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11 ESTUDO DE CASO 3 – DANS MON RÊVE

O que os sonhos têm em comum? Bons, ruins, curtos, longos, quase todos carecem de um mesmo recurso: sequência linear. Às vezes, também parece faltar lógica, mas mesmo na loucura e aleatoriedade do enredo, há neles, muitas vezes, sentido – seja para o sonhador, que saberá ver alguma razão no encadeamento dos fatos, seja no divã do psicanalista freudiano, que saberá interpretá-lo como um recado do inconsciente. Uma criança pequena tampouco conseguirá distinguir sonhos de realidade, tão cercada está de fantasia. E talvez para elas faça mais sentido do que para os adultos a proposta inovadora que o francês Stéphane Kiehl e a editora digital e-Toiles apresentaram no enhanced e-book Dans Mon Rêve – na tradução livre para o português, Em Meu Sonho.

Se ninguém ainda conseguiu encontrar uma linguagem única e mais apropriada para os livros em tablets – talvez porque não haja mesmo e a pluralidade de leituras e formas seja seu grande mérito –, este aplicativo francês de leitura simples, poético e revolucionário conseguiu criar como poucos uma linguagem diferente e que conversa com o suporte, sendo no mínimo um dos bons formatos para tablets dos inúmeros possíveis. Ainda mais quando se leva em consideração que sua primeira versão foi lançada em novembro de 2011, época em que ninguém sabia exatamente o que fazer na confecção de livros digitais. E talvez seja na falta de referências e nas muitas possibilidades a serem exploradas que surjam as melhores ideias, livres de vícios de outros meios e mídias. Merecidamente, o aplicativo foi o ganhador do prêmio BolognaRagazzi Digital Award 2012, justo na edição de estreia da premiação nessa categoria na Feira do Livro Infantil de Bolonha, na Itália – ele competiu com 252 inscritos de 25 países.

Pelo menos até aquele momento, ele não era, absolutamente, parecido com outro livro que tinha sido produzido para iPad. Isso porque boa parte das criações para tablet, ou transposições de histórias para este suporte, foram todas baseadas no modo de leitura com o qual a sociedade está acostumada, a leitura do códex, que pressupõe virar a página, ter um texto que não permite alterações, ver a interatividade apenas nas ilustrações... Em Dans Mon

Rêve, pelo contrário, tudo é interativo, inclusive a história a ser criada (!). Obviamente dentro

de parâmetros pré-determinados, já que tanto as frases como os desenhos estão lá fixados para serem combinados e intercambiados. Mas, segundo a própria descrição da editora para o produto, existem mais de 8 mil combinações possíveis! A CEO e fundadora da e-Toiles, Claire Gervaise, explica não só o que levou a criar o livro, como também a própria editora:

Dans Mon Rêve foi especialmente pensado e projetado para o iPad,

consequentemente refletindo nossa visão para os e-books destinados a crianças com 3 anos ou mais: atrair sua imaginação, graças a ferramentas simples e intuitivas, que permitem a ela tomar controle sobre a mídia. Eu criei a e-Toiles porque, naquela ocasião, notei que muitos dos e-books na categoria infantil permaneciam uma mera transposição da versão em papel, recorrendo à mesma estrutura, e, lamentavelmente, não introduziam nada novo. Pensando nisso, chamei o Stéphane Kiehl, autor e ilustrador, e expliquei minha ideia.72

O livro de Kiehl é composto de uma fórmula simples: sua tela é dividida em três partes que podem ser arrastadas para a esquerda ou a direita. O que o leitor vê na tela é um desenho surreal e colorido e três versos de um micropoema. Com cada parte da ilustração deslizada, desliza também um verso. Assim, não só a imagem muda o tempo todo como os versos formam novas combinações de tercetos, quase tão surreais quanto os desenhos.

“Dans Mon Rêve não é um livro, nem um jogo, ele não está repleto de animações, mas é, no entanto, uma experiência inovadora de leitura e de criação literária perfeitamente adequada com o suporte tátil”, publicou o site La Souris Grise – Le Guide des Meilleures

Applications Pour Les Enfants (La Souris Grise – O Guia dos Melhores Aplicativos para as

Crianças, em tradução livre para o português).73 A reportagem se refere a Dans Mon Rêve como uma “lufada de ar fresco que abre uma brecha para novas formas de leitura, libertando do formato do livro”74.

