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3 BREVE PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL

3.1 Os nomes que mudaram a literatura infantil 1 Charles Perrault

3.1.3 Hans Christian Andersen

Paralelo a este movimento, na Dinamarca outro autor escrevia seu nome na literatura infantil mundial. Hans Christian Andersen (1805-1875) era filho de sapateiro e teve uma infância muito pobre, que marcou profundamente sua obra, com histórias tão tristes quanto A

Menina dos Fósforos e O Valente Soldadinho de Chumbo. Na infância, seu pai lhe ensinou a

fazer teatrinho de papel em caixas de sapatos, gosto que ele nunca perdeu ao longo da vida e que o fez ser muito próximo das crianças, inclusive. Andersen trabalhou como aprendiz de alfaiate, operário em fábrica de fumo, cantor e ator.

                                                                                                               

Quase todos os seus contos foram por ele inventados e alguns tinham bastante fundo autoral, como O Patinho Feio, já que ele mesmo se achava feio e desengonçado – de 156 narrativas, menos de um terço delas vem da tradição oral, o restante foi por ele criado. Nos seus textos, não poupou as crianças das tristezas e das dificuldades, pois acreditava que elas eram capazes de lidar com a dor e a sensação de deslocamento, mas, ainda sim, suas histórias sempre traziam a superação da dura situação vivida, como Ariel, em A Pequena Sereia, que realiza o sonho de viver entre os humanos. O trabalho de Andersen foi tão importante que na data de seu nascimento, 2 de abril, o mundo hoje celebra o Dia Internacional do Livro Infantil, além de o escritor dar nome ao mais importante prêmio na categoria.

A segunda metade do século XIX foi bem próspera para a literatura infantil, que teve a confecção de muitos clássicos, como Alice no País das Maravilhas (1864), de Lewis Caroll, A

Ilha do Tesouro (1882), de Robert L. Stevenson, e Pinóquio (1881), de Carlo Collodi. Como

se pode perceber, não havia mais moral nessas novas obras – e algumas eram tão ricas e densas que exigiam da criança não só lógica dedutiva como muita abstração nonsense.

Este momento especial da literatura infantil, que havia se desgarrado da educação como único fim, coincidiu com o contexto de Revolução Industrial na Inglaterra (séculos XVIII e XIX), que modificou o tratamento dado ao livro para crianças: ele passou a ser um produto, ou mais precisamente, um produto cultural. Nessa época, a infância já estava bem demarcada – as crianças tinham roupas adequadas a suas idades e especificidades e ganhavam brinquedos. Com a expansão do mercado, e as novas tramas, as obras deixaram de ser portadoras apenas de contos de fadas – surgiram os livros para alfabetizar, os de história natural, de matemática, as cartilhas.

3.2 Ilustração

Mas o século XIX não trouxe apenas diversidade de temas aos livros, ele também mudou a apresentação do que se conhecia por livro infantil: as ilustrações, antes restritas a xilogravuras, ganharam técnicas novas e um universo se abriu para a produção do livro ilustrado – conceito mais apropriado para a literatura da atualidade do que propriamente literatura infantil, uma vez que inúmeras obras ultrapassam as barreiras da idade.

Antes, porém, de seguir caminho, faz-se necessário retornar um pouco na história para contar como se deu esta evolução, já que ela abre caminho para algo que será muito

importante para os livros digitais: a criação de uma nova forma de leitura, não mais apenas textual, mas visual. E, com este precedente, compreende-se hoje que a leitura é uma experiência rica, que pode ser apenas textual, e que também pode ser visual, tátil e interativa, já que todos eles atribuem sentido.

No século XVI, a principal forma de gravura era realizada com cinzel ou ácido sobre cobre, entalhando o material. Como o texto era impresso utilizando relevo, uma técnica oposta, ilustração e palavras não podiam ser feitos juntos e acabavam sendo impressos até mesmo em ateliês diferentes, o que também justificava um menor número de imagens. Somente em 1770 a ilustração começou a ser realizada em relevo, devido ao método de xilografia proposto pelo inglês Thomas Bewick (1753-1828), o que facilitava, de certa forma, a produção do livro no mesmo local.

No final do século XVIII, surgiu também a litografia, desenvolvida pelo checo Aloysius Senefelder (1771-1834), que tornava possível desenhar sobre a pedra com lápis, penas e pincel. Mas a primeira vez em que texto e ilustração ganharam igual peso na obra parece ter sido com o artista gráfico e escritor Rodolphe Töpffer (1799-1846), em 1835, em Genebra, que considerava seus livros de “natureza mista” – não à toa, ele foi considerado como um dos pioneiros dos quadrinhos.

