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Velhos mitos, novas maquiagens

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 38-41)

Como lembrou o historiador Mário Maestri, para alguns defensores das ditas novas interpretações restaria à historiografia “apenas a possibilidade e o prazer de buscar entender as coisas de forma efêmera”. Modos de produção, luta de classes, exploração, classes dominantes e subalternizadas, ideologia, alienação, imperialismo, dentre termos e conceitos se tornaram abordagens “demodé”, preteridas por

temas

mais em voga como “o gosto, o beijo, o sorriso, a festa, o olhar, o espirro, o tropeção”. [MAESTRI: 2002, 214]

Em

O escravismo colonial

, como ocorre com as demais historiografias, Gorender analisou a história passada do Brasil com um pé em seu tempo, se opondo às velhas abordagens paternalistas sobre a escravidão. Os anos da produção dessa obra eram o da agonia do regime militar ditatorial; do retorno de exilados políticos vindos do exterior; da formação de novos e então combativos partidos políticos, dirigidos por sindicalistas e demais trabalhadores dos centros urbanos e industrializados do país que abalavam o país com suas greves; da organização de novos movimentos sociais reivindicadores de terra, críticos da velha estrutura latifundiária persistente praticamente em todo o continente americano, em geral, e no Brasil, em especial; enfim, eram tempos de lutas de massa pelo fim da ditadura e retorno da democracia. [KUCINSKI: 2001]

Dez anos depois, em

A escravidão reabilitada

, já no contexto reverso da vitória do neoliberalismo, Gorender reafirmou suas posições, passando em revista uma série de outras produções que, em sua opinião, resgatavam o que inclusive se pensava superado: a falsa tese da

escravidão branda

, quase sem a violência essencial que a marcou por 3/4 de história do Brasil. Ao mesmo tempo em que criticava o reducionismo economicista de algumas abordagens anteriores as suas, Gorender demonstrou que, em seu lugar, vinha se apresentando um “reducionismo culturalista”. A “crise da história” mostrou-se no fundo uma crise histórica, que há algumas décadas vinha gerando esses reducionismos e suas negações, com reducionismos invertidos. O contexto histórico no qual Gorender produziu

A

escravidão reabilitada

o atropelou, passando por cima de suas críticas com uma força esmagadora. [GORENDER: 1991; MOURA; 1990]

O presente trabalho surge com o distanciamento de quase duas décadas daquele contexto. E seu objetivo é, mais do que descrevê-lo, se posicionar diante de posições ainda hoje colocadas que já demonstram outras reações e, diante delas, buscamos trazer nossas contribuições. Não pretendemos apenas saber se os falantes em seus textos historiográficos mostraram sua visão individual ou classista de mundo, jogando-as ao passado que pretenderam estudar. O objetivo maior aqui é mostrar a qual formação discursiva pertenceu determinado texto e em quais construções mitológicas se basearam. Mostrar que o pensamento, em suas diversas maneiras de expressão, nunca está desassociado do contexto histórico de onde surgiu. Esse contexto é que nos possibilita demonstrar os motivos e as razões onde apareceram, reforçaram, reproduziram-se e até bem pouco tempo ainda vem sendo reproduzido alguns discursos justificadores da escravidão, atravessados de velhos, novos e requentados mitos.

2. DO ESCRAVISMO CLÁSSICO AO MUNDO MEDIEVAL:

as origens dos mitos sobre a escravidão.

2.1. As origens da escravidão

A escravidão é instituição relativamente recente na história do gênero humano. Em aproximadamente três milhões de anos, ou mais precisamente em duzentos mil anos desde o surgimento do Homo Sapiens, a humanidade só viria a conhecê-la, de forma sistêmica, há aproximadamente quatro mil anos. Até então, a escravidão, o Estado, a sociedade de classes e a propriedade privada foram praticamente prescindíveis aos homens. Exigindo certo nível de desenvolvimento histórico de produção e das relações sociais, a escravidão surgiu somente quando a força de trabalho pôde engendrar um excedente de bens e serviços acima das necessidades vitais do produtor direto, apropriado pelos grupos ou classes dominantes.

Tido como uma das legislações mais antigas da história, o

Código de Hamurabi

, de aproximadamente 4 mil anos, detalhou inúmeros aspectos da vida social babilônica e sobre a escravidão. Rigorosamente nivelador em respeito à aplicação das penas aos crimes – “olho por olho, dente por dente” -, o

Código

diferenciou categorias sociais e revelou a existência de pessoas escravizadas, que, assim como as mulheres e as crianças,

pertenciam

aos

homens livres

daquela sociedade. Feita por e para esses

proprietários

, previa tratamento extremamente duro aos crimes entres homens de semelhante posição social. Também exigia compensação em prata às ofensas cometidas a pessoas de situação social subalternizada (

plebeus

). E, por fim, em caso de

inutilização

de cativo alheio, ressarcimento ao escravizador

lesado

: “Se um homem cegou um olho de um homem livre, o seu próprio será cegado. Se de um plebeu, pagará uma mina de prata. Se cegou o olho de um escravo, ou quebrou-lhe um osso, pagará a metade do seu valor. Se tiver arrancado os dentes de um homem de sua categoria, os seus próprios dentes serão arrancados”. [PRADO: 2004, 13]

Há aproximadamente 3.300 anos, os hebreus acreditavam que seu deus, por intermédio do profeta Moisés, lhes entregara

dez mandamentos

reguladores sobre, entre outras questões e deveres, o

servo

e as demais

coisas

dos homens. No décimo e último mandamento, Javé decretara que a casa, a mulher, os cativos, os animais de carga e tudo mais que pertencesse ao hebreu não devesse ser cobiçado pelos demais: “Tu não cobiçarás a casa do teu próximo, nem sua mulher, nem seu servo, nem sua serva, nem seu boi ou seu

jumento, nada que seja do teu próximo”. [ÊXODO: 20,17]

Através dos tempos, a Bíblia vem sendo traduzida e adaptada à linguagem de cada época. A tradução aqui utilizada apresentou entre as demais

coisas

do hebreu o “servo” e a “serva”. Em outras traduções, porém, é possível constatarmos para os mesmos sujeitos termos como

criado

e

criada

,

servidor

e

servidora

,

empregado

e

empregada

,

trabalhador

e

trabalhadora

, etc., conforme o entendimento de cada tradutor. Algumas versões chegaram mesmo a suprimir os animais “boi” e “jumento”, decerto para que a generalização coisificadora original do livro sagrado não choque olhos contemporâneos. Contudo, nas línguas românicas, “servos” derivam da palavra latina se

rvus

. Ou seja, designam homens e mulheres escravizados existentes na formação social hebraica e arrolados em sua legislação político-religiosa. [BÍBLIA SAGRADA: 2004]

No documento 2007HemersonJosiasdaSilvaFerreira (páginas 38-41)