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Da ditadura ao neoliberalismo [1964-1989]

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 171-175)

O período entre 1960 e 1980 deve ser entendido em contexto mundial mais amplo. A transição ditadura militar/neoliberalismo no Brasil não foi um processo de causas apenas locais. Em grande parte da América Latina isto se deu também, ao seu modo, no Peru, Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, etc. Passados pouco mais de vinte anos do fim da Segunda Guerra Mundial, mesmo a social-democracia européia, diante de mais um período de estagnação econômica, necessitou abandonar o modelo de Estado de bem-estar social, para rever e defender o capitalismo sob viés neoliberal. Era o keynesianismo encontrando seus limites práticos. Se a destruição de muitas capitais européias pelas guerras mundiais impulsionou o crescimento que podia e necessitava ser administrado pela burocracia estatal, no início dos anos 1970 a situação era outra. Para continuar acumulando, a economia capitalista pressionou e exigiu “choques de austeridade fiscal” cada vez mais rigorosos, avançando inclusive sobre estruturas construídas e direitos adquiridos pela geração anterior da que atacava. [GUAZZELI: 1993]

O liberalismo, agora em sua versão “neo”, voltava à ordem do dia, defendido pelos monetaristas do Consenso de Washington e colocado em prática nos governos da britânica Margareth Thatcher [1925] e de Ronald Reagan [1911-2004]. Em 1947, quando o economista austríaco Friedrich August von Hayek [1899-1992] escreveu seu

O caminho da

servidão

, o tom de suas linhas eram nitidamente derrotistas. Defender o liberalismo depois da crise de 1929 era quase como pregar no deserto. Os defensores do liberalismo não haviam desaparecido, mas suas idéias não encontravam muitos simpatizantes. Hayek

enxergava a “ameaça da servidão socialista” até na Inglaterra dos social-democratas de então. Keynesianismo, economia planificada e socialismo eram a mesma coisa para ele. Além da economia, Hayek escreveu sobre psicanálise e história. Esta última seria dirigida pelas idéias (por isso visou combater as “idéias socialistas”). E a economia, um sistema tão complexo que “não poderia ser planejada pelas instituições”, devendo assim “evoluir espontaneamente”. Em 1975, Hayek foi resgatado do ostracismo com a premiação de “Nobel da Economia”, simbolizando o início de uma nova para os neoliberais. [HAYEK: 1990; SANTOS: 2004, 21, 35-6]

A crise e destruição dos Estados operários burocratizados do Leste europeu, aliadas aos avanços neoliberais, mudavam o mundo. No Brasil, o fim de um dos tripés da ditadura, o “Milagre Econômico”, retirou a base de sua sustentação. Apenas a pregação ideológica e a repressão política não impediriam que protestos populares obrigassem os ditadores à

abrir

o regime. Buscando manter ainda o controle sobre o movimento popular, a ditadura promoveu sua

abertura

“lenta, segura e gradual”. E após um breve período de transição política, o neoliberalismo enfim fazia parte da realidade nacional. Na ideologia dominante, da defesa do Estado ditatorial passou-se ao “Estado mínimo”, atribuindo à “iniciativa privada” às soluções para os todos os problemas. Assim como todos os demais direitos, a Educação foi “reordenada” para uma “melhor eficiência”. O Ensino Superior público e gratuito entrou em “extinção”, pretendendo ser substituído em completo por instituições privadas “mais voltadas às demandas do mercado”. [KUCINSKI: 2001; SILVA & CALIL: 2000]

No plano ideológico ainda, o “discurso único” do neoliberalismo exacerbou ainda mais o individualismo burguês. Se o Renascimento havia forjado uma ideologia que realçava o indivíduo e a razão para se contrapor ao fatalismo, superstição, teocentrismo e obscurantismo medieval, o neoliberalismo convertia agora o individualismo burguês em narcisismo, auto-adoração, à quase completa falta de solidariedade e competitividade de “vale-tudo”. Na arquitetura, das antigas preocupações estatais com as grandes construções e obras faraônicas, em um oposto radical exaltou-se uma espécie de neo-rococó, com seus espaços mínimos, fragmentados e atomizados, ainda que havidos em uma mesma região ou cidade. No plano cultural, o chamado pós-modernismo fez ressurgir o irracionalismo, o relativismo extremado, idealismos, niilismos, literaturas mitológicas, biografias

personalistas, análises conjunturais embasadas em psicologismo individualista a-histórico e abstrato, com uma erudição superficial, confusa e uma verborragia sem sentido, muitas vezes abusando de conceitos das ciências exatas para tratar de filosofia, sociologia ou história. Alguns desses fatores existiram desde sempre entre a intelectualidade, é verdade, mas o

status

que alcançaram de meado dos anos 1970 a 1990 foi impressionante. [LOPEZ: 2000; SOKAL & BRICMONT: 2006]