Poucos anos mais tarde, na Alemanha, o médico Heinrich Hoffmann (1809-1894), querendo presentear seu filho de três anos no Natal de 1844, não encontrou um livro que pudesse ser divertido, sem ser moralista ou entediante, com muito texto, que ele não considerava adequado para crianças, especialmente as da idade de seu menino. Por isso, comprou um caderno e fez ele mesmo a história para o filho: João Felpudo, que acabou sendo publicado no ano seguinte, com um bom casamento entre narrativa verbal e desenhos.

Com o avanço das técnicas de impressão, facilitando progressivamente a publicação de texto e ilustração na mesma página, os livros ilustrados – e não livros com ilustração – começaram a aparecer cada vez mais. Destaca-se, aqui, o esforço do editor francês Pierre- Jules Hetzel (1814-1886) nos anos 1860, com os álbuns Stahl que geraram La Journée de

Mademoiselle Lili (1862), que tinham imagens intercaladas por textos na mesma página.

Assim também é Max und Moritz (1865), obra do alemão Wilhelm Busch (1832-1908), que no Brasil foi traduzida como Juca e Chico – pela boa combinação das narrativas textual e visual, Busch é considerado um dos precursores dos quadrinhos modernos.

Mas foi na Inglaterra que a produção em larga escala permitiu maior investimento na ilustração, e isso fez aparecer um batalhão de bons ilustradores e técnicas variadas nos livros ilustrados. Entre eles, pode-se citar John Tenniel (1820-1914), que ilustrou Alice, Walter

Crane (1845-1915), que fez desenhos para histórias dos irmãos Grimm, entre outras, Kate Greenaway (1846-1901), que criou ilustrações para Mother Goose, Randolph Caldecott (1846-1886), que foi tido como o “inventor do livro ilustrado moderno” por Maurice Sendak e que tinha um cuidado especial para entrelaçar palavras e desenhos, e Beatrix Potter (1866- 1943), que criou Peter Rabbit e trazia suas histórias em minilivros, propondo uma formatação muito diferente para suas obras a fim de as crianças segurarem os volumes com mais facilidade.

Aliás, o suporte e seus recursos visuais também fascinavam Crane e Kate, que haviam ilustrado vários toy books para a Evans, uma das editoras pioneiras na Inglaterra na arte dos livros móveis e que tratava tais títulos como obras de arte (veja mais esforços neste sentido no capítulo seguinte, sobre livros pop-up). Os livros-brinquedo e os móveis tiveram papel importante para os livros ilustrados ao chamar a atenção para o aspecto estético da obra.

O século XX entrava promissor para a literatura infantil, no entanto, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) freou todos os ânimos. É em 1919, logo após o fim dos combates, que novidades surgem: pela primeira vez, a ilustração aparece com predominância sobre o texto, com os chamados livros de artista. Isso ocorreu com o livro Macao et Cosmage, de Edy- Legrand (1892-1970), com texto curto, formato quadrado e uma diagramação que colocava ainda em mais evidência as imagens. Há quem considere esta obra como o começo do livro ilustrado contemporâneo infantil. Porém, na verdade, era um título que não se limitava aos pequenos: embora dirigido às crianças, também se propunha a servir como entretenimento adulto.

Com o francês Jean de Bunhoff (1899-1937), a relação entre ilustração e suporte ganharia outra dimensão – não só porque seus livros eram grandes para fazer jus a seu personagem Babar, criado em 1931, mas porque ele ultrapassou linha que separava o miolo do livro e fez suas ilustrações extravasarem por toda a página dupla. Tudo parecia engrenar novamente, contudo, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) congelou todas as produções.

Depois da guerra, em razão das condições da matéria-prima das gráficas, da morte de grandes ilustradores ou da lei da censura de 16 de julho de 1949 – que proibia a publicação de toda e qualquer imagem de violência ou racismo –, os livros para criança são relegados a segundo plano.17

Desvinculado do público infantil, o livro ilustrado continuou avançando com editores como Robert Delpire (1926-), que não mirava crianças ou jovens na sua tentativa de dar mais                                                                                                                

espaço para as imagens no livro. Assim, ele publicou Les Larmes de Crocodile (1956), de André François, que vinha numa caixa comprida que imitava a caixa de crocodilo do interior do livro.

O fato de Delpire levar em conta a materialidade do livro e o cuidado dispensado ao conjunto de seus componentes – até mesmo à tipografia, sobre a qual se debruça em especial – anunciam a importância do aspecto visual nos livros ilustrados contemporâneos.18

As décadas de 1950 e 1960, aliás, foram marcadas sob o signo do design. Neste sentido, há de se destacar o trabalho dos italianos Bruno Munari (1907-1998) e Enzo Mari (1932-), que usam recursos tipográficos, de papelaria, de encadernação e da estrutura do livro para constituir suas narrativas. Há em seus livros transparências, rasgos, recortes, buracos, sobreposições... O livro como objeto é mais um passo na direção de diversificar os formatos de apresentação de uma obra. E, ao contrário do que possam ter pensado escritores e críticos literários no início, pode proporcionar uma boa experiência, como diz Sophie Van der Linden: “Não acredito que a materialidade do livro ilustrado o desvie de seus princípios de funcionamento e, embora possa enriquecer suas possibilidades, é raro que as limite, desde que o suporte tenha sido bem pensado já na fase de concepção”19.

