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Página x tela. Parte do livro x cena. Ilustração x animação. Leitor x usuário. Muitas vezes durante a escrita desta dissertação fiquei em dúvida sobre como nomear alguns elementos e recursos do livro digital. Chamar a página de um livro de “tela” soa estranho, mas é o que é, sem deixar de ser página. Dizer “uma cena do livro”, referindo-se a uma parte da ilustração, animada ou não, também não parece se encaixar como boa definição. É o mesmo problema com as ilustrações animadas: como chamá-las? Animações ativas, como supôs Lollo na entrevista que deu para esta pesquisa? Animações interativas como batizou Angela Lago?

E leitor e usuário são diferentes? Usuários costumam ser denominados aqueles que utilizam os dispositivos eletrônicos, e leitores os que leem. Certo. Mas se a pessoa lê em um tablet, é leitor ou usuário ou os dois? Vivemos numa fase de dúvidas, de procura de novos nomes, de estranhamento, de tentativa de classificação. É época de transição. E a única certeza de que esta dissertação me dá é que, sim, os livros para tablets continuam sendo livros, pois há muito essa definição deixou de estar vinculada à sua materialidade – uma discussão que, como visto neste trabalho, surgiu por conta dos direitos autorais, quando a obra começou a ser reproduzida em grande escala. Porém, nem tudo o que está sendo chamado hoje de livro digital é livro, pois pende mais para o game ou para os curtas animados – mesmo que não deixem de ser histórias.

É possível que, em breve, alguém invente um nome simpático, ou bem burocrático, para que não haja dúvida sobre o suporte a que se refere um tipo e outro de leitura – e, sinceramente, em boa parte dos casos não há nenhum motivo para a diferenciação semântica, já que os dois ainda usam a estrutura secular do códex. São nomes, apenas. Chamá-lo de livro, de aplicativo, de outra palavra que seja inventada, não tira dele sua essência: uma história para ser lida. Mesmo que ela tenha recursos para trazer ainda mais diversão ao texto – e que isso não vire um julgamento de valor, como se o livro – ainda mais o infantil – tivesse nascido para ser sério.

Dizer que o enhanced e-book é ruim porque distrai, desvia da leitura, é esquecer que também na história da leitura, da recepção do leitor – que não será nesta dissertação abordada, ficando como sugestão para uma pesquisa de doutorado, por exemplo –, nem sempre se leu de forma quieta e concentrada. Pelo contrário, esta é uma invenção da Idade Média, com as

bibliotecas universitárias a partir do século XIII, que foi reforçada cinco séculos depois com a criação dos clubes de leitura, que separavam o divertimento da experiência de ler, e que acabou legitimada com a escola. Apesar desses esforços, somente há pouco tempo, coisa de um século, é que se acabou com a tradição de ler em voz alta.

O leitor de hoje e do futuro, certamente, não será o mesmo das salas de aula e das bibliotecas em silêncio – poderá ser em alguns momentos de seu dia, mas como mais uma de suas experiências com a leitura. Afinal, ele já nasce em um mundo que oferece uma série de equipamentos tecnológicos e com a existência da internet, que possibilitou a convergência de tantos meios. É um leitor que faz muitas coisas ao mesmo tempo – e isso já se falava da geração Y, dos nascidos entre 1978 e meados de 1990 (os especialistas discordam da data exata), quem dirá dos que nasceram depois disso? Classificados como geração Z, eles não conhecem o mundo sem computadores, celulares e outros gadgets.

Ser multitarefa não é só uma possibilidade, mas uma condição: estudos já comprovaram que a geração Y, que convive intensamente com ferramentas virtuais, acabam desenvolvendo um sistema cognitivo diferente, capaz de realizar muitas coisas ao mesmo tempo e que precisa ser continuamente motivado. Como a geração Z é conhecida por ser ainda mais multitarefa e impaciente, não faz sentido não oferecer leitura nos dispositivos eletrônicos, pois é exatamente onde eles – jovens, adolescentes e crianças – mais estão. Se eles vão ler livros nos gadgets, não dá para saber. O que se pode supor é que, se quiserem ler, muito provavelmente vão pensar nos equipamentos mobile para isso.

Portanto, aceitar os livros digitais sem preconceitos, como mais um meio de leitura, que oferece uma nova experiência, é preceito básico daqui para a frente. Quando quis estudar os enhanced e-books, recordo-me de ouvir muita gente, entre autores e críticos de literatura infantil, falando taxativamente que o que se via nos tablets não era livro, e sim brincadeira – e em tom pejorativo, como se a brincadeira fosse menos importante que o livro ou como se os dois não pudessem andar juntos. Houve bastante resistência desses e, dos que não se opuseram à nova plataforma, sobraram dúvidas e dificuldade em classificar o novo produto – o ser humano e sua eterna necessidade de classificação. Eu, inclusive.

Em um primeiro momento, queria saber o que era aquilo que o tablet entregava e como estava sendo produzido. Passada esta etapa, surgiu a necessidade de compreender o que caracterizava essa nova linguagem, suas possíveis origens e seus impactos na narrativa e na leitura. Como os impactos na recepção do leitor demandam estudo de acompanhamento com crianças em casa e nas escolas, decidi não me aprofundar neste momento e deixar este recorte para uma possível pesquisa de doutorado – muito embora tenha realizado entrevista com uma

escola somente para compreender o básico da recepção e do trabalho desenvolvido com os pequenos leitores, que não foi inserida nesta dissertação.