A hegemonia neoliberal não se instalou apenas por motivos ideológicos, vencendo no

campo das idéias

. Pelo contrário, essa ideologia é que foi uma forma de justificar toda a transformação estrutural que o capitalismo promoveu. Para tornar-se hegemônica, a ideologia das classes dominantes se apoiou em muito nas conquistas militares do imperialismo, que continuou dando combate a milhões de lutadores sociais e seus movimentos políticos pelo mundo; na corrida armamentista; derrubando governos; ocupando setores energéticos estratégicos; fomentando ou se envolvendo diretamente em guerras, etc. No Brasil, parques industriais inteiros, construídos em menos de quarenta anos, foram arrasados ou transformados em empresas privadas. A rápida e crescente taxa de desemprego atingiu milhões de trabalhadores, aumentando ainda mais as mazelas sociais.

A historiografia brasileira não deixaria de sentir os efeitos dessas mudanças estruturais e culturais. Décadas de ditadura política unidas aos anos de neoliberalismo econômico e pós-modernismo mundial certamente exerceram seus influxos gerais ou relativos sobre a ciência da história. Na historiografia sobre a escravidão, em especial, poderíamos citar diversas obras para comprovar o que afirmamos. Mas a maioria delas geralmente apresentam como “fonte” um certo e específico conjunto de livros. Desta forma, nos limitamos em ir direto à elas, verificando-lhes a contribuição ao estudo do escravismo.

5.3. Historiografia e mitos da escravidão no Brasil no século 20

No Brasil, em fins do século 19, coube ao crítico literário, filósofo, político e professor Sílvio Romero [1851–1914], um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, retomar o plano original sobre o “brasileiro mestiço” de von Martius, com todo o discurso cientificista da época. Do “ponto de vista etnográfico”, dizia Romero, as propostas de von Martius indicariam apenas “em traços rápidos os diversos elementos do povo

brasileiro”, de maneira “puramente descritiva”. Ressalvou então que faltava a von Martius esclarecer os “nexos causais” da formação do povo brasileiro. Romero concordava com von Martius no entendimento de que a história do Brasil seria “antes a história da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que predomina a mestiçagem. Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas idéias”. E “os operários deste fato inicial” teriam sido “o português, o negro, o índio, o meio físico e a imigração estrangeira”. [ROMERO: 1960, 53-4, 60-1]

A partir de Sílvio Romero, predominou entre a intelectualidade brasileira duas posições principais sobre

raça

e formação social. Partindo ambas da

miscigenação

, a primeira tomava como premissa o mito de que essa mistura levava o país a uma

esterilidade

biológica e cultural, inviabilizando-o de qualquer esforço civilizacional, enquanto a segunda procurava libertar-se dessa

condenação

, apresentando um tipo de

terapêutica étnica

que asseguraria um gradual predomínio dos caracteres

brancos

sobre as demais

raças

: era a chamada

teoria do branqueamento

. [BOTELHO: 2007]

Médico, etnólogo e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, Raimundo Nina Rodrigues [1862–1906] foi o primeiro estudioso da virada do século 19 para o 20 a destacar sistematicamente o papel do africano na formação do Brasil. Em seu livro

Os Africanos no

Brasil

, formado por artigos escritos em vida, reunidos e postumamente publicados em 1932, encontram-se os principais pareceres de seus estudos. É obra repleta de informações e dados a respeito do universo cultural das comunidades afro-brasileiras. [RODRIGUES: 1977]

As posições de Rodrigues pareciam romper com a velha ocultação feita pelos

historiadores oficiais

dos costumes, linguagem, cultura e demais características dos representantes das camadas sociais mais subalternizadas e, em especial, aquela recentemente saída da escravidão. No capítulo “Sobrevivências religiosas, religião, mitologias e culto”, o médico maranhense criticou o tratamento dispensado pelas autoridades governamentais e pela imprensa da época às práticas religiosas populares, como as do candomblé: “Na África, estes cultos (jeje-nagô) constituem verdadeira religião de Estado, em cujo nome governam os régulos. Acham-se, pois, ali garantidos pelos governos e pelos costumes. No Brasil, na Bahia, são ao contrário consideradas práticas de feitiçarias, sem proteção nas leis, condenadas pela religião dominante e pelo desprezo,

muitas vezes apenas aparentes, é verdade, das classes influentes que, apesar de tudo, as temem. Durante a escravidão, não há ainda vinte anos portanto, sofriam elas todas as violências por parte dos senhores de escravos, de todo prepotentes, entregues os negros, nas fazendas e plantações, à jurisdição arbítrio quase ilimitados de administradores, de feitores tão brutais e cruéis quanto ignorantes. Hoje, cessada a escravidão, passaram elas à prepotência e ao arbítrio da polícia não mais esclarecidas do que os antigos senhores e aos reclamos da opinião pública que, pretendendo fazer de espírito forte e culto, revela a toda hora a mais supina ignorância do fenômeno sociológico”. [RODRIGUES: 1977, 239]

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 171-175)