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CAPÍTULO III: EDUCAÇÃO BÁSICA EM MOÇAMBIQUE

3.1 Conceções da Educação Básica

Assinalamos, para começar, que no presente ponto, discute-se o conceito de Educação Básica, as teorias explicativas deste nível de ensino, a duração e, finaliza-se com o debate sobre perspetivas históricas da Educação Básica em Moçambique.

A educação escolar básica é hoje percecionada como uma realidade social naturalizada, por isso não questionada (Fernandes, 2011). A própria etimologia do termo base nos confirma esta aceção de conceito e etapas conjugadas sob um só todo. Base provém “do grego básiseós e significa, ao mesmo tempo, pedestal, suporte, fundação e andar, pôr em marcha, avançar”, (Augusto, 1956,p.3).

A educação básica é, por definição, a base da educação escolar acessível a todos e por todos conseguida; a escolaridade considerada essencial para a formação de cidadãos preparados para a vida ativa no país e no mundo, e que “é entendida como a base de toda a escolaridade, como o suporte sobre o qual as restantes escolaridades assentam e a partir das quais se desenvolvem”, (Rodrigues, 2006,p.101).

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Na mesma linha de pensamento, a educação básica pode ser entendida como apropriação de um conjunto de conhecimentos básicos e desenvolvimento de habilidades e atitudes julgadas necessárias para a sobrevivência dum cidadão e que constituem uma base fundamental para a prossecução de estudos posteriores.

A educação básica e escolaridade obrigatória não são conceitos sinónimos, embora, na maioria dos países, tenham normalmente a mesma conotação. Evidentemente, a escolaridade obrigatória é abordada na perspetiva da definição legal que dela se faz em cada Estado, reconhecendo que não o podem fazer, validamente, sem se referir ao ensino básico. Por isso, o caráter obrigatório do ensino básico é uma medida legal, de natureza compulsória, criada para atingir o fim pretendido: a sua universalidade e a garantia do respetivo sucesso escolar e educativo.

Coelho (1985, p.49), sublinha que “muitos países instauraram a escolaridade obrigatória por acharem que a educação é algo de muito importante e mesmo essencial em qualquer tipo de organização social, não podendo ficar apenas dependente da vontade ou das possibilidades reais de cada cidadão”.

Para que o ensino básico tenha, de fato, um caráter universal o Estado toma várias medidas, a primeira das quais é tornar gratuita a sua frequência, (Rodrigues, 2006). Pois, quanto mais pobre for a população, maior é o papel desempenhado pela escola no seu processo de inserção na sociedade, na medida em que a escola representa o único ambiente estruturado de convivência, antes de ser um ambiente de aprendizagem de letras e números, (August, 1986). Porém, esta medida cedo se revela não ser suficiente para garantir sua universalidade. O Estado decreta, então, a obrigatoriedade escolar como um meio de tornar universal a frequência do ensino básico.

Por conseguinte, o caráter obrigatório do ensino básico é uma medida legal, de natureza compulsória, criada para atingir o fim pretendido: a sua universalidade e a garantia do respetivo sucesso escolar e educativo.

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Golias (1999), sublinha que as nações africanas, por exemplo, no limiar de ascensão às suas independências nacionais prometeram a criação de oportunidades iguais de acesso à uma educação básica universal, obrigatória e gratuita para todos os seus cidadãos.

A libéria e a Serra Leoa receberam no início do Séc. XX ondas de afro-americanos que regressavam à terra mãe, este movimento serviu de porta para a expansão da civilização ocidental no campo do ensino para o resto de África. A educação era vista, nessa altura, como sendo o elemento básico na luta contra a descriminação racial e social e um meio de reconquista da dignidade africana. Foi neste contexto que estes dois países se tornaram o centro de debate e da expansão da educação na África Ocidental, (Castiano, Goenha & Berthoud, 2005,p.196)

Enquanto ação institucionalizada pelo Estado, a Educação Básica, é um fenómeno recente, historicamente ligado ao movimento político da Revolução Francesa e aos direitos de liberdade e de igualdade que lhe estiveram na origem e a revolução industrial, (Fernandes, 2011).