O resultado da busca dessas respostas, que pode ser visto nesta dissertação, é, primeiro, compreender que não há magia nem tanta novidade no aparecimento dos enhanced

e-books. E não me refiro aos e-readers. Analisando a história da comunicação e da literatura

infantil, fica mais fácil lembrar que tudo tem um contexto histórico e perceber que os livros digitais podem ter raízes tão antigas quanto os livros móveis – a linguagem interativa, de saltar e promover diversão, mesmo que de forma primária, já existia desde o século XIII, só foi adaptada para um novo meio tecnológico.

Compreender que um livro não depende do suporte para ser um livro é outro ponto. Tabuleta de argila, pedra, papiro, pergaminho, papel..., foram muitas as plataformas usadas ao longo dos milênios para escrever os textos. Assim, o fato de estar no tablet não tira dele o fato de ser um livro, desde que sua principal “missão” seja a de contar histórias. Dessa forma, a brincadeira interativa, a animação, o som, a narração, os vários recursos vistos nesta dissertação podem, sim, ser incluídos, desde que sejam secundários, não roubem a atenção da trama contada e contribuam para o sentido do enredo.

Entender que a leitura numa sociedade de cultura digital é multifacetada, hiperlinkada, hipermidiática, fragmentada é outro pressuposto para compreender que também as obras literárias vão passar por adaptações – o que não inviabiliza o outro tipo de leitura, silencioso e quase sempre linear, dos livros de papel. E, dentro desse panorama, até que os enhanced e-

books não permitem tantos desvios e fragmentações como os livros eletrônicos na web.

Talvez até por ser um veículo novo, feito por pessoas com um padrão de pensamento secular na definição do que é um livro, ele tenha ousado muito pouco ainda: a maioria das transposições segue a ordem do códice, inclusive com a possibilidade de virar a página que simula papel. É no mínimo curioso pensar que um meio com tantas ferramentas tecnológicas disponíveis e tantos caminhos possíveis de leitura ainda reproduza o livro impresso. É quase como colocar um motor de Ferrari na carcaça de um Fusquinha – ele nem está preparado para tanta potência!

Mas já há experimentações, em maior ou menor escala. São emblemáticos, neste sentido, os aplicativos The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore, que soube encontrar uma linguagem para cada recurso da mesma história (curta-metragem de animação,

enhanced e-book e livro impresso) e, principalmente, Dans Mon Rêve, que não manteve a

estrutura do códice, não tem sequer páginas imitando papel ou setas para “virar a folha” – eles entenderam aquele como um suporte diferente que merecia leitura totalmente diferente.

O que é melhor? O melhor é não ter melhor. É na diversidade de formatos e de misturas entre as diferentes mídias que o leitor sairá ganhando. O que virá pela frente e o que se consolidará como a fórmula de mais sucesso, só o tempo dirá. Torço para que continue plural, pois na pluralidade ela terá mais chance de atingir todo tipo de leitor, e para todo tipo de ocasião – para quando ele quiser mais brincadeira, mais leitura séria, mais animação, mais intervenção sua... A única tendência que se pode dizer com certeza é que a popularização dos tablets virá, a julgar pelos números de venda de aparelhos – e com eles talvez venha também a leitura do livro digital, que já está sendo incorporada pela escola, tanto a rede privada como a pública. As crianças de hoje talvez não venham a ter dúvidas tais como “Será livro?”, “Muda a narrativa?”. Para elas, desde sempre será um livro, e estarão acostumadas com as variações narrativas em um e outro suporte, como algo que sempre tivesse existido, inquestionável.

No entanto, como vivemos ainda na fase de transição, esta dissertação tenta responder algumas dúvidas sobre o novo produto midiático – ou sua nova apresentação. Há uma tentativa de descrever os recursos disponíveis, muitos vindos da linguagem dos games e das animações, de modo a funcionar como um guia ou um dicionário de funcionalidades potenciais, bem como uma explicação sobre o novo processo de produção e os autores envolvidos. Existe também uma discussão sobre a interação a serviço da leitura, e como ela muda a forma de narrar. Apesar disso, muitas respostas ficarão incompletas, esperando o tempo passar para que os resultados dessas transformações, ou (r)evoluções, possam ser mais claramente identificados e analisados. Talvez a mais incômoda delas seja: o livro de papel vai acabar?

Não há como saber. Talvez um dia, daqui a centenas de anos, ele seja apenas artigo de museu. Há suposições apenas sobre seu destino. Mas acho que isso não acontecerá nas próximas décadas. Livro de papel é uma instituição muito mais consolidada do que o disquete e o CD-ROM para sumir de uma hora para a outra. Pessoas como eu, que gostam de olhar para as várias lombadas impressas nas estantes, ainda viverão por muito tempo e seguirão comprando obras de papel, sentindo prazer em sua textura e no cheiro bom que só um livro impresso pode ter – e ensinando seus filhos a ler em todas as plataformas disponíveis, inclusive esta.

Portanto, a melhor atitude que podemos tomar neste momento é a de substituir todos os sinais de versus (x) do começo destas considerações finais por sinais de mais (+), pois é dessa fusão de mídias, modos, meios e palavras que se trata a leitura neste relativamente novo suporte chamado tablet.