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Para a implementação de um sistema de gestão integrada dos recursos hídricos tem-se adotado alguns princípios básicos, reconhecidos internacionalmente, que são a consideração dos usos múltiplos da água, a bacia hidrográfica como unidade de planejamento, a não dissociação dos aspectos qualitativos e quantitativos da água, e que a água deve ser reconhecida enquanto um bem de valor econômico.

Este último tem sido muito utilizado como argumentação dos(as) defensores(as) da mercantilização da água, ou seja, dos que defendem que a água deve ser tratada como uma mercadoria, onde sua alocação deveria ser definida pela relação oferta x demanda, obedecendo as sinalizações do sistema de preços, o "mercado de águas". Sobre essse assunto, Petrella (2002, p. 16), afirma que,

"a consagração formal da adesão ao princípio de que a água deve ser reconhecida como um bem econômico, ocorreu, em 1992, na conferência de Dublin. Um dos quatro princípios chaves da proclamação de Dublin declara –

pela primeira vez de maneira formal em nível intergovernamental – que a água é um bem econômico. Esse documento é sistematicamente utilizado para legitimar a mercantilização da água."

Desde meados dos anos 70, um poderoso trabalho ideológico tem sido realizado pelas multinacionais da água para que a lógica de mercantilização da água seja aceita. Elas conseguiram obter o apoio da tecno-burocracia internacional, do mundo científico e dos especialistas, reunidos organismos internacionais profissionais (Petrella, 2002).

Nos anos 80, com o avanço do neoliberalismo e da globalização da exploração capitalista; os bens de uso comum passam, a serem vistos como mercadoria, entre estes a água. Isso vem ocorrendo desde o momento em que os principais centros financeiros do mundo se deram conta que a expansão e estabilidade capitalista passaria pela exploração da água como produto, por isso adotaram uma estratégia de mercantilização e privatização das águas. Foi dado início, então, ao processo de dominação do conhecimento e expansão das ações para a formulação de modelos legislativos e normativos de gestão de recursos hídricos, passando a pressionar os governos dos países ricos para usarem o FMI e o Banco Mundial como instrumentos para a imposição de mecanismos que possibilitassem a privatização das águas, inicialmente por meio da compra de empresas do setor de saneamento e abastecimento e posteriormente com a imposição de mecanismos de mercado na gestão da água.

Essa hegemonia ideológica da abordagem neoliberal nas discussões sobre recursos hídricos não foi estabelecida ao acaso. Foi construída historicamente desde as primeiras conferências internacionais sobre água, influenciadas e patrocinadas por governos neoliberais, empresas privadas multinacionais e os organismos financeiros internacionais (Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, etc), que resultaram na construção do Conselho Mundial da Água (WWC) (organização privada composta de representantes do mundo científico, organizações internacionais, entre estas o Banco Mundial, e empresas privadas multinacionais) que criou o "Fórum Mundial da Água", e foi incumbido de elaborar a “Visão Mundial da Água”, que norteia a “Política Mundial da Água”, implementada por diversos organismos internacionais, com conseqüente rebatimento nos Estados nacionais.

Esta compreensão de que a água é essencialmente um bem econômico e por isso deve ser valorado e alocado usando como critério primordial a racionalidade econômica de mercado, é uma idéia baseada em uma escolha puramente ideológica. Essa escolha é,

por sua vez, baseada na asserção de que o mercado é o mecanismo principal, superior a todos os demais (regulamentação política, cooperação ou solidariedade), quando se trata da distribuição ótima de recursos materiais e imateriais, e o mais eficiente para a distribuição da riqueza produzida. Um modo de pensar que reduz tudo a forma de mercadoria e todos os valores ao valor de intercâmbio de mercado (Petrella, 2002).

Entretanto, a água é um recurso único, bastante diferente de outros recursos, ao qual os seres humanos têm forçosamente que recorrer para satisfazer suas necessidades básicas individuais e coletivas. Sua natureza única depende, entre outras coisas, do fato que nada pode substituí-la.

Altvater (1995), afirma que o mercado não é capaz de regular todas as transações de troca com os mecanismos que lhe são próprios (com base na dinâmica da oferta e da procura), de modo que estes transcorrem ao largo da sua capacidade de regulação. O mercado sempre é demasiado limitado para a abrangência temporal e espacial das transações econômicas. Mais ainda, com sua obrigação de expansão no tempo (acumulação de capital) e no espaço (expansão geográfica, isto é, a incorporação de novos espaços a lógica do capital) o mercado produz efeitos que não podem ser elaborados em seu sistema de regulação temporal e espacialmente limitado. Por isso, os efeitos externos são, antes de tudo, não mais internalizáveis, e apontam para um déficit de socialização próprio do mercado, que precisaria ser superado não mediante a "internalização das externalidades", mas mediante formas não-mercantis de regulação social.

Martins e Felicidade (2001, p. 32), alerta que o alcance dos instrumentos econômicos na gestão dos recursos hídricos pode ser bastante limitado, pois os pressupostos segundo os quais a aplicação de tais instrumentos se baseia, ou seja, a alocação econômica eficiente e a promoção do uso racional do recurso, fogem muito da capacidade de regulação dos mecanismos de mercado. Afirma ainda que, com efeito, não há como estabelecer elo algum, seja de ordem prática ou teórica, entre o pseudo- equilíbrio das relações de troca e o equilíbrio ecológico requerido para o uso sustentável dos recursos naturais. Em relação a criação do mercado de direito de uso os referidos autores afirmam que,

"no caso dos recursos naturais, a criação de mercados de direitos de uso somente garante ao suposto proprietário do recurso o direito de usufruir da mercadoria adquirida da forma que lhe convier. A racionalidade de sua

decisão de uso será condizente somente com sua orientação privada, sem qualquer relação direta com padrões socialmente requeridos de exploração ou sustentabilidade." (idem, p.32).

A criação dos mercados de direito de água implica em prejuízos econômicos e ameaça a própria existência dos(as) excluídos(as) das relações de propriedade deste recurso. Isso porque a água, além de insumo a ser consumido na produção de valores, também é um meio de subsistência indispensável à vida da espécie humana, bem como de toda a vida no nosso planeta.

Submeter o acesso à água a relações lógicas de mercado significa não só privatizar e mercantilizar o ciclo hidrológico natural, mas também criar relações de domínio sobre as possibilidades de reprodução tanto dos(as) novos(as) excluídos(as) do acesso a água quanto de outras espécies animais e vegetais. Desse modo, a criação de mercados de direito de água não é uma forma alternativa de gestão dos recursos hídricos, mas uma nova frente para investimentos e acumulação de capital, mantendo, evidentemente, todas as características excludentes que o processo resguarda (Martins e Felicidade, 2001).