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Grande parte da literatura existente sobre recursos hídricos trata da questão dos direitos de propriedade sobre a água, e percebe-se a predominância do discursos de que é necessário a definição clara dos direitos de propriedade. Que aliado ao chavão ideológico de que “a água é um bem econômico” e da necessidade de “internalizar as externalidades”, acaba por servir de argumentação para que a água seja submetida a uma lógica de direito privado e do mercado. Esse contexto pode ser usada como argumento para fundamentar a privatização dos bens públicos e, assim, a conversão da propriedade comum em direitos individuais de propriedade (property rights) e a aplicação do sistema de regras daí resultante.

Segundo a abordagem neoclássica, o mau uso dos recursos naturais ocorre porque não é propriedade de ninguém, ou seja é um bem comum. E numa economia de livre mercado, como nenhum agente específico pode exigir o direito de propriedade sobre o meio ambiente, este é um bem sem preço e não cabe qualquer compensação (monetária) pela sua degradação, ou seja, não há motivação econômica para reparar o dano (Almeida, 1998).

Essa abordagem entende que a degradação ambiental e o mau uso da água é motivada pela ausência de direitos de propriedades sobre os bens comuns da humanidade, e define isso como a “tragédia dos bens comuns17”.

Entretanto, em relação ao tratamento das questões ambientais, verificamos que o problema não esta no fato de existirem bens comuns, mas na lógica individual e de curto prazo que a abordagem neoclássica tenta estabelecer como racionalidade dominante

17 O termo “tragédia dos bens comuns”, foi definido por Hardin (1968), a partir de uma abordagem neoclássica, sendo relativo ao

que pertence a todos, e portanto, ninguém, encontra-se excluído do enfoque do cálculo econômico privado. Ainda que cada um obtenha uma vantagem do bem comum e do seu estoque, não seria racional ter consideração para com este bem comum, se isto provoca incômodos ou até mesmo custos monetários e se os outros também não manifestarão consideração. (Altvater 1995, p. 134).

para a gestão dos recursos naturais. A realização dos interesses individuais, ao contrário do que prega a teoria neoclássica, “não conduz somente ao aumento dos benefícios públicos, mas tragicamente também à destruição das bases comuns da vida”. (Atvater, 1995, p. 134).

Analisando a literatura pertinente, foi possível identificar duas doutrinas principais que definem a questão do direito sobre a água, e que historicamente fundamentaram a elaboração jurídica em relação ao uso dos recursos hídricos de vários países no mundo, são as doutrinas de direitos ribeirinhos e de direitos de apropriação.

Essas doutrinas serviram de base ao direito da água num número muito elevado de países e, por isso é importante esclarecer bem as suas diferenças essenciais em relação a diversos aspectos tais como a forma de aquisição dos direitos, a finalidade de utilização da água, a quantidade de água assegurada, a propriedade de utilização da água, e a transmissão e perda de direitos, que serão apresentados a seguir, baseado em Cunha et al. (1980).

Quanto a forma de aquisição, os direitos ribeirinhos constituem-se e adquirem- se pela posse e propriedade da terra que é contígua a um curso de água ou lago. E os

direitos de apropriação constituem-se e adquirem-se, geralmente, mediante um título de

concessão do direito de apropriação da água, conferido por entidades públicas.

Quanto a finalidade de utilização são semelhantes, baseando-se em prioridades de usos (utilizações naturais e artificiais).

Quanto a quantidade de água asseguradas, os direitos da apropriação garantem uma quantidade bem determinada a ser captada em determinado ponto e consumida com determinado fim em determinado local e durante determinado período. Enquanto o

direito ribeirinho não especificam qualquer quantidade, dizendo apenas que os(as)

proprietários(as) ribeirinhos(as) têm direito a compartilhar eqüitativamente a água, a qual pode ser captada em qualquer ponto do seu terreno.

Quanto ao transmissão de direitos, o direito ribeirinho está associada a propriedade e posse da terra. No caso do direito de apropriação pode variar em três modalidades, associada a terra, título intransferível, ou seja, se o usuário não quiser mais a água, quem determina para quem vais ser transferida essa água é o órgão gestor, e o caso de direitos de apropriação de água transferíveis.

Quanto a perda do direito, as duas doutrinas são semelhantes até certo ponto, pois nos dois casos, os direitos podem perder-se por caducidade, por renúncia do proprietário, por utilização não benéfica da água, por condenação do(a) proprietário(a), ou por abandono da terra.

