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Quando 8: Características da amostra

2.2 Mentoria

2.2.2 Conceito de mentoria

Serão apresentados a seguir aspectos que contribuem para uma visão conceitual sobre a mentoria. Inicia-se por uma perspectiva tradicional, vinculada aos primeiros estudos acadêmicos e a uma proposta de definição do construto. Em seguida, abordam-se os benefícios do relacionamento de mentoria e aspectos decorrentes de uma maior abertura e abrangência que o conceito vem alcançando em diversos contextos.

2.2.2.1. Visão tradicional sobre mentoria

Para um contato inicial com o conceito de mentoria, Ragins e Kram (2007) sinalizam com a seguinte referência:

Quando nos pedem para contemplar os relacionamentos que fizeram a diferença em nossas vidas – os relacionamentos que nos deram coragem de fazer as coisas que nós pensávamos que não podíamos fazer, relacionamentos que guiaram nosso desenvolvimento profissional ou até mesmo mudaram o curso de nossas vidas –, muitos de nós pensamos em relacionamentos de mentoria (RAGINS; KRAM, 2007, p. 3).

Desde já, portanto, é possível entender que a mentoria pertence à esfera dos relacionamentos, ou seja, experiências de aproximação, de interação entre uma pessoa e outra ou outras. Tais relacionamentos “fazem a diferença na vida de alguém”, são significativos, marcantes, porque “dão coragem” para a pessoa realizar além do que se imagina capaz de fazer: concedem-lhe potencial para superar limites, transpor barreiras e colher conquistas. Propiciam orientação, no sentido do crescimento do indivíduo na área profissional, e, mais além, representam experiências de tal modo profundas, que podem ser consideradas como fatores estimuladores de mudanças nos caminhos que o indivíduo percorre em sua existência. Essa visão condiz com o que sustentam Klasen e Clutterbuck (2007): mentoria é um dos melhores métodos para aprimorar o aprendizado e o desenvolvimento do indivíduo em todos os caminhos da vida. Citando Parsloe (2000), esses autores sustentam que o propósito da mentoria é apoiar e estimular as pessoas a conduzir seu próprio aprendizado, de modo que possam maximizar seu potencial, desenvolver suas habilidades, melhorar seu desempenho e tornarem-se as pessoas que querem ser. Com esses atributos, o relacionamento de mentoria pode revelar-se como um “relacionamento transformacional” (RAGINS; KRAM, 2007, p. 4) e, independentemente do campo em que seja investigada, a mentoria pode ser entendida como um processo de

desenvolvimento (BEARMAN et al., 2007). Em outras palavras, mentoria trata de transição, mudança e transformação (MEGGINSON et al., 2006).

Observando-se a estrutura mais simples (um a um) de uma relação de mentoria, estão presentes, de um lado, o mentor, que provê funções de mentoria, e, de outro lado, o mentorado, foco da atenção e ajuda do mentor. Em um sentido amplo, os verdadeiros mentores tendem a interessar-se pelo bem-estar geral de seus mentorados (ANDERSON; SHANNON, 1988). Um bom mentor tem qualidades várias:

“... é alguém de absoluta credibilidade cuja integridade transcende o que sobre ele se diga; conta para o mentorado coisas que este possa não querer ouvir, mas deixa-o sentindo que deveria ter ouvido; interage com o mentorado de maneira que o faz querer tornar-se melhor; faz o mentorado sentir-se seguro bastante para assumir riscos; dá ao mentorado confiança para superar suas dúvidas e medos; apoia os esforços do mentorado em estabelecer suas próprias metas e apresenta oportunidades e foca em desafios que o mentorado poderia não ter percebido por si mesmo” (DELONG; GABARRO; LESS, 2008, p. 4).

Diversos tipos de suporte, portanto, podem ser proporcionados pelo mentor, no processo de suporte ao desenvolvimento do mentorado. Porém uma questão fundamental no relacionamento de mentoria é a presença de dois fatores. Primeiramente, o mentor deve viver a experiência com compaixão (BOYATZIS, 2007). Compaixão, neste caso, compreende ao mesmo tempo três fatores: a) empatia, compreensão dos sentimentos do outro; b) dedicação à outra pessoa; c) vontade de agir em resposta aos sentimentos da pessoa (MCKEE; BOYATZIS, 2006; BOYATZIS; SMITH; BLAZE, 2006). Associando-se ao fator compaixão, uma atração mútua ou química interpessoal se desenvolve entre as partes (KRAM, 1980, 1988; FORRET; TURBAN; DOUGHERTY, 1997; OWEN; SOLOMON, 2006). Disso resulta um tipo de relacionamento específico.