O aplicativo está disponível em duas linguagens, francês e inglês. Na versão francesa, quem gravou a narração de cada frase foi o cantor e ator Tom Novembre, que atuou em O

Céu que nos Protege (1990) e Um Lobisomem Americano em Paris (1997). Em inglês, a voz é

de Martin Cannon. A cada terceto formado, a criança tem a opção de ouvir a narração do verso, apertando o ícone de um balãozinho que fica no canto inferior direito da tela – e, por isso mesmo, o aplicativo é indicado para crianças a partir de 3 anos de idade, pois dispensa a necessidade de alfabetização. Para cada página (e, no caso deste aplicativo, soa até mais estranho chamá-la de página), o leitor também tem a opção de tocar o ícone de lua logo ao lado do balão para escurecer a tela. Isso não significa que a tela simplesmente escurece e apaga tudo, pois alguns elementos do desenho ficam visíveis e novas partes aparecem, sugerindo até novas leituras visuais. Para as crianças, a descoberta funciona também como uma boa brincadeira, que é precedida da onomatopeia shhhhh para apagar a luz.

                                                                                                               

72    GERVAISE, 2014, por e-mail (tradução nossa)  

73  AXELLE. Dans Mon Rêve réinvente sur iPad la poésie combinatoire, 20 jan. 2012 (tradução nossa)   74  Ibid  

Figura 22 – Capa do livro digital Dans Mon Rêve. Reprodução

Mexendo para lá e para cá, o leitor forma tercetos, que podem ser “emendados” na leitura de outras combinações de terceto e, assim, a brincadeira combinatória vira uma grande poesia onírica e surreal, como a imaginação infantil gosta e sabe tão bem lidar. A criança pode, ainda, fotografar a tela com a combinação feita apertando o ícone de máquina fotográfica. Esse “print screen” gera uma tela fixa, com o formato de um cartão, e é guardado numa pasta logo ao lado. Ao acessar esta pasta, o leitor pode virar esses cartões como se fossem páginas e emendar de modo mais estático um trecho da leitura do poema no outro. E, para finalizar, ainda há uma brincadeira de revelar e esconder (efeito de máscara, já comentado anteriormente) o conteúdo ao virar o tablet na horizontal: uma estrela surge neste espaço e somente através dela o leitor consegue visualizar o que está escrito e desenhado na página, tendo de mexê-la para um lado e outro.

O autor fez posteriormente outro aplicativo com a e-Toiles, My Pear, mas desta vez com experimentações gráficas apenas (a criança cria diversos animais a partir da imagem de uma pera). Em entrevista ao site Appli Mini, ele explicou: “Gosto de explorar e experimentar. É o começo e devemos começar pelo óbvio. Hoje, o óbvio, para mim, é a diversão. Isso não significa que nós colocamos as histórias e a leitura de lado. Nós refletimos justamente as maneiras lúdicas de abordar o texto”.75

A falta de linearidade e o ambiente colaborativo são a tônica da narrativa em Dans

Mon Rêve, que dificilmente funcionaria tão bem no impresso. Não que não existam exemplos

em papel. Talvez um dos que mais se aproxime da proposta de Kiehl é um livro de 1961, do também francês Raymond Queneau: a obra de poesia combinatória Cent Mille Milliards de                                                                                                                

Poèmes (Cem Trilhões de Poemas, na tradução livre para o português). O interior do livro

mais parece uma sucessão daqueles cartazes de anúncio de serviços, com os contatos descritos em pequenas tiras de papel na borda, formando uma espécie de franja no cartaz – e que servem exatamente para ser destacadas. No livro, claro, não são contatos, mas versos de sonetos que podem ser combinados com outros aleatoriamente. Cada verso está em uma pequena tira horizontal e cada página tem 14 versos para serem movimentados – no total, há cem trilhões de leituras diferentes possíveis.

Os escritores brasileiros José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, só para citar um exemplo mais recente, já fizeram algo semelhante em Os 33 Porquinhos (Ed. Alfaguara, 2012). As páginas internas do livro foram cortadas na horizontal em três partes, cada pedaço pode ser folheado independentemente do outro e, na combinação formada, cria uma história diferente. No entanto, o texto trata-se de uma micro-história e não apenas um verso, e não oferece tanta margem para a interpretação e a imaginação como nos tercetos, que são mais curtos e podem ser combinados de forma nonsense. O próprio Kiehl, em entrevista para o site

Appli Mini, conta que não se dava muito bem com o impresso: “Nunca tinha encontrado meu

lugar na criação do livro de papel. Esse é o motivo pelo qual publiquei tão pouco. A chegada do iPad deu sentido a todas as minhas reflexões sobre a imagem”.76

E também a descrição da empresa não deixa dúvidas sobre sua proposta:

Fundada em Paris em janeiro de 2012, e-Toiles Éditions inventa um método original e divertido para as crianças darem os primeiros passos rumo à leitura.