Percebe-se que a doutrina de direito de apropriação é o fundamento mais usado na elaboração de política de recursos hídricos no mundo, inclusive no Brasil. No caso da transmissão de direitos, apresenta uma definição muito ampla e possível de conceber modelos de gestão de água bastante diferentes. Esta doutrina define que o direito de uso da água seria atribuído ao usuário mediante um título de concessão do direito de apropriação da água, conferido por entidades públicas. Esse título de direito de uso de água pode ser de três formas: 1 - definido pela posse da terra, onde o usuário repassa o direito de uso da água ao vender a terra a que esta associado esse direito; 2 - direitos de

apropriação de água transferíveis, onde o título de direito de água é inicialmente

disponibilizado pelo poder público (órgão gestor) através de outorga de direito de uso da água transferíveis e/ou através de leilões de títulos de água, e a partir daí os direitos de apropriação da água poderiam ser transferidos e transacionado livremente entre os(as) usuários(as), resultando num mercado de águas; 3 - direitos de apropriação de

água intransferíveis, nesse caso, a partir de uma solicitação do(a) usuário(a) e havendo

disponibilidade de água, o órgão gestor emite uma outorga de direito de uso de água. Essa outorga não é definitiva, ou seja, depois de um certo tempo o(a) usuário(a) terá que solicitar outra outorga, esse tempo de validade da outorga é definido pela realidade de cada país ou região, dependendo da disponibilidade de água, do tipo de clima, etc. Essa outorga intransferível, ou seja, se o usuário não quiser mais a água, quem determina para quem vais ser transferida essa água é o órgão gestor.

É necessário fazer uma diferenciação entre o direito de usar a água e o direito de propriedade sobre a água. O primeiro diz respeito a um direito legítimo de toda as pessoas em ter acesso a água em quantidade e qualidade adequadas. Já o segundo diz respeito a quem cabe definir os critérios de uso, controle e conservação da água, ou seja, se privado ou público.

Se as propriedade sobre a água for privada, o único critério para definir o uso, controle e conservação, seria o critério individual, baseado em interesses particulares e na maximização do lucro e da exploração da água.

Em sendo pública a propriedade sobre a água, ou seja, considerando a água um bem público de uso comum do povo, os critérios de uso, controle e conservação da água deverão ser orientados para a maximização da satisfação da sociedade, buscando um equilíbrio entre os aspectos sociais, ecológicos e econômicos.

A propriedade pública da água leva consequentemente à definição do Estado como responsável pelo gerenciamento de seu uso, controle e conservação. Essas ações seriam definidas a partir de uma política de gestão dos recursos hídricos baseada em princípios, normas, instrumentos e critérios bem claros, definidos com a participação efetiva da sociedade.

A necessidade de manter a água enquanto um bem público é justificável por ser um elemento essencial em todas as atividades humanas e para a manutenção da vida no nosso planeta. Sobre a necessidade de publicização dos bens importantes para a sociedade, Granziera (2001, p. 90), sublinha que:

“quanto maior a importância de um bem à sociedade, maior a tendência a sua publicização, com vistas na obtenção da tutela do Estado e da garantia de que todos poderão a ele ter acesso, de acordo com os regulamentos estabelecidos.”

O direito de uso da água é muitas vezes confundido com o direito de propriedade sobre a água, com o intuito de gerar uma confusão conceitual e no meio dessa indefinição ficar mais fácil passar de uma lógica de direito de uso para outra de direito de propriedade privada da água.

Para usar a água, bem público de uso comum, deve haver uma autorização de uso, intransferível, emitida por uma entidade pública responsável pela gestão dos recursos hídricos, o que não deve ser confundido com o direito de propriedade privada sobre a água, ou seja, a lógica de apropriação da água, não deve ser uma lógica de apropriação privada individual, mas uma apropriação organizada por uma entidade pública com a participação da sociedade, numa perspectiva de controle social sobre esse recurso fundamental para a vida e para o desenvolvimento.

Nessa discussão sobre a forma de apropriação da água, inicialmente é necessário uma compreensão da diferença entre um bem privado e um bem público. O que caracteriza um bem privado é a aplicação dos princípios de rivalidade no consumo, ou seja a possibilidade de utilizar um bem individualmente, e de exclusão, que seria a situação onde quem não paga não tem acesso a um determinado bem.

A água não pode se submeter ao princípio de rivalidade, ou seja, um(a) usuário(a) de água não pode ser um(a) consumidor(a) individual, pois num mesmo manancial de água coexistem vários(as) usuários(as), e muitas vezes devido ao caráter fluído e dinâmico da água um uso pode interferir em relação a quantidade e a qualidade da água necessária a outros usos.

A água, da mesma forma, não se enquadra no princípio de exclusão, pois mesmo que uma pessoa não possa pagar pela água, ela tem direito pois é uma condição necessária a sua sobrevivência. Sem contar que a água é fundamental para o sistema ecológico como um todo, na medida que é responsável por serviços ambientais, necessários a manutenção na vida no nosso planeta.

