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A Bacia Hidrográfica do Curu apresenta as condições necessárias para essa análise, apresentando vários usos característicos (perímetros públicos, agroindústrias, irrigação privada, abastecimento humano, etc.), uma situação de impossibilidade de aumento significativo da oferta (construção de novos açudes), teve seu Comitê de Bacia, o primeiro instalado no estado, em outubro de 1997 e é uma bacia onde os instrumentos de gestão vem sendo utilizado a um certo tempo.

A bacia hidrográfica do Curu, por ter sido inicialmente identificada como bacia piloto pela Política Estadual de Recursos Hídricos, apresentou-se como uma Região onde foram realizados vários estudos pioneiros no Estado, que objetivaram instrumentalizar a gestão dos recursos hídricos (Plano Diretor da Bacia - 1995, Cadastramento dos Usuários - 1996, Estudos sobre cobrança pelo uso da água – 1998).

Outro aspecto é a existência do vale perenizado, onde ocorre uma concentração da área irrigada e de outros usos, estabelecendo uma interdependência e um potencial conflito entres esses usos.

A Bacia do Curu é composta por 15 município: Paraipaba, Paracuru, São Gonçalo do Amarante, Umirim, São Luis do Curu, Pentecoste, General Sampaio,

Apuiarés, Tejuçuoca, Itapajé, Irauçuba, Caridade, Paramonti, Canindé, Itatira. Existem os municípios situados no vale perenizado, onde estão concentradas as áreas irrigadas, e os que estão fora do vale e funcionam apenas como bacia de contribuição para os grandes açudes da bacia.

As entrevistas foram realizadas com representantes das duas áreas, com o objetivo de identificar as diferenças de compreensão entre os representantes dessas realidades, sobre o processo de gestão em desenvolvimento e de que forma os município se insere nesse processo: a) Municípios situados no vale perenizado (vale): Paraipaba, Paracuru, São Gonçalo do Amarante, Umirim, São Luis do Curu, Pentecoste, General Sampaio, Apuiarés; b) Municípios situados fora do vale perenizado (sertão): Tejuçuoca, Itapajé, Irauçuba, Caridade, Paramonti, Canindé, Itatira).

Dentre os vários tipos de usos identificados foram contemplados os seguintes segmentos: Perímetros Públicos Irrigados; Agroindústrias; Irrigantes Privados; Abastecimento Humano das Sedes Municipais e Pescadores(as).

A necessidade de contemplar essas categorias na escolha dos(as) entrevistados(as), passa pela compreensão da água como um recurso de múltiplos usos, buscando entender qual o impacto da gestão no processo de alocação de água para cada tipo de uso, bem como analisar qual o peso de cada uso na tomada de decisão de liberação de água dos açudes.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Curu foi o principal universo de coleta de informações através das entrevistas. O referido comitê é composto por 50 representantes, divididos em quatro setores, com a seguinte distribuição: 15 membros do setor usuário; 15 do setor sociedade civil; 10 do poder público municipal e 10 do poder público estadual/federal.

A escolha do Comitê como universo de pesquisa, para coletar os dados foi resultado da constatação da sua representatividade em relação bacia, ou seja, grande parte das instituições que lidam com recursos hídricos fazem parte do Comitê. E são os(as) representantes dessa instituições que deliberam sobre o processo de alocação de água no Curu, dessa forma teriam, em relação a bacia, informações acumuladas que foram importantes para esta pesquisa. Vale ressaltar que muitos dos atuais membros estão nesse processo desde o início, em 1994.

No levantamento de dados para a pesquisa foram considerados os seguintes segmentos que compõem o colegiado do Comitê da Bacia do Curu, devendo ser entrevistados(as) pelo menos um(a) representante de cada segmento, se existir representação no colegiado, escolhidos aleatoriamente, nas duas áreas identificadas (vale e sertão): Abastecimento Humano; Agroindústrias; Associações Comunitárias; Irrigantes Privados; Perímetros Públicos; Pescadores(as); Prefeituras; Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais; Vazanteiros(as).

Além dos segmentos citados acima, foi entrevistados o atual presidente do Comitê do Curu, com o objetivo de verificar como vem se dando o processo organizativo interno do comitê, o nível de autonomia em relação as deliberações e o relacionamento com as instituições que compõem o SIGERH.

Foram entrevistados também os dirigentes dos órgãos públicos do Sistema Estadual dos Recursos Hídricos, com o objetivo de entender como se deu o processo de implementação da gestão dos recursos hídricos no Ceará, na visão de seus agentes técnicos. Foram entrevistados os dirigentes dos seguintes órgãos públicos: Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos – COGERH; Superintendência de Obras Hidráulicas – SOHIDRA; Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos – FUNCEME.

2 A ÁGUA NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES ENTRE SOCIEDADE E NATUREZA

O mundo passa hoje por uma crise ambiental sem precedente na história da humanidade. Não são apenas problemáticas locais e regionais, mas repercussões globais das ações antrópicas, resultado de uma incessante busca pelo lucro, sem respeitar os limites de estabilidade e adaptação dos ecossistemas. Essa situação pode ser verificada quando é discutido a depleção da camada de Ozônio, o aumento do Efeito Estufa, a perda da Biodiversidade, a crescente escassez de água, etc. Além disso, existem outras questões que na nossa concepção também são ambientais: o aumento do “fosso” entre as nações ricas e as nações pobres o que provoca um “intercâmbio ecologicamente desigual”(Alier, 1995); a perda de qualidade de vida das populações trabalhadoras, o aumento da fome e da miséria no mundo. A crise é na realidade “sócio-ambiental” (Waldman, 1998), ou mais, uma “crise de civilização”, como afirma Leff (2001, p. 59):

“a problemática ambiental – a poluição e degradação do meio, a crise de recursos naturais, energéticos e de alimentos – surgiu nas últimas décadas do século XX como uma crise de civilização, questionando a racionalidade econômica e tecnológica dominantes. Essa crise tem sido explicada a partir de uma diversidade de perspectiva ideológicas. Por um lado, é percebida como resultado da pressão exercida pelo crescimento da população sobre os limitados recursos do planeta. Por outra, é interpretada como efeito da acumulação de capital e da maximização da taxa de lucro a curto prazo, que induzem a padrões tecnológicos de uso e ritmos de exploração da natureza, bem como formas de consumo, que vêm esgotando as reservas de recursos naturais, degradando a fertilidade dos solos e afetando as condições de regeneração dos ecossistemas naturais.”