Nossa equipe vem da edição tradicional: editores, autores, ilustradores, diretor de arte, mas também desenvolvedores e designers de som.

Nossa filosofia:

Acreditamos que os aplicativos para as crianças frequentemente não oferecem várias coisas que você, como pai, deveria esperar:

1 - Sugerir conteúdo de qualidade

2 - Fazer a criança interagir até o ponto em que ela crie coisas imaginárias 3 - Conter interatividade harmoniosa e significativa

4 - Um ambiente digital seguro para seus filhos.77

Para se ter ideia das possibilidades combinatórias de Dans Mon Rêve e da experiência de leitura que ele proporciona, foram selecionadas oito das 8 mil formas de poesias possíveis do aplicativo.

1a tela: Uma combinação aleatória

                                                                                                               

76  APPLI MINI, 2013 (tradução nossa)   77  E-TOILES ÉDITIONS  

Figura 23 – Uma combinação de tercetos e imagens de Dans Mon Rêve. Na imagem da direita, a página escura, quando se aperta o ícone de lua. Pode-se ver, por exemplo, o osso guardado na mala. Reprodução

under multicolored raindrops, a dog prepares for a voyage, climbing a rock.

sob gotas de chuva multicoloridas, um cachorro se prepara para uma viagem, escalando uma pedra.78

2a tela: Substituindo apenas a tira inferior

Figura 24 – Mexendo na parte inferior apenas. Os personagens brancos somem na tela clara. Reprodução

under multicolored raindrops, a dog prepares for a voyage, in a striped sweater.

                                                                                                               

sob gotas de chuva multicoloridas, um cachorro se prepara para uma viagem, em um suéter listrado.79

3a tela: Trocando apenas a tira do meio

Figura 25 – Troca da tira do meio para nova configuração. Reprodução

under multicolored raindrops, a guitarist improvises, in a striped sweater.

sob gotas de chuva multicoloridas, um guitarrista improvisa,

em um suéter listrado.80

4a tela: Movimentando somente a parte superior

Figura 26 – Com a troca da parte superior, aparece uma taturana colorida. Reprodução                                                                                                                

79  Trecho de Dans Mon Rêve (tradução nossa)   80  Ibid  

at the top of a hairy caterpillar, a guitarist improvises,

in a striped sweater.

na parte de cima de uma taturana, um guitarrista improvisa,

em um suéter listrado.81

5a tela: Mexendo novamente a tira inferior

Figura 27 – Nova imagem, novo poema. Substituindo de novo a parte inferior, uma galinha aparece. Mas os fios do guitarrista somem no escuro. Reprodução

at the top of a hairy caterpillar, a guitarist improvises,

wiht a curious chicken.

na parte de cima de uma taturana, um guitarrista improvisa,

com uma galinha curiosa.82

6a tela: Trocando de novo a parte do meio

                                                                                                               

81  Trecho de Dans Mon Rêve (tradução nossa)   82  Ibid  

Figura 28 – Nova troca da tira do meio: outro micropoema. Onde foi parar o elefante na tela escura? Reprodução

at the top of a hairy caterpillar, an elephant flies,

wiht a curious chicken.

na parte de cima de uma taturana, um elefante voa,

com uma galinha curiosa.83

7a tela: Substituindo novamente o pedaço superior

Figura 29 – Substituição da tira superior: surge um caracol na história. Reprodução

slow as snails, an elephant flies, wiht a curious chicken.

                                                                                                               

lento como os caracóis, um elefante voa,

com uma galinha curiosa.84

8a tela: Mudando as três partes simultaneamente

Figura 30 – Mudando tudo ao mesmo tempo: orelhas de burro se combinam com renas e focas. Reprodução

shhh, listen,

a pair of reindeer celebrate Christmas, taking a bath.

shhh, ouça,

um par de renas celebra o Natal, tomando um banho.85

E, assim, as possibilidades seguem, numa brincadeira de criação poética e leitura visual e textual. Não há uma possibilidade que faça mais sentido que a outra, todas são igualmente aleatórias, e não há uma combinação de ilustração que forme um desenho real (por exemplo, não há uma cabeça de galinha para combinar com o corpo). É, no mínimo, muito divertido e ousado.

                                                                                                               

84  Trecho de Dans Mon Rêve (tradução nossa)   85  Ibid