A Revolução Francesa, no final do século XVIII, proclamando os direitos de liberdade, igualdade e fraternidade, conduziu à organização “de um ensino fundamental, primário, que apetrechasse todas as crianças com a cultura e conhecimentos essenciais a permitirem-lhe um exercício consciente da nova cidadania” (Pires, 2000 cit. em Rodrigues 2006,p.101).

A Revolução Industrial obrigou a “aquisição e o uso de novos saberes de matriz científica e técnica”. Para este novo mundo do trabalho, tornava-se necessária a existência de operários alfabetizados, no que era considerado essencial, de modo a mais facilmente se adaptarem à nova sociedade de produção. Aqui, também, o ensino primário foi implantado como instituição socializadora de interesse determinante e de eficácia esperada, (Rodrigues2006,p.101).

Certamente que a revolução francesa e industrial sobressaem quando se pretende abordar o Ensino Básico, contudo, alguns países como a Prússia e Japão fizeram a expansão da Educação Básica antes da expansão industrial. Daí que fica difícil provar que o papel do Estado foi guiado pela necessidade de uma ordem industrial. Assim, Ramirez e Boli (1987) fazem uma análise importante nesse sentido quando referem que foram fatores relacionados com a construção do Estado-Nação.

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Salienta-se, igualmente, o papel desempenhado pela Igreja, a partir do Séc. XVI por via da Companhia de Jesus e dos seus colégios e que a data introduziu uma visão pedagógica assente no princípio de autoridade e obediência. Tais instituições acabaram por se afirmar em toda a Europa, tirando partido da dinâmica reformista e contra reformista que se sentia (Serra, 1998). A emergência de uma conceção democrática de educação teve a sua origem no final do Séc. XVIII e está relacionada com o que viria a evoluir para o reconhecimento do direito de todos à educação, de modo que todos os cidadãos tivessem o acesso a educação, permitindo-lhes beneficiar dos bens sociais e culturais da sociedade.

Lundgreen (1992.p87) refere que “a educação formal foi considerada como algo de bom em si mesmo em que todo o indivíduo tinha o direito de receber educação e de adquirir a realização pessoal e por outro, como um meio de cumprir os fins políticos e de mudar a sociedade”. Por sua vez, Ramirez e Boli (1987) consideram que mais do que responder as necessidades de uma economia industrializada, a escolarização de massas significou o esforço de se construir o Estado nacional, na crença de que àquele seria o caminho para a socialização como uma identidade nacional. Também Popkewitz (1994, p.54) acrescenta que “a escolarização pressupõe estruturas de governação na sociedade: o Estado supervisiona e certifica a educação de forma direta e, ao mesmo tempo a organização social e epistemológica das escolas produz a disciplina moral, cultura e social da população”.

Também estava associada à necessidade da criação de uma escola pública sustentada numa conceção de uma democrática, laica e neutralizadora da visão moral e religiosa até aí vigente. É preciso insistir no facto de que a passagem da educação escolar da tutela da Igreja para a esfera do Estado faz-se na maior parte dos países europeus, no final do Séc. XVIII, por influência da Revolução Francesa, ainda que a ideia de uma educação obrigatória universalista a partir da dinâmica da reforma seja igualmente considerável. Condeias (2001), defende que a passagem para educação obrigatória fez-se de forma lenta durante todo o séc. XIX e princípios do Séc. XX e representou o triunfo da noção do Estado- Nação com a substituição progressiva das estratégias individuais e de grupo, decididas em função de interesses concretos da vida das pessoas, por estratégias coletivas, decididas por grupos restritos e impostos à generalidade da população em nome do bem da nação.

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Hummel (1979) defende que foi no Séc. XIX que a escola conseguiu adquirir um prestigio incomparável e se tornou uma das mais poderosas instituições, solidamente administrada e cuidadosamente protegida de qualquer ingerência exterior. Contudo é apenas no decurso do Séc. XX que os ideais de democratização da educação se expandem tendo vindo a ser concretizados a ritmos diferenciados e em lógicas e práticas que se foram distanciando dos ideais que lhes estiveram na origem.