Nos anos 1960, quem também modificou substancialmente a concepção de imagem para livros ilustrados foi Maurice Sendak (1928-2012), com a obra Onde Vivem os Monstros (1963) e sua representação visual do inconsciente infantil.

Sendak não foi o primeiro autor-ilustrador a superar as fronteiras entre o entendimento adulto e os livros destinados a crianças, mas seu sucesso ao fazê-lo assinalou um novo momento no desenvolvimento dos livros para criança na década de 1960. Se algumas crianças leitoras (ou ouvintes) e adultos com mentalidade convencional consideram as obras perturbadoras, muitos outros apreciam o modo como elas sugerem uma grande quantidade de assuntos, que costumam ser excluídos de outras representações dos mundos físico e mental. Sendak descobriu que podia reconstruir de forma imaginativa os sentimentos suprimidos da primeira infância, indo além das questões de ‘bom gosto’ e relacionando a escrita de livros para criança a um universo tão amplo quanto o da literatura adulta.20

A partir da década de 1960, a literatura vê surgir uma série de livros ilustrados diferentes na proposta e no formato: livros-fotográficos, livros-imagem, livros de artistas plásticos... Não se concebe hoje o livro infantil sem ser o livro ilustrado, especialmente para                                                                                                                

18  LINDEN, 2011, p. 17   19  Ibid, p.51  

as crianças que estão em fase inicial de alfabetização (e até mesmo antes dela). Esse cuidado com a estética, como já dito, é um passo que permite tirar o olhar apenas do texto como elemento constituinte ou importante de um livro, e abre caminhos para enxergar além das imagens: o formato, o propósito...

Recentemente, uma das melhores brincadeiras, que envolve não só formatos, como o próprio papel e os livros digitais, foi feita por Hervé Tullet (1958-). Aperte Aqui (2010), que no original francês leva o título de Le Livre, ou simplesmente O Livro, tem design minimalista que reproduz três bolinhas nas cores amarela, vermelha e azul ao longo de todo o volume. Parece simples, mas convém não subestimar.

Já na primeira página, onde se vê apenas a bola amarela no centro, Tullet convida o leitor a apertar e virar a página. Ao virar, há duas bolas amarelas, como se o ato anterior tivesse provocado esta multiplicação. Quando são três as bolas amarelas, o autor pede que o leitor esfregue a da esquerda e, ao virar a folha, está lá a transformação: a bola amarela virou vermelha! Em outra parte, a pessoa é convidada a chacoalhar o livro e as bolinhas, que estavam restritas à página do lado direito, como num passe de mágica, se espalham por toda a página dupla seguinte. Não é exatamente assim que funcionam os livros nos tablets?

O caráter ímpar dos livros ilustrados como forma de arte baseia-se em combinar dois níveis de comunicação, o visual e o verbal. Empregando a terminologia semiótica, podemos dizer que os livros ilustrados comunicam por meio de dois conjuntos distintos de signos, o icônico e o convencional. [...] A função das figuras, signos icônicos, é descrever ou representar. A função das palavras, signos convencionais, é principalmente narrar. Os signos convencionais são em geral lineares, diferentes dos icônicos, que não são lineares nem oferecem instrução direta sobre como lê-los. A tensão entre as duas funções gera possibilidades ilimitadas de interação entre palavra e imagem em um livro ilustrado.

[...] Cada nova leitura, tanto de palavras como de imagens, cria pré-requisitos melhores para uma interpretação adequada do todo. Presume-se que as crianças sabem disso por intuição quando pedem que o mesmo livro seja lido para elas em voz alta repetidas vezes. Na verdade, elas não leem o mesmo livro; elas penetram cada vez mais fundo em seu significado. É muito comum os adultos perderem a capacidade de ler os livros ilustrados dessa maneira, porque ignoram o todo e encaram as ilustrações como meramente decorativas. É quase certo que isso esteja relacionado com a posição dominante da comunicação verbal, particularmente a escrita, em nossa sociedade, embora ela esteja em declínio em gerações educadas na televisão e agora nos computadores.21

E, agora, é necessário ainda acrescentar os smartphones e tablets, que estão educando uma geração não só para a comunicação verbal, mas para uma que é multifacetada, multimídia e interativa.

                                                                                                               

21  NIKOLAJEVA, M. e SCOTT, C. Livro Ilustrado: Palavras e Imagens. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.