Em relação a crise ambiental, é importante não cair numa discussão demasiadamente genérica ao afirmar que homens e mulheres, a espécie humana, a humanidade ou a sociedade estão destruindo a natureza. Antes é fundamental dizermos de qual sociedade estamos nos referindo, pois apesar do discurso hegemônico, não se pode negar que a sociedade atual é o resultado da divisão social do trabalho ou do

desenvolvimento desigual da economia capitalista internacional, o que é o mesmo. Nesse sentido Waldman (1998, p. 11 e 12 ) argumenta que,

“ora, é uma descomunal cegueira política falar em desequilíbrio ambiental apontando-se responsáveis tão indiferenciados quanto ‘atividade industrial’, ‘homem’, etc. De que ‘homem’ ou ‘atividade industrial’ estamos, enfim, falando? Em uma sociedade dividida em classes como a nossa, este ‘homem’, estaria identificado com o proprietário dos meios de produção ou com o trabalhador ‘livre e assalariado’? Em outras palavras: em uma companhia de celulose que devasta a floresta, colocaríamos em um mesmo plano o proprietário e o trabalhador, ou seria necessário fazer um ‘corte social’ para melhor identificar o problema? (...) Assim é necessário recordar que vivemos em um regime regido por uma divisão social do trabalho, onde a uns cabem as decisões e a outros, o cumprimento de diretrizes previamente traçadas. O caráter privado da propriedade no regime capitalista determina um apropriação privada da natureza, seja em escala local, nacional ou mesmo mundial, dado o caráter de internacionalização do capitalismo”.

A crise ambiental por que passa o mundo não pode ser entendida dissociada do atual modo de produção dominante, que determina a forma de apropriação dos recursos naturais, bem como da distribuição desigual dos custos e dos benefícios dessa apropriação. Esse modo de produção dominante ocorre hoje num contexto de globalização econômica, guiada pelos princípios do chamado “Consenso de Washington” e com regras universais definidas por corporações e mercados financeiros. Um modelo de economia baseado na convicção de que as economias de mercado constituem a única opção econômica para o mundo inteiro. A chave desse modelo é o

mercantilismo, onde tudo está disponível para compra e venda, inclusive os bens

comuns da natureza, onde os aspectos de uso, controle e conservação dos recursos naturais deveriam ser resolvidos pela lei do mercado.

Altvater (1995, p. 29), analisando o sistema industrial capitalista, que representa o atual modo de produção dominante, afirma que,

“o moderno sistema industrial capitalista depende de recursos naturais numa dimensão desconhecida a qualquer outro sistema social na história da humanidade, liberando emissões tóxicas no ar, nas águas e nos solos, e portanto também na biosfera. Nestes termos, necessita de recursos naturais (energias e matérias-primas e também cada vez mais fontes genéticas localizadas sobretudo no Sul) e precisa de ‘recipiente’ (locais de despejo onde os rejeitos gasosos, líquidos e sólidos possam ser absorvidos ou depositaos).”

Nessa citação já observa-se a preocupação do autor com a problemática da biotecnologia, ou seja, os recursos genéticos da natureza, principalmente aqueles

localizados no terceiro mundo. Este é um tema atual e vai ser a tônica desse terceiro milênio em relação a nova fronteira de expansão do capital.

A expansão do capital não considera os espaços naturais nem tampouco o tempo ecológico. Pelo contrário, tenta incorporar os espaços naturais à sua lógica e submeter o tempo ecológico ao tempo econômico. Essa situação leva a subversão da natureza e resulta na crise ambiental pela qual o mundo passa hoje.

Alier (1995, p. 177/178), analisando esses aspectos, afirmava que a incorporação desses novos espaços à lógica de produção capitalista para extrair os recursos naturais, leva a uma situação onde:

“la produción en el espacio incorporado, ya no es regida según los valores ni según los tiempos de la reproducción de la naturaleza. Al ser modificadas las relaciones espaciales, son tambíen alteradas las relaciones temporales (Mires, 1990). El antagonismo entre un tiempo económico, que debe marchar segun el rápido ritmo impuesto por la circulación del capital y la tasa de interés, y el tiempo biológico, que transcurre según ritmo de la naturaleza, se expresa en la destrucción de la naturaleza y de las culturas que valoraban de outra manera los recursos naturales. Al poner en valor nuevos espacios , modificamos los tiempos de producción, y el tiempo económico-crematístico triunfa sobre el tiempo ecológico. Esa victoria, claro está, es sólo aparente”.

Por isso, não basta apenas criar reservas e santuários ecológicos. É necessário questionar o atual modelo civilizatório, que se fundamenta numa racionalidade econômica de curto prazo e maximizadora de lucro, estabelecendo uma relação entre sociedade e natureza baseada na sobreexploração do trabalho e dos recursos naturais, gerando a degradação ambiental e a degradação humana.