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O preço do resgate

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 136-139)

No contexto dessas mudanças surgiram os pareceres de Manuel Ribeiro Rocha, em seu

Etíope resgatado...

, de 1778, um

elo de ligação

revigorador dos discursos de Benci e Antonil adaptados aos interesses dos escravizadores laicos mais recentes. Rocha, que também residiu e escreveu seu livro na Bahia colonial, procurou manter a legitimação da escravidão brasileira ainda sob os preceitos cristãos dos padres que o antecederam. Segundo ele, tal como em Platão, os homens nasciam livres, mas uma

infelicidade

ou

desgraça do destino

poderia torná-los seres

sujeitados

por outros. Refletindo também a visão iluminista, defendeu que a escravidão trazia em si “todas aquelas misérias, e todos aqueles incômodos, que são contrários, e repugnantes à natureza, e a condição do homem”. [ROCHA: 1991, 53]

Porém, Manuel Ribeiro Rocha se preocupou com as novas idéias internacionais que reprovavam a escravidão. Desta forma, seu livro não visou condenar, mas sim amparar jurídica e moralmente os escravistas luso-brasileiros diante de qualquer crítica constrangedora chegada “aos seus ouvidos” e resolver alguns de seus “embaraços de consciência”. Com seus argumentos

teológico-jurídicos

, procurou desenvolver um conjunto de “obrigações principais com que se [...] poderão válida, e licitamente, haver, e possuir estes ditos pretos cativos”. [ROCHA: 1991, 53]

Para Rocha, os escravizadores luso-brasileiros tinham uma obrigação principal:

restituir

a liberdade às pessoas reduzidas ao cativeiro na África trazidas ao Brasil. Feitos cativos em sua terra natal, por meio de guerras, punições, dívidas ou por diversos outros modos

infelizes

, os africanos seriam transbandeados à colônia lusitana por aqueles que, diante dessa situação, apenas praticavam

comércio

. Para Rocha, os traficantes luso- brasileiros eram apenas

comerciantes

que iam à África trocar produtos agrícolas por gente

escravizada em sua própria terra

. Alegava também que alguns

comerciantes

até poderiam agir de

má fé

, conscientes do

mal

que

ajudavam a fazer

no além-mar. Mas muitos outros não. Tudo dependeria do grau de conhecimento sobre como aqueles cativos haviam caído em tal condição e como deveriam dela

sair

.

Para Rocha, o comércio não era o problema, mesmo se envolvesse a escravização de seres humanos. Ao contrário, era atividade inclusive

útil

e

necessária

à Coroa lusitana e a deus, pois haveria

dois tipos

de

escravidões

no mundo: a

legítima

e a

ilegítima

, o

bom

e o

mal

cativeiro. O mais importante seria que, no Brasil, cativos africanos fossem

restituídos

em sua

liberdade original

através de um

pagamento justo

por seu trabalho nas plantagens, após determinado período. Diante dos

horrores

vividos na África, a

transferência

para o Brasil se constituiria em sua

salvação

. A nova e

mais branda

escravidão americana seria uma espécie de

retenção

temporária, até que os cativos pudessem pagar ao

comerciante

negreiro e ao escravizador colonial o preço de seu

resgate

da África. Por esses motivos, defendeu Rocha que a escravidão no Brasil seria “lícita, pia, católica e livre de qualquer

calúnia”. [ROCHA: 1991, 69-71]

Em seus sermões, o padre Vieira já havia dito que “era melhor ser escravo no Brasil e salvar sua alma que viver livre na África e perdê-la”, como assinalamos [Cf. Cap. 2]. Visão por sua vez que já havia sido registrada pelo abastado cavaleiro e cronista oficial do reino lusitano, Gomes Eanes Zurara [1410-1474], em

Crônicas dos feitos notáveis que se

passaram na conquista da Guiné

, de 1453, defendendo que a salvação religiosa dos africanos de suas terras justificaria a perda de suas liberdades. [ZURARA: 1981, 33-66]

Mas Manuel Ribeiro Rocha, por sua vez, alegava agora que os africanos não viviam em liberdade em seu continente, como dissera Vieira ou Zurara. Eles conheceriam – isto sim – a pior das

escravidões

: uma escravidão

demoníaca

, do corpo e da alma. Uma escravidão

sem salvação

, sem oportunidade de libertação

civil

e

religiosa

e muito mais desumana que a impetrada pelos luso-brasileiros. Desta forma mitológica, a realidade se invertia no discurso de Rocha, e os traficantes de trabalhadores escravizados se tornavam apenas

comerciantes

, vetores da salvação corporal e espiritual de seus escravizados. O Reino que implantou o comércio de cativos na África e fomentou naquele continente um comércio de seres humanos em níveis nunca antes alcançados em sua história, se transformava tão somente em

intermediário

de

trocas mercantis

com sentido civil e espiritual positivo. Enfim, os escravizadores luso-brasileiros foram mitologicamente metamorfoseados em

libertadores

de africanos e a culpa da escravidão recaía, mais uma vez, sobre os escravizados.

Era a narrativa apologética da

escravidão redentora

, inaugurada desde pelo menos Zurara, mantida por Vieira e agora reforçada por Rocha aos homens de negócios negreiros: “[...] os Comerciantes da Costa da Mina, Angola, e mais partes da África, licitamente, e sem gravame de consciência, podem trocar pelo tabaco, e mais gêneros, que ali conduzem, aqueles escravos; contanto, que neste negócio não façam mais que resgatá-los, adquirindo neles somente um direito de penhor, e retenção, enquanto não lhe pagarem o que no resgate despenderam, e o prêmio de seu trabalho; porque isto sem dúvida é comércio lícito, e livre de calúnia, e dolo, e expressamente permitido em Direito nas leis. [...] senão também positivamente pio, e católico; em razão de que estes miseráveis gentios trazidos à terra de Cristandade, recebem a santa Fé, e o sagrado Batismo, com o que se livram da infame escravidão do demônio, e pelo tempo adiante podem satisfazer, ou com os próprios serviços

extinguir a causa, ou o direito de retenção em que ficavam; vindo assim a livrar-se completamente da injustiça, e violenta escravidão, a que barbaramente os reduziram os seus próprios nacionais”. [ROCHA: 1991, 72]

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 136-139)