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6 OS LIVROS DIGITAIS: ORIGEM E CARACTERÍSTICAS

6.2 O texto eletrônico

Todos esses veículos descritos anteriormente podem, é claro, ser classificados como portadores de textos eletrônicos. Mas, embora levem o mesmo nome, são muito diferentes entre si e merecem subdivisões. As diferenças entre os e-books e os enhanced e-books, que derivam respectivamente dos e-readers e dos tablets, serão melhor abordados no próximo capítulo. No entanto, há de se explicar um pouco mais sobre o livro no computador, que, embora tenha características bem diferentes dos e-books, possui as mesmas potencialidades dos livros nos tablets – e que podem servir para guiar o livro digital interativo para uma outra dimensão, menos dependente do formato do códex, como se dirá mais para a frente.

Com o acesso à internet e a possibilidade de trabalhar em rede, conectando-se com diversas partes do mundo, o livro no computador, ou melhor, na web 2.0, permite não só o acesso à leitura a mais pessoas, como também o acesso à produção, numa construção conjunta

da obra. Não apenas isso: os comentários dos leitores sobre as obras podem ser compartilhados, lidos por outros. O leitor não precisa necessariamente colaborar com livros de outros, ele pode virar o autor de sua própria obra. Para isso, ele tem à disposição os blogs, o Tumblr para uma narrativa mais visual e até mesmo páginas no Facebook (não seu perfil na rede social) – todas com a vantagem da gratuidade de publicação. E, ali, uma relação muito diferente com os seus leitores e com a própria narrativa.

Para Chartier (1998), não só o texto eletrônico permite intervenções muito mais numerosas, como também mais livres do que as formas tradicionais do livro, o impresso – que reservava ao leitor apenas as margens, com apontamentos nos espaços em branco, na periferia do papel. Com o computador como suporte, ele agora está convidado a interagir e a intervir mais diretamente, ele está no centro, não mais nas beiras – que é o que também acontece nos livros digitais para tablets.

É principalmente devido a essas características que Chartier considera esta, sim, uma “revolução” – ele se refere, claro, ao texto na internet –, pois traz uma ruptura ainda mais abrupta do que aconteceu no início da era cristã, entre os séculos II e IV, quando os leitores tiveram de se desligar da tradição do livro em rolo para ler o códex, da mesma forma como foi complicado para os leitores europeus se adaptarem a uma circulação mais efêmera e efervescente do impresso no começo do século XIX. Ele diz: “Esta revolução, fundada sobre uma ruptura da continuidade e sobre a necessidade de aprendizagem radicalmente novas, e portanto de um distanciamento com relação aos hábitos, tem muito poucos precedentes tão violentos na história da cultura escrita”.28 Por que essa ruptura é tão violenta? O que há de tão diferente na maneira de ler? Chartier explica:

O fluxo sequencial do texto na tela, a continuidade que lhe é dada, o fato de que suas fronteiras não são mais tão radicalmente visíveis, como no livro que encerra, no interior de sua encadernação ou de sua capa, o texto que ele carrega, a possibilidade para o leitor de embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos na mesma memória eletrônica: todos esses traços indicam que a revolução do livro eletrônico é uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler.29

Para Chartier, o leitor do texto eletrônico, ou seja, da tela é uma mistura de todos os demais leitores da Antiguidade. É um pouco como o leitor de rolo, pois o texto corre numa barra de rolagem, um pouco como o leitor medieval ou do livro impresso, que pode usar referências como paginação e recorte de texto, mas tem mais liberdade. “O texto eletrônico                                                                                                                

28  CHARTIER, 1998, p. 93   29  Ibid, p.13

lhe permite maior distância com relação ao escrito. Nesse sentido, a tela aparece como ponto de chegada do movimento que separou o texto do corpo”.30 Ainda é difícil avaliar esta revolução, pois os parâmetros de comparação são os existentes e se referem ao que já é conhecido.

Somos herdeiros dessa história tanto para a definição do livro, isto é, ao mesmo tempo um objeto material e uma obra intelectual ou estética identificada pelo nome de seu autor, como para a percepção da cultura escrita e impressa que se baseia em diferenças imediatamente visíveis entre os objetos (cartas, documentos, diários, livros, etc.).