Kemmis (1988) lembra que o aparecimento da escola para todos foi estimulado por objetivos do Estado, relacionados com a exigência da normalização da educação e do conteúdo curricular de acordo com os objetivos sociais e económicos.

Fomosinho (1987,p. 17) por sua vez considera que “o ideal de igualdade foi perspetivado em termos de conhecimentos a transmitir através da unificação curricular, legitimando o uso da pedagogia uniforme e desvalorizando as ideias e práticas da educação nova e da educação progressista porque elas pressupunham e valorizavam as diferenças e preconizavam a individualização do ensino”. Na perspetiva deste autor, as razões ideológicas que definiam igualdade como acesso de todos ao mesmo tipo de educação40, conduziram à valorização das pedagogias que permitissem ensinar a muitos como se fosse um.

Talvez seja por isso que se afirma que foi nos domínios da pedagogia e da organização dos processos de ensino-aprendizagem e na sua inadequação aos diferentes públicos que foram chegando à escola, que a justificaram de universal, laica, gratuita e libertadora, começou a mostrar as suas contradições e a ser entendida como imposição pouco atrativa para àqueles que a recebem e que nem sempre conseguem ver o seu carácter emancipatório, (Sacristán, 2000).

Este desajuste da educação aos públicos que a ela passaram a ceder esteve na origem das correntes pedagógicas progressistas do Séc. XX. É nesta visão que este autor chama atenção para as tensões que tem acompanhado a implementação da escolaridade obrigatória e para o fato de ela ter vindo a assumir diferentes aceções:

40Fernandes (2011) falando do caso de Portugal, sublinha que o princípio de igualdade foi orientador das políticas

públicas a partir da revolução de 1974, mas foi com a lei de Bases do sistema educativo de 1986 que se afirma um discurso pela igualdade de oportunidade de acesso e sucesso escolar e se consideram princípios de educação humanista no quadro do alargamento da escolaridade obrigatória para nove anos.

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Começou pela visão de constituir um meio para igualar os que socialmente eram desiguais na crença de que cultivando o povo mais facilmente ele acederia à emancipação, fornecendo-lhes ainda a possibilidade de aceder aos bens culturais e sociais da sociedade. Passando por uma visão de um mínimo de conteúdos básicos: leitura, escrita, história, matemática e ciências, considerado um denominador comum, a que as escolas tinham de atender tendo em conta um programa nacional para educação e ascendeu à configuração, social e legislativa, de um direito fundamental que esteve na origem do fenómeno da escolarização universal que se foi afirmando mundialmente e ampliando também os seus significados. Chegados ao Séc. XXI continuamos a perseguir o ideal de construção de um projecto cultural universal para a educação básica. Tem se hoje a ideia de que o alcance da igualdade entre os seres humanos, sustentado no fenómeno da escolarização seria o caminho para a ela aceder, implicando a educação geral e básica obrigatória, contemplando as novas especificidades sociais e culturais.

Nesta mesma linha de análise, Monoz (2005,p.17) alerta que a democratização41 e

universalização de uma educação de qualidade para todos só será possível tomando, seriamente, em conta a singularidade e as necessidades de cada sujeito, seus contextos e condições de vida e que é necessário uma igualdade real e efetiva que ofereça oportunidades adequadas e diferenciadas a cada estudante, na verdade, este continua a ser o maior desafio com que defrontam as escolas e os professores.

A convergência destes dois fatores resulta no ensino fundamental para todos, por isso, tendencialmente universal que em Moçambique, ficou mais conhecido por ensino primário, a partir de 1983 com a aprovação da Lei 4/83 que estabeleceu o Sistema Nacional de Educação (SNE).

3. 2. Teorias explicativas da Educação Básica

Podemos, deste modo, considerar a escolaridade básica como um fato político/social que é explicado por Pires (1993) tendo por base três teorias: o naturalismo, o funcionalismo e o moralismo, acrescidas de uma outra, designada pelo autor por teleologia oculta.