A saída não é simplesmente transformar os bens públicos em bens privados, mas definir critérios e normas para a utilização desses bens públicos, com a participação efetiva da sociedade, ou seja, com controle social da questão de uso, controle e conservação dos bens públicos. Dessa forma é possível garantir o direito de acesso a água em quantidade e qualidade suficiente a todos, e o direito das futuras gerações de terem a disponibilidade de água para satisfazerem suas necessidades.

Sobre a questão da propriedade de recursos naturais, Cooter e Ulen apud Carneiro (2001), explicita que alguns recursos naturais não são passíveis de sujeição a exclusividade inerente ao regime de propriedade privada, ou seja, a lógica do mercado, seja em razão da natureza fluida, dispersa ou difusa desses recursos, seja pelos elevados custos de apropriação, que seriam seguramente maiores que os benefícios auferidos.

Essa posição vem fundamentar uma situação que é perceptível em relação a apropriação privada dos recursos hídricos, ou seja, a água não pode se submeter ao regime de propriedade privada, na medida que apresenta características de ser um recurso fluido, que circula na natureza, ser fundamental a existência da vida, estar distribuída de forma espalhada no espaço e apresenta uma quantidade muito grande de usuários(as) distribuídos(as) de maneira difusa.

Em relação ao caráter da água enquanto um bem público, a Constituição Federal, no seu Art. 225, estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações”. (Brasil, 1997b).

Nesse sentido, a água é um dos elementos do meio ambiente, e isto faz com que se aplique a água o enunciado no caput do artigo 225 da Constituição Federal: todos(as) têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo. Portanto, a água enquanto um recurso ambiental é um “bem de uso comum do povo”.

Em relação ao domínio público da água, previsto na Constituição, ainda era alvo de algumas polêmicas, resultado de interpretações variadas, pois não havia esta afirmativa textualmente. Entretanto com a edição da Lei nº 9.433/97 quaisquer dúvidas foram eliminadas pois a mesma estabelece no seu Art. 1º , inciso I, que “ a água é um bem de domínio público” (Brasil, 1997, p.10).

O fato da água ser entendida enquanto um bem público de uso comum, coloca a necessidade de que o Estado seja o ente responsável pelas ações de uso, controle e conservação dos recursos hídricos. A água é um bem dominial do Estado, e através do órgão gestor, pode definir critérios, regulamentos e normas de uso da água, mas não pode alienar a água.

Faz-se necessário diferenciar o que é bem dominial e o que é bem dominical. O bem dominical é aquele que “integra o patrimônio privado” do Poder Público. O seu traço peculiar é a “alienabilidade”, ou seja o Estado poderia vender. No caso do bem

dominial, este é um bem da sociedade, administrado pelo Estado, ou seja, o Estado não

pode alienar esse tipo de bem. No artigo 18 da Lei 9.433/97, atesta que a água não faz parte do patrimônio privado do Poder Público, ao dizer que as águas são inalienáveis. A inalienabilidade das águas marca uma de suas características como bem de domínio público (Setti, 2000).

No caso específico do Brasil, a Lei 9.433/97 que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, adota a doutrina de apropriação de água, estabelecendo no seu artigo 18 que “A outorga não implica a alienação parcial das água que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso” (Brasil, 1997). A referida Lei, não define se a outorga pode ser transferível ou não, deixando essa definição para ser regulamentada posteriormente. A referida Lei diz que a água é inalienável, mas por outro lado, deixa espaço para a possibilidade de alienação dos direitos de uso da água, a outorga. A Constituição Federal estabelece que a água é um bem público, portanto inalienável, o que impede a formação de um mercado de água propriamente dita, entretanto a Lei

9.433/97, ao não definir que a outorga é intransferível, abre espaço para a formação de uma mercado indireto da água, ou seja, um mercado de direitos de uso de água.

No caso do Ceará, o Decreto N° 23.067, de 11/02/1994, que regulamentou o artigo 4° da Lei N° 11.996 de 24/07/92, na parte referente à outorga do direito de uso dos recursos hídricos, estabelece os critérios para a liberação de outorga, e no seu Art. 25 afirma que a outorga “tem caráter de uso singular, personalíssimo e intransferível, vedada de resto a mudança da finalidade do uso assim como dos lugares especificados nos respectivos atos de outorga para captação” (SRH, 1994, p. 10). A legislação atual do Ceará, utiliza a doutrina de direitos de apropriação de água intransferíveis, entretanto já existe um projeto de atualização da Legislação Estadual de Recursos Hídricos, onde é proposto a mudança para um sistema de outorgas transferíveis, o que abre a possibilidade da constituição de mercados de direito de uso da água.