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Liberalismo e escravidão

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 120-123)

Em 1776, com o desenvolvimento surgido da Revolução Industrial, o liberalismo encontrou seu referencial teórico principal na publicação de

A riqueza das nações

, do filósofo e economista escocês Adam Smith [1723-1790]. Segundo Smith, emanados por deus, o egoísmo e o individualismo constituíam a

razão básica

, senão

única

das ações humanas. Este liberal defendia que todos os indivíduos de posses se esforçariam e competiriam entre si para encontrar a melhor forma de investir suas riquezas, mantendo e ampliando-as. Já os “desprovidos de capital” estariam sempre à procura de um emprego que lhes oferecesse melhor retorno monetário possível. Ambos, capitalistas e trabalhadores, teriam praticamente os mesmos interesses. Se o Estado os deixasse entregues à própria sorte, concorrendo entre si em um

mercado livre

, os interesses pelos lucros e pelos melhores salários levariam a todos, conforme as necessidades de cada indivíduo, a aprimorar constantemente a qualidade da produção da riqueza nacional. A defesa do liberalismo de Smith e de outros escritores de seu tempo era tão revolucionária em relação à ideologia então dominante que assustava a própria nobreza britânica. Com razão para sua época e classe social, o aristocrata inglês Sir Robert Filmer considerou o liberalismo “perigoso e subversivo”. [HUNT & SHERMAN: 2000, 60-1]

O que importa no presente trabalho são as observações que Adam Smith fez sobre a escravidão. Dizia o ideólogo liberal que o único interesse de um trabalhador escravizado seria “comer o máximo e trabalhar o mínimo possível”. Smith tirou suas conclusões das observações que fez das relações escravistas havidas nas Antilhas francesas. Por serem os cativos considerados

propriedade

dos escravizadores, Smith acreditava que eles seriam tratados com “maior zelo” e até com “delicadeza”. Apesar de defender a não intervenção nos negócios escravistas daquela região, principalmente porque aparentemente eles iam bem, o economista não defendeu a escravidão, como fizeram outros liberais na Inglaterra, Holanda, França e EUA, pois a considerava “contrária aos princípios das liberdades naturais”. O escocês defendia que, no caso do trabalhador assalariado, o empregador tinha a vantagem de remunerá-lo somente após um período de trabalho estabelecido e concluído. No escravismo, por sua vez, o escravizador era obrigado a investir

a priori

em um trabalhador que ainda por cima se desinteressava pelos resultados da produção. A crítica de Adam Smith à escravidão se somou e fez crescer o coro de capitalistas contra o escravismo, embora Smith não chegasse a ser um abolicionista. [ROCHA: 1993, 179; DAVIS: 2001, 82 e ss]

Assim como Aristóteles na Antiguidade julgou que escravizadores e escravizados não podiam viver um sem o outro, os liberais, ao seu modo e tempo, defenderam que capitalistas e trabalhadores assalariados necessitassem igualmente uns dos outros. Com raras exceções, os primeiros escritores liberais eram capitalistas ou funcionários de grandes empresas comerciais. Enxergavam o mundo, portanto, segundo os interesses nascidos dessas novas formas de produção, como se fossem de interesse universal e de todas as demais classes sociais.

Voltado para o lucro e para a acumulação, e não para as necessidades dos trabalhadores assalariados, o sistema capitalista, materialização das relações sociais de produção, também fez com que sua classe dominante desenvolvesse formas de controle do processo produtivo e impusesse rígida disciplina de trabalho, valores, regras e normas de comportamento, etc., visando garantir ao máximo a submissão das suas classes exploradas. Foge à finalidade do presente trabalho fazer a crítica dos mitos da ideologia liberal, expressão ideológica desse outro sistema econômico de exploração do trabalho. Interessa- nos aqui ver como o liberalismo clássico pôde, mesmo que de forma aparentemente

paradoxal, ser absorvido e acomodado pela mentalidade escravista dominante luso- brasileira, influenciando-a inclusive na elaboração de alguns de seus principais mitos. [LOSURDO: 2006]

4.2. Os escritores coloniais

No século 16, o frei Bartolomé de Las Casas [1484-1566] ficou conhecido por suas contundentes denúncias ao rosário de horrores impetrado pelos espanhóis na conquista e exploração das populações autóctones da América. Com sua

Brevíssima relación de la

destrucción de las Indias

(publicado no Brasil como

O paraíso destruído

), o dominicano procurou “comover e alertar” a realeza espanhola sobre o genocídio dos povos antilhanos diante da “brutalidade e ganância” dos conquistadores que faziam

desaparecer

em poucos anos milhões de

taínos

(povos naturais das atuais Colômbia e Venezuela),

guanahatabeyes

e

caribes

(da atual Antilha Menor: Granada, Dominica e do Arco Insular). Las Casas se opunha à escravidão do americano, sugerindo em seu lugar a escravidão dos africanos. [LAS CASAS: 1996]

Assim como Las Casas nas colônias espanholas, alguns clérigos do Brasil julgaram ser a escravidão uma injustiça dos homens perante os olhos de deus e, portanto, algo inaceitável. Os não tão conhecidos Gonçalo Leite e Miguel Garcia, jesuítas do século 16, e José de Bolonha, capuchinho do século 19, foram também contrários à escravidão de americanos e mesmo, no caso de Leite, ao “cativeiro dos pretos”, o que bastou para que as autoridades coloniais os expulsassem de volta à Europa. Geralmente esses homens vinham da base hierárquica da Igreja e representaram visão minoritária em relação às posições dominantes da cúpula. Vimos que, por séculos, sua Igreja abençoou as estruturas sócio- econômicas vigentes, fazendo relativização religiosa delas e se aliando aos grupos e classes dominantes enquanto visavam, no máximo, apaziguar e consolar espiritualmente os oprimidos. Tanto na Europa como na América, os próprios religiosos não raramente eram escravizadores. Procuravam, portanto, quando podiam, organizar a produção em suas plantagens de um modo apenas um pouco diferenciado dos demais escravizadores laicos. [LEITE: 1938, 227-30; FO; TOMAT; MALUCELLI: 2007]

foram, além do conhecido Antônio Vieira, os padres Jorge Benci, Antônio João Andreoni (Antonil) e Manuel Ribeiro Rocha, cujas obras tentaram abrandar ou reformar a escravidão moderna, sem jamais condená-la. Esses religiosos também fizeram parte do segmento escravista dominante, porém menos dependentes da mesma exploração dos cativos pelos escravizadores laicos, já que as ordens religiosas das quais pertenciam dispunham de condições institucionais mais antigas e influentes na sede das metrópoles européias, tendo vantagens relativas sobre muitas das plantagens privadas laicas, apesar de menos ostentosas e lucrativas. Os religiosos aqui citados não eram donos ou administradores de plantagens, servindo apenas de parâmetro ao pensamento existente entre demais religiosos escravizadores que as administraram. Outras obras e autores religiosos poderiam ser apresentados, mas apenas confirmariam as posições e reproduziriam sem grandes diferenças os discursos e mitos sobre a escravidão de Benci, Antonil e Rocha.

Em 1705, em menos de dez anos após as primeiras descobertas de ouro na colônia e após longo período de crise da produção escravista açucareira luso-americana, surge o livro

Economia cristã dos senhores no governo dos escravos

do padre jesuíta Jorge Benci.

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 120-123)