O naturalismo traduz-se na aceção da escolaridade básica como caraterística natural e inata a todas as sociedades. É um fenómeno generalizado em todo o mundo, tanto no mundo desenvolvido como no subdesenvolvido. Por isso, em 1990, em Jomtiem, foi colocado ao mundo o desafio de, até 2000, todos os estados oferecerem obrigatoriamente uma educação básica universal, este objetivo foi formulado em conformidade com a convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança e ratificado em vários encontros internacionais, (Castiano, et. al,

41 Sacristán (1998) sustenta que a escolaridade obrigatória, numa óptica democrática, não tem a função de

hierarquizar os alunos para continuarem pelo sistema escolar, mas de proporcionar uma base cultural sólida para todos os cidadãos, seja qual for o seu destino social.

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2005). No contexto africano, o plano de ação aprovado em Dacar tem servido de documento básico para trabalhos de governos e das ONGs. Este plano assinado em 2000 representa o compromisso dos estados africanos em prosseguir e concentrar esforços para levar a cabo a educação universal ao nível do continente, (Golias, 1999).

O funcionalismo considera a educação como um investimento, como fonte de riqueza e desenvolvimento das pessoas e das sociedades. Esta relação entre economia e desenvolvimento exige mão-de-obra qualificada que satisfaça as necessidades de desenvolvimento das organizações, justificando-se, assim, a existência dum ensino básico para todos, construindo-se sobre ele as qualificações posteriores. Apesar disso, (Popkenitz, 1987) acrescenta que existe uma

Ilusão que provem do facto de que os empregadores desenvolveram uma confiança cega no sistema de certificado. O certificado é confundido com a produtividade. No entanto, nas suas pesquisas verificou que é entre os graduados que o grau de insatisfação pelo trabalho que fazem é muito maior. Muitos graduados consideram que o emprego que exercem exigia muito pouco das capacidades reais que julgavam possuir. Isto levou Berg a concluir que as competências exigidas no emprego não tinham muito a ver com o sucesso escolar, ou seja, que não havia formas de provar que existia uma relação directa entre o nível escolar e a produtividade do indivíduo, (p.68).

O moralismo resulta do movimento de democratização da educação, sendo esta vista como um dever e um direito de todos. Esta teoria vem a traduzir-se numa expansão massiva da educação, decorrente do critério de igualdade de oportunidades. É nesse sentido que a declaração sobre a Educação para Todos levou a uma reapreciação da educação básica como um direito inalienável de cada indivíduo e como o legado da sociedade que dá a cada um possibilidade de continuar a aprender pela vida inteira, (Golias, 1999). Inerente a esta declaração existe o reconhecimento de que se a pobreza, a doença e a guerra devem ser substituídos pela prosperidade, saúde e paz, então a ignorância deve dar lugar ao esclarecimento, à compreensão, às habilidades e valores. A educação é uma condição necessária ao desenvolvimento humano, é pré-requisito para qualquer outro tipo de desenvolvimento. “O poder do povo começa com a capacitação do intelecto”, (Machel, 1975,p.30).

Em relação à teleologia oculta, esta é o reverso da medalha, ou seja, enquanto as teorias anteriores se baseiam no desenvolvimento e na democratização, esta fundamenta-se no fenómeno da educação de massas, nas suas motivações e no cumprimento efetivo das finalidades da escolaridade básica. É por assim que Golias (1999) acrescenta que os objetivos da educação básica são de promover no discente conhecimentos fundamentais e habilidades verbais e não

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verbais que formam a base para uma aprendizagem permanente, com a habilidade e curiosidade para explorar e responder aos desafios e oportunidades da vida de forma inteligente e confiante.

Um direito do cidadão à educação é um dever do Estado em atendê-lo mediante oferta qualificada. E, tal o é por ser indispensável, como direito social, a participação ativa e crítica do sujeito, dos grupos a que ele pertença, na definição de uma sociedade justa e democrática.