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Cativos urbanos

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 87-90)

As pessoas, indivíduos, grupos e classes sociais havidos na formação social escravista brasileira viveram em geral sob a polarização casa-grande/senzala. Essas foram as duas formas de

habitação

predominantes nas plantagens coloniais. A

família senhorial

, ou seja, dos escravizadores, viveu e exerceu seu domínio nos geralmente ostentosos casarões, em maioria construídos sob dois pavimentos, com amplas varandas assombradadas e seus quartos e demais cômodos internos diversos. [GUTIERREZ: 1999]

Grande, cidades da então província de São Pedro do Rio Grande do Sul, assentadas principalmente na riqueza produzida por trabalhadores escravizados das charqueadas, atividade saladeril destinada ao centro do país e à exportação, ou atividades derivadas destas, como o comércio de sebo, couro, velas, transportes portuários, etc., se refastelava aos domingos em viagens náuticas recreativas. De uma cidade à outra, passeavam homens, mulheres e crianças da classe dominante, recitando poesias ou ouvindo músicas da época tocadas por banda musical a bordo. Também haviam as badaladas corridas de cavalo; os concertos musicais nos coretos; as disputas de tiro ao alvo; os grandes bailes; os esportes diversos, etc. De atividade cultural requintada, Pelotas era concorrida por

troupes

de artistas que se apresentavam nos então famosos teatros da cidade. Próximos a estes

amos

, porém, circulava uma escravaria doméstica: mucamas, amas-de-leite, arrumadeiras, passadeiras, meninos de recados, etc. Eram as mãos que costuravam as roupas; construíam os casarões; lavavam o chão; pilotavam as carruagens; amamentavam e ninavam os filhos dos escravizadores. Em dias de festas, esses cativos domésticos, alguns bem vestidos, mas sempre descalços, como seus

irmãos do eito

, traziam o refresco, as iguarias, recebiam os visitantes, arrumavam as mesas, mas não participavam dos banquetes. [MELLO: 1994, 123]

O desenhista alemão Johann-Moritz Rugendas [1808-1858] veio ao Brasil com a chamada

missão científica

do barão de Langsdorff. Dentre outras atividades, Rugendas desenhou e escreveu o cotidiano dos trabalhadores escravizados urbanos da então província do Rio de Janeiro, seus costumes, a paisagem, a botânica e demais

tipos humanos

que encontrou. Reconhecendo sua

estranheza

ante todo aquele

exótico

mundo escravista, Rugendas pretendeu escrever e pintar o que via de forma mais

objetiva

possível, como exigia o cientificismo de sua época. Escreveu que “grande parte” dos cativos no Rio de Janeiro era empregada “em serviços domésticos, com pessoas ricas ou de posição”. Eram assim, para ele, “artigos de luxo”, frutos mais da “vaidade” do que da “necessidade” dos escravizadores. Considerou as roupas e os penteados dos cativos urbanos como “fora de moda”. Dizia que eles tinham “pouco trabalho, às vezes nenhum” e que sua alimentação era “boa”. Crítico também da esnobação dos “grandes senhores” aristocratas de sua terra natal, comparou cativos urbanos como “seres tão inúteis quanto” os “criados” europeus. Em sua

urbanos aos escravizadores nas cidades, que nada tinha de “capricho” ou “vaidade”, embora servissem também, como na Atenas clássica, como exibição de

status

social abastado. [RUGENDAS: 1972, 147-50]

Rugendas se espantou com o que chamou de “batuque de negros”, suas “provocações”, “algazarras”, e danças com “movimentos do corpo [...] demasiado expressivos”, onde “agitavam as ancas”, “estalando línguas e dedos” entre seus cantados “refrões repetidos”, realizado à noite, após o trabalho e “preferencialmente” aos sábados ou às “vésperas dos dias santos”. Enxergou o maculelê e a capoeira como “uma espécie de dança militar: dois grupos armados de paus colocam-se um em frente do outro e o talento consiste em evitar os golpes da ponta do adversário”, uma espécie de “folguedo guerreiro violento” onde “dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas, lançando-se um contra o outro mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga em que as facas entrem em jogo ensangüentando”. [RUGENDAS: 1972, 155-7]

O importante aqui é relativizarmos a leitura do viajante alemão e tirarmos dela informações essenciais. Como as diversas profissões dos cativos urbanos e suas obrigações para com seus escravizadores, por exemplo. Rugendas mostrou que cativos urbanos do Rio de Janeiro eram “obrigados a pagar semanalmente, às vezes diariamente, determinada importância a seus senhores”. Quantia em dinheiro ganha em profissões como as de “marceneiros, seleiros, alfaiates, marinheiros, carregadores etc”. Já sobre as mulheres cativas na cidade, o estrangeiro assinalou suas atividades como “amas, lavadeiras, floristas, ou quitandeiras”. Trabalho escravizado, humilde e altamente explorado, mas ainda assim Rugendas julgou poderem os cativos urbanos “ganhar facilmente mais do que lhes exige o senhor e, com um pouco de economia, em nove ou dez anos, adquirem, sem dificuldade sua liberdade”. É claro que eram poucos aqueles que conseguiam na prática efetivar tal façanha. Certamente percebendo a contradição entre o que propunha e o que realmente ocorria, Rugendas julgou que isto se dava “porque os negros têm predisposição para a prodigalidade, principalmente em matéria de roupas, de tecidos de cores vivas e de fitas. Dissipam, com isso, quase tudo o que ganham” e por isso nem todos compravam a

liberdade. No fim, suas

objetivas

afirmações foram também uma espécie de abrandamento da escravidão, reproduzindo e alimentando a visão e os mitos de que no Brasil o sistema escravista, além de suave, era culpa dos próprios escravizados. [RUGENDAS: 1972, 150-1]

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 87-90)