É essa ordem dos discursos que se transforma profundamente com a textualidade eletrônica. É agora um único aparelho, o computador, que faz surgir diante do leitor os diversos tipos de textos tradicionalmente distribuídos entre objetos diferentes.31

Som, vídeo, texto escrito e seus diferentes gêneros podem ser lidos no mesmo formato, a tela. Não se trata mais de uma página, há três dimensões a se considerar. Não há mais diferenciação de discursos a partir da materialidade, aponta o historiador, pois ela não muda, seja lendo um e-mail, um documento de cobrança ou um romance – a obra se desmaterializa. Não se dobra mais o suporte, e sim o texto, que fica visível apenas por partes (acessíveis quando baixamos a barra de rolagem ou acessamos outro link). E, para Chartier, esse é exatamente o ponto da confusão: o leitor não consegue mais, com os padrões que ele conhece, classificar, ordenar, priorizar os discursos.

O que se torna mais difícil, contudo, é a percepção da obra como obra. A leitura diante da tela é geralmente descontínua, e busca, a partir de palavras-chave ou rubricas temáticas, o fragmento textual do qual quer apoderar-se (um artigo em um periódico, um capítulo em um livro, uma informação em um website), sem que necessariamente sejam percebidas a identidade e a coerência da totalidade textual que contém esse elemento. Num certo sentido, no mundo digital todas as entidades textuais são como bancos de dados que procuram fragmentos cuja leitura absolutamente não supõe a compreensão ou percepção das obras em sua identidade singular.32

Sem a materialidade do códex, com regras que não são as da imprensa, sem as formas e estruturas fundamentais do que se conhece como pertencente ao mundo escrito, é preciso que a herança recebida seja abandonada para compreender esta nova forma de inscrição, difusão de escrita e relação com os textos na era eletrônica. Não há uma leitura linear ou dedutiva, ela pode flanar por hipertextos. O leitor pode não só ler sobre um assunto, como                                                                                                                 30 CHARTIER, 1998, p. 13 31  CHARTIER, 2002, p. 22-23   32  Ibid, p. 23  

consultar as imagens, as gravações, as músicas relacionadas a ela. As notas de rodapé não são mais necessárias para dar crédito ao discurso. O usuário, se desconfiar da informação, faz suas pesquisas por conta própria – ainda que encontre na web um mar de informações falsas ou erradas.

Chartier ainda elenca outra característica própria do texto eletrônico, que tem a ver com a autoria e o copyright. O novo texto é aberto, flexível e portátil, permite ao leitor que recorte, desloque, mude a configuração dos textos. E, nessa escrita coletiva, de muitas vozes, já não há mais um autor.

É evidente que o texto lido na tela do computador se apresenta muito diferente do lido na tela dos tablets, uma vez que os dispositivos eletrônicos – talvez antevendo as dificuldades históricas do homem para aceitar novas tecnologias ou, mais provavelmente, não sabendo ainda que linguagem é adequada para esse novo meio – tentaram reproduzir uma navegação mais semelhante ao livro impresso nos livros digitais e, portanto, dentro de padrões de identificação amplamente conhecidas. De fato, o que se vê é uma continuidade nas estruturas da linguagem, com possibilidade, inclusive, de virar páginas virtuais, que se dobram como as de papel. Estão lá as estruturas que garantem clareza ao texto e que permitem retroceder a leitura: a numeração de páginas, o índice, os capítulos.

Mas não há como negar que, sendo posteriores e, de certa forma, descendentes dos textos eletrônicos no computador, possam em um futuro próximo usar outras características daquele – no mínimo, as duas formas vão conviver por muito tempo, uma aberta e maleável, a outra fechada pelo mercado. Algumas especificidades, com certeza, o livro digital já levou: a agilidade, a convergência midiática e a instantaneidade, com a vantagem de terem ainda mais mobilidade. E outras talvez venha a levar, como a hipótese de que, estando o livro em rede, os leitores estarão conectados, os comentários poderão ser lidos por todos e a conversa sobre a leitura aconteça na mesma hora33 – será que um dia uma turma de pequenos estudantes vai discutir um livro de literatura desta forma? Para Chartier (1998), “talvez, nos séculos XXI e XXII, os autores possam ser classificados em função de sua maior ou menor acuidade e agilidade na percepção e manejo das novas possibilidades abertas pelas técnicas multimídia”.34  

 

                                                                                                               

33  Em entrevista, Bob Stein, do Institute for The Future of the Book, defende isso. Está em: SKLARZ, 2010 34  CHARTIER, 1998, p. 73