras partes móveis nos livros dos séculos passados nos lembra que a interatividade não é um fenômeno novo, e que um componente interativo, ou uma interface, tem sido uma parte dos livros muito antes da invenção da mídia digital. A bem estabelecida conexão entre ver e entender tem influenciado como nós nos comunicamos, ensinamos e apresentamos uma informação; baseando- se nas relações entre o visual, o cognitivo e o tátil, as abas são exemplos de ferramentas de aprendizado interativo e multifacetado, e nos lembram do contínuo desafio de comunicar não apenas pelas palavras, mas também através de imagens e da interação com o leitor. No ambiente digital as abas também permitem interação com o leitor, embora o contato físico entre o leitor e a página seja substituído por um clique do mouse ou um touch-screen; além disso, a digitalização das abas eliminaria o potencial de perda ou dano físico. O meio digital é mais dinâmico que o impresso, e o movimento é tanto mais facilmente realizado como menos traumático para a página. Porém, a interface digital também age como um mediador onde previamente nada existia; incompatibilidades técnicas como o sistema de operação escolhido ou a largura de banda limitada para materiais online podem proibir o uso dos componentes móveis do livro. A experiência do leitor com um volume impresso é, claro, livre dessas complicações.

[...] Embora os meios digitais tenham redefinido drasticamente o poder e o potencial do texto, a ideia de movimento, interação com o usuário, e empurrar as bordas de uma página estática ao contrário tem uma longa e variada história que vale a pena analisar e compreender. As abas são, contudo, uma importante parte dessa história.24 Apesar de os Grimaldi terem sido apontados por alguns historiadores como os primeiros a criar livros móveis para as crianças de fato, quem reivindicou os louros por isso foi a empresa londrina Dean & Son, instalada na Ludgate Hill – fato é que, com eles, os livros móveis foram produzidos em grande escala, como nunca antes. A editora, que publicava livros escolares, cartilhas e artigos bíblicos, resolveu expandir seu alcance e, 30 anos depois dos Grimaldi, investiu em livros com ilustrações que eram animadas quando o leitor puxava uma pequena aba, como se fosse uma alavanca – e, desta forma, os personagens se moviam e agiam conforme a descrição da história. Entre suas obras mais conhecidas estão Moveable

Book of Children Sports and Pastimes, de 1857, e Dean's Moveable Dogs' Party, de 1860.

                                                                                                               

Esses livros eram todos coloridos e montados à mão. Dean também foi o introdutor do método “jalousie”, que lembra muito o funcionamento de uma cortina veneziana. As ilustrações eram divididas em três, quatro ou cinco partes horizontais e, quando uma aba era puxada, a imagem era substituída por outra oculta e o desenho mudava.

Ao sucesso de Dean & Son, uniram-se muitas outras editoras, como Darton, Ward Lock & Co. e Raphael Tuck & Sons, todas com novidades semelhantes, mas nenhuma tão à altura quanto a última. Os Tuck, também de Londres, produziram nos anos 1870 artigos de luxo, quebra-cabeças, scrapbooks, bonecas de papel e uma série (With Father Tuck...) com efeitos tridimensionais, toda impressa na Alemanha, que mostrava superioridade em técnicas e equipamentos e obras de melhor acabamento.

A concorrência fez acirrar a disputa por novidades e, além das abas de puxar (“alavancas”), surgiram os peep-shows – livros em camadas, que se abrem como uma sanfona e formam uma espécie de túnel, no qual o leitor visualiza a história por um buraco na frente, no que seria a capa, e que podem ter evoluído de apresentações de showmen em feiras e festivais – e os exemplares que, ao serem abertos, ficam muito semelhantes a um carrossel, como se fossem um palco tridimensional.