No contexto dessas mudanças surgiram os pareceres de Manuel Ribeiro Rocha, em seu
Etíope resgatado...
, de 1778, umelo de ligação
revigorador dos discursos de Benci e Antonil adaptados aos interesses dos escravizadores laicos mais recentes. Rocha, que também residiu e escreveu seu livro na Bahia colonial, procurou manter a legitimação da escravidão brasileira ainda sob os preceitos cristãos dos padres que o antecederam. Segundo ele, tal como em Platão, os homens nasciam livres, mas umainfelicidade
oudesgraça do destino
poderia torná-los seressujeitados
por outros. Refletindo também a visão iluminista, defendeu que a escravidão trazia em si “todas aquelas misérias, e todos aqueles incômodos, que são contrários, e repugnantes à natureza, e a condição do homem”. [ROCHA: 1991, 53]Porém, Manuel Ribeiro Rocha se preocupou com as novas idéias internacionais que reprovavam a escravidão. Desta forma, seu livro não visou condenar, mas sim amparar jurídica e moralmente os escravistas luso-brasileiros diante de qualquer crítica constrangedora chegada “aos seus ouvidos” e resolver alguns de seus “embaraços de consciência”. Com seus argumentos
teológico-jurídicos
, procurou desenvolver um conjunto de “obrigações principais com que se [...] poderão válida, e licitamente, haver, e possuir estes ditos pretos cativos”. [ROCHA: 1991, 53]Para Rocha, os escravizadores luso-brasileiros tinham uma obrigação principal:
restituir
a liberdade às pessoas reduzidas ao cativeiro na África trazidas ao Brasil. Feitos cativos em sua terra natal, por meio de guerras, punições, dívidas ou por diversos outros modosinfelizes
, os africanos seriam transbandeados à colônia lusitana por aqueles que, diante dessa situação, apenas praticavamcomércio
. Para Rocha, os traficantes luso- brasileiros eram apenascomerciantes
que iam à África trocar produtos agrícolas por genteescravizada em sua própria terra
. Alegava também que algunscomerciantes
até poderiam agir demá fé
, conscientes domal
queajudavam a fazer
no além-mar. Mas muitos outros não. Tudo dependeria do grau de conhecimento sobre como aqueles cativos haviam caído em tal condição e como deveriam delasair
.Para Rocha, o comércio não era o problema, mesmo se envolvesse a escravização de seres humanos. Ao contrário, era atividade inclusive
útil
enecessária
à Coroa lusitana e a deus, pois haveriadois tipos
deescravidões
no mundo: alegítima
e ailegítima
, obom
e omal
cativeiro. O mais importante seria que, no Brasil, cativos africanos fossemrestituídos
em sualiberdade original
através de umpagamento justo
por seu trabalho nas plantagens, após determinado período. Diante doshorrores
vividos na África, atransferência
para o Brasil se constituiria em suasalvação
. A nova emais branda
escravidão americana seria uma espécie deretenção
temporária, até que os cativos pudessem pagar aocomerciante
negreiro e ao escravizador colonial o preço de seuresgate
da África. Por esses motivos, defendeu Rocha que a escravidão no Brasil seria “lícita, pia, católica e livre de qualquercalúnia”. [ROCHA: 1991, 69-71]
Em seus sermões, o padre Vieira já havia dito que “era melhor ser escravo no Brasil e salvar sua alma que viver livre na África e perdê-la”, como assinalamos [Cf. Cap. 2]. Visão por sua vez que já havia sido registrada pelo abastado cavaleiro e cronista oficial do reino lusitano, Gomes Eanes Zurara [1410-1474], em
Crônicas dos feitos notáveis que se
passaram na conquista da Guiné
, de 1453, defendendo que a salvação religiosa dos africanos de suas terras justificaria a perda de suas liberdades. [ZURARA: 1981, 33-66]Mas Manuel Ribeiro Rocha, por sua vez, alegava agora que os africanos não viviam em liberdade em seu continente, como dissera Vieira ou Zurara. Eles conheceriam – isto sim – a pior das
escravidões
: uma escravidãodemoníaca
, do corpo e da alma. Uma escravidãosem salvação
, sem oportunidade de libertaçãocivil
ereligiosa
e muito mais desumana que a impetrada pelos luso-brasileiros. Desta forma mitológica, a realidade se invertia no discurso de Rocha, e os traficantes de trabalhadores escravizados se tornavam apenascomerciantes
, vetores da salvação corporal e espiritual de seus escravizados. O Reino que implantou o comércio de cativos na África e fomentou naquele continente um comércio de seres humanos em níveis nunca antes alcançados em sua história, se transformava tão somente emintermediário
detrocas mercantis
com sentido civil e espiritual positivo. Enfim, os escravizadores luso-brasileiros foram mitologicamente metamorfoseados emlibertadores
de africanos e a culpa da escravidão recaía, mais uma vez, sobre os escravizados.Era a narrativa apologética da
escravidão redentora
, inaugurada desde pelo menos Zurara, mantida por Vieira e agora reforçada por Rocha aos homens de negócios negreiros: “[...] os Comerciantes da Costa da Mina, Angola, e mais partes da África, licitamente, e sem gravame de consciência, podem trocar pelo tabaco, e mais gêneros, que ali conduzem, aqueles escravos; contanto, que neste negócio não façam mais que resgatá-los, adquirindo neles somente um direito de penhor, e retenção, enquanto não lhe pagarem o que no resgate despenderam, e o prêmio de seu trabalho; porque isto sem dúvida é comércio lícito, e livre de calúnia, e dolo, e expressamente permitido em Direito nas leis. [...] senão também positivamente pio, e católico; em razão de que estes miseráveis gentios trazidos à terra de Cristandade, recebem a santa Fé, e o sagrado Batismo, com o que se livram da infame escravidão do demônio, e pelo tempo adiante podem satisfazer, ou com os próprios serviçosextinguir a causa, ou o direito de retenção em que ficavam; vindo assim a livrar-se completamente da injustiça, e violenta escravidão, a que barbaramente os reduziram os seus próprios nacionais”. [ROCHA: 1991, 72]