Como visto acima, Ragins e Kram (2007) ressaltam a questão do desenvolvimento profissional como campo de influência da mentoria. Isso se prende ao fato de a pesquisa de mentoria ter sido inicialmente direcionada aos estudos no campo organizacional, sobre o qual as pesquisas são hoje abundantes. Com esse foco, a mentoria foi definida por Kram (1988, p. 2) como “um relacionamento entre um adulto jovem e um mais velho e mais experiente que ajuda o mais novo a aprender a navegar no mundo adulto e no mundo do trabalho”.

2.2.2.2 Mentoria vista por novas lentes

Existem diversos aspectos a considerar quando se assume na mentoria uma perspectiva mais distante do conceito tradicional. A começar pela quantidade de mentores de

um mesmo indivíduo e quem são esses mentores. O modelo tradicional prevê uma relação biunívoca, entre um mentor e um mentorado, porém, desde seus primeiros trabalhos, a própria Kram (1988) já sustentava que o indivíduo pode ir, ao longo da vida e da carreira, valendo-se de uma “constelação” de relacionamentos, que lhe vão provendo suportes distintos em épocas diversas. São indivíduos de várias esferas sociais, incluindo a família, amigos fora do trabalho e pessoas do ambiente organizacional (subordinados, pares e chefes). Mais tarde, Higgins e Thomas (2001) utilizaram a expressão “constelação de desenvolvimento” para designar o conjunto de relacionamentos que um indivíduo tem, ao longo da vida, com pessoas que assumem um interesse ativo e iniciativa em desenvolver a carreira daquele, através de assistência nas questões pessoais e profissionais. Em lugar de “constelação de desenvolvimento”, Higgins e Kram (2001) utilizaram a expressão “rede de desenvolvimento”. Para elas essa rede é formada pelo conjunto de pessoas que o indivíduo, em um determinado ponto da vida, entende como importantes, seja sob o ponto de vista do suporte para sua carreira, seja sob o ângulo do apoio psicossocial de que necessita.

Pode-se considerar, então, que os mentores não têm de ser necessariamente de maior status, grau hierárquico ou autoridade. Pares, por exemplo, podem agir como mentores (KRAM; ISABELLA, 1985; TODD, 2005). O mentor não é obrigatoriamente uma pessoa mais velha e de maior nível (DARLING et. al., 2002). O que importa é que o mentor tenha conhecimento e experiência confiável e relevante para compartilhar (PHILIP; HENDRY, 2000). Assim se pode chegar até o cenário de um relacionamento reverso em relação ao que apregoa a tradição conceitual da mentoria: em determinada circunstâncias, indivíduos mais novos servem de mentores aos mais velhos, em uma relação que gera resultados positivos (WINEFIELD, 1998, citado por MCDONALD, 2002; BUSEN; ENGEBRETSON, 1999; ENSHER; MURPHY, 2005; O’NEILL, 2006; SCANLON, 2008; HARVEY et al., 2009;).

Uma das mais recentes inovações na abordagem do fenômeno da mentoria é o conceito de “episódio de mentoria”. Fletcher e Ragins (2007) definem episódios como interações de curto prazo que ocorrem em pontos específicos no tempo. Segundo as autoras, a partir dessa ideia surgem novas perspectivas de análise, que ajudam a melhor entender o que constitui um relacionamento de mentoria, pois se torna possível estudar a mentoria desde a ocorrência de uma simples interação até o surgimento e desenvolvimento de um relacionamento de mentoria. Um relacionamento se compõe de episódios e os indivíduos podem envolver-se em episódios sem estarem ainda vivenciando efetivamente relacionamentos de mentoria. A frequência e a qualidade dos episódios são preditores de uma profunda conexão e comprometimento entre as partes. Ao longo do tempo, a frequência de

episódios de alta qualidade pode levar o relacionamento a um nível em que ele possa ser considerado um relacionamento de mentoria. Os episódios que o geraram foram episódios de mentoria. Assim, as autoras sugerem a visualização de um “contínuo de possíveis interações – de episódicas a contínuas” (FLETCHER; RAGINS, 2007, p. 381). As relações de mentoria caracterizadas por um elevado número de episódios que promovam crescimento mútuo seriam muito mais provavelmente experimentadas como relações de alta qualidade. McManus e Russel (2007) também tratam do conceito de episódios. Ratificam que, ao longo do tempo, mais e mais episódios de mentoria atingem um ponto em que fica caracterizada a relação de mentoria, com um nível mais elevado de intimidade, abertura e autenticidade. É, contudo, difícil saber quando ocorre esse ponto de inflexão.

