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3.2 Os instrumentos de gestão

3.2.4 Cobrança pelo uso da água

A possibilidade de cobrar pelo uso da água já era prevista no Código de Águas de 1934, como pode ser visto no parágrafo 2º do artigo 36, ao estabelecer que o uso comum das águas pode ser gratuito ou retribuído. Entretanto, no seu artigo 34 ressalta que é assegurado o uso gratuito de qualquer corrente ou nascente de água, para as primeiras necessidades da vida.

O princípio da cobrança pelo uso de recursos naturais também consta na Lei 6.938/81, no seu artigo 4º, inciso VII, ao dizer que a Política Nacional do Meio Ambiente visará: “à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de

recursos ambientais com fins econômicos.”

A cobrança pelo uso da água fundamenta-se no “Princípio Poluidor(a) Pagador(a)” definido pela OCDE, em 1975, que se baseia na necessidade de que os(as) poluidores(as) arquem com os custos da poluição, e por extensão que os(as) usuários(as) de um recurso natural arquem com os custos de sua gestão.

A cobrança pelo uso dos recursos hídricos está de acordo com o princípio 16 da Declaração do Rio de Janeiro da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992:

“As autoridades nacionais devem esforçar-se para promover a internalização dos custos de proteção do meio ambiente e o uso dos instrumentos econômico, levando-se em conta o conceito de que o poluidor deve, em princípio, assumir o custo da poluição, tendo em vista o interesse do público, sem desvirtuar o comércio e os investimentos internacionais.” (Setti, 2000).

Esta redação do Princípio 16, da Eco–92, deixa claro que a questão ambiental em geral, e a dos recursos hídricos em particular, está submetida a interesses do mercado internacional, ao prevalecer a idéia de que, segundo o referido princípio, a gestão dos recursos naturais deve ser realizada “sem desvirtuar o comércio e os investimentos internacionais”. Deixa evidente também a tentativa de reduzir a questão do meio ambiente a um problema de valoração financeira dos recursos naturais.

A Cobrança pelo uso da Água é um dos instrumentos de gestão previsto na Lei 9.433/97, configurando-se como um dos mais polêmicos. A referida lei diz, no seu artigo 19, que os objetivos da cobrança seriam: “I – reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário/a uma indicação de seu real valor; II – incentivar a racionalização do uso da água; III – obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos Planos de Recursos Hídricos.” (Brasil, 1997).

O artigo 22, da Lei 9.433/97, diz que os recursos arrecadados na bacia deve ser aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica que foram gerados, e devem ser utilizados para: “I – no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos

nos planos de recursos hídricos; II – no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.” (Brasil, 1997).

A cobrança pelo uso da água é bastante questionada, tanto no seu fundamento quanto na sua implementação. Os argumentos de que a cobrança vai dar ao(a) usuário(a) uma indicação do real valor e incentivar o uso racional da água, são sofismas, que tentam induzir as pessoas a reduzir a questão do valor da água a uma única escala de valor, a escala econômica-financeira e reproduzir o predomínio que a racionalidade econômica-financeira tem sobre as outras racionalidades (social, ambiental, cultural, etc), situação típica do sistema capitalista.

Na realidade a compreensão do real valor da água deve ser analisado numa matriz onde sejam considerados os valores sociais, ecológicos, culturais e econômicos, e não na simples precificação da água. A percepção desse real valor da água não se dará a partir de uma mera cobrança financeira, mas como resultado de um processo de conscientização e da construção de uma racionalidade ambiental que garanta um uso sustentável da água.

A cobrança pelo uso da água pode vir a ser um instrumento importante, desde que seja definido, com bastante transparência, enquanto um instrumento de gestão que sirva para o combate ao desperdício da água e como uma forma de arrecadação para a sustentabilidade financeira do sistema de gestão dos recursos hídricos. Em vez de tentar justificá-la com a utilização de objetivos fictícios de racionalização do uso da água ou da percepção do seu real valor.

A possibilidade de legitimar a cobrança enquanto fonte de recursos para a gestão só é viável se houver um controle social na definição dos valores e na decisão da aplicação dos recursos. É necessário garantir que os recursos sejam utilizados exclusivamente para a gestão dos recursos hídricos.

O controle social sobre a cobrança pelo uso da água deve ser realizado a partir do Comitê de Bacia Hidrográfica, para isso é necessário garantir aos comitês a atribuição de aprovar os valores e critérios da cobrança, bem como o acompanhamento e fiscalização da arrecadação e aplicação dos recursos, com poder decisório a respeito dos percentuais destinados ao sistema de gestão e os destinados a algum investimento

na bacia, ou seja, é preciso que os comitês de bacias tenham a atribuição de aprovar um plano anual de utilização dos recursos arrecadados.

No entanto, a Lei 9.433/97, apesar do discurso da gestão participativa, demonstra ter poucos espaços para o efetivo controle social na implementação da cobrança pelo uso da água. No seu artigo 22, diz que os recursos oriundos da cobrança serão aplicados “prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados”, não deixando claro quem define essa “prioridade”.

Já no artigo 38, inciso VI, diz que compete aos comitês de bacias: “estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso dos recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados”, ou seja, pela referida lei, os comitês não tem poder decisório sobre os critérios de cobrança e nem sobre os valores a serem cobrados nas suas respectivas bacias, apenas estabelece e sugere. Outro aspecto a ser considerado é que a Lei 9.433/97, não estabelece nenhuma atribuição aos comitês de bacias em relação ao acompanhamento e fiscalização da arrecadação e da aplicação dos recursos oriundos da cobrança pelo uso da água.

Se o processo de cobrança pelo uso da água for implementada sem um efetivo controle social e considerando apenas os aspectos econômicos, em detrimento dos aspectos sociais e ecológicos, há um sério risco de se transformar num mecanismo de exclusão, fazendo com que só possa utilizar a água os(as) usuários(as) que tenham dinheiro suficiente para pagar.

Dada a polêmica que gira em torno deste instrumento de gestão, é importante que todo o processo de implementação da cobrança seja feito de forma transparente e participativo, envolvendo os comitês de bacias e a sociedade em geral.

É necessário que o processo transcorra garantindo a transparência, ou seja, que os comitês de bacias, além de participar das etapas de estudo, planejamento e implementação da cobrança, tenham claro como se dará o fluxo desses recursos e os mecanismos de controle social para o acompanhamento da sua alocação.