Ensher e Murphy (2005) fazem menção a “mentores do momento”. Segundo elas, trata-se de pessoas que atuam em um análogo de uma amizade circunstancial. Ainda que a interação seja breve, ela pode significar uma oportunidade de mentoria capaz de promover mudança na vida do outro. Para que este usufrua do que um mentor do momento lhe pode oferecer, precisa desenvolver um sentido apurado de profunda atenção e abertura a essas oportunidades.

Outro aspecto digno de nota na atual visão sobre a mentoria é o sentido do fluxo de benefícios que o relacionamento proporciona entre mentor e mentorado. McManus e Russell (2007) afirmam que, na concepção tradicional, os benefícios gerados – para o mentorado ou para o mentor – são decorrentes de ações do mentor, em vez de algo que derive de iniciativas independentes do mentorado. É o que as autoras chamam de relação de complementaridade: a satisfação de um indivíduo advém do suprimento que ele faz da necessidade do outro. No caso, isso significa que o mentor também se beneficia pelo fato de beneficiar o mentorado. Mas há outras situações possíveis. McManus e Russell (2007) sustentam que, em relações de mentoria entre pares, eles são capazes de ajudar-se mutuamente, promovendo uma situação mais equilibrada, com cada um dos membros contribuindo para o desenvolvimento do outro. Essa situação é a mutualidade. Além disso, quando os membros percebem igual valor no que entregam e no que recebem, o relacionamento é de reciprocidade (que não deixa de ser uma mutualidade). As autoras propõem que a mutualidade é mais comum na mentoria de pares que na mentoria tradicional.

O resultado dessas trocas pode gerar diversos níveis de satisfação com os relacionamentos de mentoria. Ragins, Cotton e Miller (2000) verificaram que há três níveis mais evidentes de satisfação do mentorado com o relacionamento de mentoria: num extremo, relações altamente insatisfatórias; no outro, relações altamente satisfatórias. No ponto médio

do contínuo formado por esses extremos, situa-se o que as autoras chamam de “mentoria marginal”. É uma mentoria de mínimos resultados: não envolve uma disfunção grave, mas sua eficácia é reduzida. Numa visão que leva em conta também o lado do mentor, Scandura (1998) apresenta o conceito de “mentoria disfuncional”, aquela em que o relacionamento não é benéfico para o mentorado, para o mentor ou para ambos.

Uma última questão, fechando a abordagem conceitual sobre a mentoria, leva em conta um aspecto ressaltado por Ragins e Kram (2007): a não percepção da mentoria, apesar da sua ocorrência. As autoras sugerem três situações: (a) indivíduos podem oferecer funções de mentoria sem a percepção de estarem atuando como mentores; (b) indivíduos podem receber funções de mentoria sem que as percebam como mentoria; (c) a falta de percepção pode ocorrer simultaneamente pelas duas partes. Para as autoras, esses fenômenos remetem à distinção entre comportamento de mentoria e relacionamento de mentoria, que por sua vez se relaciona com a ideia de episódios de mentoria, apresentada acima. Ou seja, episódios típicos de mentoria aconteceram, mas a frequência e qualidade dos episódios ainda não permitiram que o processo de interação fosse considerado um relacionamento de mentoria. Particularmente em relação à situação ”a”, um exemplo do que pode ocorrer é o que Ensher e Murphy (2005) chamam de “mentor inspirador”: aquele que oferece um modelo de excelência sem ter relacionamento direto com o mentorado (mas este tem consciência da influência daquele). Fowler (2002) sugere a probabilidade de a maioria das pessoas vivenciarem relacionamentos de mentoria em suas vidas, ainda que não tenham percebido, ou seja, por atuarem de modo inconsciente quanto ao papel de mentor ou de mentorado. Essas colocações sobre a percepção da experiência de mentoria sugerem uma questão a se levantar sobre a qual o pesquisador não encontrou referências na literatura ao longo dos estudos voltados para este trabalho. É que os casos de mentoria não percebida podem ser vistos sob duas perspectivas. Uma delas é o indivíduo jamais perceber a mentoria, mesmo ao longo de toda a vida, após a experiência: ela seria percebida pela outra parte ou por um terceiro que presenciou a experiência. A outra perspectiva é não ter percebido a mentoria no tempo em que a experiência ocorreu, mas posteriormente, em algum ponto da vida, ter uma revelação de que ela aconteceu, embutida naquela experiência vivida em um relacionamento.